A gruta é mais extensa do que a gruta

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    domingo, abril 25, 2004

    Nanook, o Esquimó / O Homem da Câmera / The Beatles Anthology

    As the mist leaves no scar on the dark green hill, so my body leaves no scar on you, and never will. True love leaves no traces, if you and I are one. It's lost in our embraces like stars against the sun.

    “É Tudo Verdade” é um título obviamente mentiroso, assim como todos os livros, jornais, este site etc. Tem gente que desconfia até da ciência... No caso do cinema, então, a coisa complica: muita gente acha as imagens bem mais críveis do que as palavras, e um filme como “A Paixão de Cristo” é interpretado por muita gente como “fiel aos fatos”.

    Agora, que o gênero batizado de “documentário” (uma palavra que carrega armadilhas) parece ganhar cada vez mais popularidade, é preciso prestar muito mais atenção quanto às supostas idoneidade e neutralidade desses filmes. Porque está cheio de documentário (como definir o gênero? Seria, como tentou resumir Jean-Claude Bernardet, um filme que mostra “situações que ocorreriam sem a presença da câmera”?) por aí que se utiliza de recursos claramente ficcionais, como curva dramática e uso de trilha sonora para dar “aquele clima”... O interessante é que o contrário também ocorre: a série “Band of Brothers”, por exemplo, não é uma dramatização do “real”? A verdade, segundo a boneca Emília, não é uma mentira tão bem contada que todo mundo acredita?

    Vejam o caso de “Nanook of the North”, lançado em 1922, considerado por muitos o primeiro documentário em longa metragem da história. Em seu filme de estréia, o diretor Robert Flaherty (1884-1951), explorador e geólogo, não só idealiza os esquimós, transformando o caçador de ursos Nanook em uma figura heróica (algo típico da ficção) e ignorando problemas já vigentes entre aqueles povos, como a prostituição e o alcoolismo, como utiliza uma série de subterfúgios, por exemplo: Nyla, apresentada no filme como mulher de Nanook, era, na verdade, amante de Flaherty; o diretor pedia para os esquimós encenarem ações que ele não havia conseguido captar (por exemplo, os fazia “matar um bicho morto”); para mostrá-los dentro do iglu, mandou construir meio iglu, enquadrando-o de forma a dar a ilusão (característica básica de qualquer filme) de que estamos vendo o interior de um iglu verdadeiro etc. Sem falar que ele retrata, ali, um modo de vida que não mais existia, pois, naquela época, os esquimós já caçavam com rifles há décadas...

    O que nos leva ao ponto principal, ao discutirmos o gênero: a questão não é se o documentário é realista (ele pode mirar para o real, mas nunca será real), mas se é honesto _porque, como bem sabemos (ou deveríamos saber), isenção é como o Papai Noel: não existe nem no pólo norte... O que conta, muitas vezes, nem é o que está na tela, mas como tal informação foi processada (coisa que o nosso Eduardo Coutinho costuma mostrar muito bem). Isso dá um pano pra manga...

    Botando essas questões de lado por um minuto, “Nanook...” é um filmão. Não só pela homérica proeza, quase sobre-humana (imagine você, há 85 invernos, sozinho no pólo norte por mais de um ano, com um equipamento arcaico e não tão portátil, tendo de aprender a preservar e a revelar um filme a temperaturas de pelo menos -20ºC) e pela coragem de um empreendimento realmente novo, mas porque o filme é delicioso de assistir. “Nanook, o Esquimó”, pode não nos contar a verdade, mas é grande cinema _não é à toa que Orson Welles (que, no já citado “It’s All True”, demonstra ter sido clararamente influenciado por filmes como “O Homem de Aran” e “Moana”) considerava Flaherty um gigante comparável a Griffith.

    Por acaso vocês acham que “O Homem da Câmera” (1929), o filme mais famoso do nosso amigo Dziga Vertov e o preferido da Tatica, estaria mais perto da “realidade” do que “Nanook...”, mesmo com todos aqueles efeitos especiais? Pessoalmente, eu acho essas “sinfonias da cidade” (alguém aí já viu os adoráveis curtas do holandês Joris Ivens?) muito mais atraentes... Trata-se de outra obra monumental, sofisticadíssima, um poema visual metalingüístico claramente empolgado pela apropriação artística da cidade pelo olho mecânico. É uma declaração de amor ao cinema, que abarca a tela, o público, a câmera, o filme, a moviola. Outra proeza admirável e inesquecível, sem muito do ranço político explícito de outros trabalhos do diretor (embora, no fundo, também se tratasse de demonstrar como o socialismo leninista levava ao “progresso”). Vá ver e depois me conte o que achou, sim?

    Mas vamos viajar no tempo para uma época (1995) e um assunto (os quatro cabeludos de Liverpool) bem mais acessíveis, senão quase ninguém vai saber o que falar nos comentários, a parte mais nobre e mais legal deste site. “The Beatles Anthology”, série televisiva em oito capítulos, foi o produto que deu o pontapé inicial na retrospectiva oficial da carreira da banda (que teve, como experiências anteriores, o lançamento do disco “The Beatles at the BBC” e de um documentário nos mesmos moldes sobre o “Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band”, aquele disco que, apesar de representar uma ruptura estética bem mais drástica do que seus dois antecessores imediatos, está longe de ser o melhor da banda), seguida de três CDs duplos com duas músicas “novas” e de uma enciclopédia, ambos baseados na série.

    O enfoque é bem simples: tentar fugir daquele esquema mais tradicional de documentário, com um narrador conduzindo a história, e deixar que os próprios protagonistas contem sua versão dos fatos. A princípio, a idéia é bem boa, mas a realização deixa a desejar em certos momentos _ora, cinema é imagem, e o documentário falha ao ilustrar as músicas (sim, é um problema fazer documentário sobre música, a Vaquinha Eugênia que o diga) com imagens vazias, estáticas e desinteressantes, como instrumentos abandonados em um estúdio e uma reconstituição de um quarto de um fã. Dá vontade de bocejar dançando twist...

    Outra coisa que enche o saco é a evidente encheção de lingüiça com apresentações ditas “raras”, como a banda no Japão, na França, na Holanda e na favela da Rocinha. Evidente tentativa de ganhar mais uns cobres (como se já não tivessem ganhado o bastante) em cima do fanatismo dos beatlemaníacos. E é lógico que a gente enfia a mão no bolso para colaborar com eles...

    Mas é inegável que o documentário é importante e feito com capricho, embora o resultado final tenha desapontado. Como era de esperar, há todo um tom nostálgico ao falar de Lennon, embora isso tente ser dissimulado, sem sucesso. Macca, o político, é o que mais faz macaquices, daquele jeito maquiavélico dele. Ringo, considerado sempre o bufão do grupo, o mais bem-humorado e tal, surpreende ao aparecer como um chato, evidentemente entediado com a coisa toda. Quem se mostra mais ponderado, sincero e crítico a respeito de sua própria história é George Harrison. Claro. Além dele, o que ajuda mesmo a salvar este documentário é o senso de humor dos realizadores. Por exemplo, todos parecem discordar ao falarem sobre a canção “All You Need Is Love”, de autoria de John. Como John está morto, todos vão jogando a batata quente para o outro, em cortes rápidos, até que uma imagem de George Martin calado deixa a questão sem solução.

    P. S. Meu texto sobre "Elefante" foi publicado na mais nova edição da revista eletrônica Cine Imperfeito. Entrem lá, cliquem no link "Em Cartaz", leiam o texto (lembrem-se de que não é uma resenha) e venham comentar aqui. Se quiserem, claro. Ah: meu sobrenome continua grafado errado (é por isso que o abrevio aqui)...

    P. P. S. Por causa do Chico, acabei entrando no tão falado Orkut, a mania internética da vez. Não há nada de novo: tudo se resume à interação social (olha só o que apareceu na minha tela: “You are connected to 222222 people through 2 friends” _o que é ótimo, a gente sempre acaba comendo alguéns), a consumir mais tempo de nossas vidas e a nos colocar diante de uma quantidade i-na-cre-di-tá-vel de lixo. Não deixa de ser uma experiência interessante, mas os blogs ainda são MUITO mais legais.

    P. P. P. S. Ontem, revi mais uma vez “O Encouraçado Potemkin”, de Sergei Eisenstein (sim, a parte da escadaria de Odessa é mesmo uma das melhores seqüências já realizadas no cinema; é um deleite infernal). Por isso (e não só isso), vamos a mais um trechinho do livro “As Principais Teorias do Cinema”, de J. Dudley Andrew, que indica uma diferença fundamental entre Eisenstein e outro importante teórico e cineasta russo, Vsevolod Pudovkin:

    “Ao tornar o cineasta igual ao pintor, ao compositor e ao escultor, Eisenstein supera Pudovkin, com o qual freqüentemente tem sido associado. Pudovkin colocava o cineasta à mercê do plano e insistia que a direção criativa deriva da escolha e organização apropriadas desses pedaços da realidade que já têm um poder definido. Ele afirmava que o cineasta vê através da confusão da história e da psicologia e cria uma suave sucessão de imagens que levam em direção a um completo evento narrativo. Para Pudovkin, o sentido do mundo já existe na realidade capturada pelos planos, mas poderia ser ampliado e liberado pela montagem meticulosa. O cineasta tem meios, acreditava Pudovkin, para forçar o espectador a sentir um evento cinematográfico como se fosse um evento natural. Pode sutilmente dirigir e controlar a atenção e as emoções do espectador, já que o leva, não através da confusão do enredo, mas através da claridade de uma realidade reorganizada pelo filme, de modo que suas relações secretas são esclarecidas. A ênfase de Pudovkin no plano individual como fragmento básico do filme coloca-o muito mais próximo do que Eisenstein dos teóricos cinematográficos realistas. Mesmo em seu período mais formativo, quando falava da criação de eventos pelo cinema através da montagem, Pudovkin queria ligar os planos para levar o espectador a aceitar sub-repticiamente um acontecimento, uma história ou um tema. Eisenstein mencionou isso e reinvidicou, não uma ligação, mas uma colisão, não uma platéia passiva, mas uma platéia de co-criadores.”

    Cena da semana: Gregory Peck põe a mãozona na bunda de Ava Gardner, com vontade; Fred Astaire, que observa tudo por um binóculo, diz para Anthony Perkins: “Até parece que estou vendo um filme francês” (“On the Beach”, de Stanley Kramer, 1959).

    quarta-feira, abril 14, 2004

    Retrospectiva: dois anos na tela

    Hoje, este espaço completa dois anos de existência. Apesar de sua pouca importância e de sua qualidade duvidosa (já que é feito às pressas e de modo bem displicente), muito mais gente do que eu imaginava passou por aqui (não faço idéia de quantas visitas o CCE teve, mas é bem provável que tenha passado de 100 mil _o que é espantoso para um site que nunca se autopromoveu, que não faz parte de nenhuma panelinha e que não pertence a uma jovem mulher disposta a compartilhar suas tórridas peripécias sexuais), e novos visitantes chegam a cada dia. Alguns freqüentadores antigos sumiram, outros continuam fiéis. Na verdade, o único motivo da existência deste espaço é a presença participativa de seus visitantes, já que a proposta, desde o primeiro dia, é a de ser um fórum de discussão.

    Discussão, aliás, é a palavra fundamental. Como escrevi no FAQ (que não está mais disponível porque o provedor faliu e não vi necessidade de hospedá-lo em outra página), este espaço serve para bater boca mesmo, de igual para igual _o que, às vezes, irrita muita gente, uma pena. A discordância (cavalheiresca, sempre) é fundamental _e quem não concordar com isso que vá para as cucuias.

    Falando sério, é bom repetir que este site NÃO É dedicado à crítica cinematográfica, como muitos pensam. Não existem resenhas de filmes aqui. Os rasos textos (considero os posts antigos péssimos, o que é ótimo) publicados apenas pretendem servir de mero estímulo aos visitantes _que vocês procurem assistir ao que se comenta aqui e que se disponham a conversar sobre o que viram, de modo civilizado e honesto, colaborando para espalhar o amor pela arte e pela vida. Simples assim.

    Não preciso agradecer aos muitos amigos que fiz por intermédio deste site (sem dúvida, o melhor pagamento que eu poderia receber); todos sabem quem são e qual sua importância. Então vamos parar com a lenga-lenga e listar tudo o que rolou por aqui no segundo ano (abril de 2003 a março de 2004) de existência desta bodega:

    Abril

    Deus É Brasileiro
    Retrospectiva: um ano na tela
    Arca Russa / De Volta das Cinzas
    O Pianista / Roma, Cidade Aberta

    Maio

    Os Nibelungos / A Última Gargalhada
    São Paulo Sociedade Anônima / Copacabana me Engana
    Durval Discos / 2 Perdidos numa Noite Suja
    Mouchette, a Virgem Possuída / Pickpocket
    Chicago / Psicose
    Roger e Eu / The Big One / Tiros em Columbine

    Junho

    Carandiru / Carandiru.doc
    As Horas / O Canto do Mar
    Ben-Hur / Desmundo / Laranja Mecânica
    X-Men 2 / Matrix Reloaded / Hulk

    Julho

    O Poderoso Chefão - Partes I, II e III
    Buffalo 66 / Cães de Aluguel
    A Última Noite / Embriagado de Amor / B. Monkey
    Roma / O Talentoso Ripley / Frenesi
    Vacas / Terra / Os Amantes do Círculo Polar

    Agosto

    Réquiem a Lênin / Câmera Olho / Outubro
    O Homem Que Copiava / Longe do Paraíso / Cada Um Vive Como Quer
    The Westerner / Roy Bean, o Homem da Lei / Bola de Fogo
    Crepúsculo dos Deuses / A Malvada / Os Desajustados
    Estranhos no Paraíso / Ghost Dog / Dirigindo no Escuro

    Setembro

    Macbeth / A Paixão de Joana D’Arc
    Cidadão Kane / Othello / O Processo / F for Fake
    O Homem do Ano / Lisbela e o Prisioneiro / Amarelo Manga
    Hombre / Uma Bala para o General

    Outubro

    2001 – Uma Odisséia no Espaço / Barbarella / Scanners – Sua Mente Pode Destruir
    A Noite dos Mortos Vivos / Halloween – A Noite do Terror / A Morte do Demônio / O Iluminado

    Novembro

    Noites de Cabíria / O Caso dos Irmãos Naves / Crônicas de um Amor Louco
    The Matrix Revolutions / The Animatrix
    De Olhos Bem Fechados / Noite Vazia / Luxúria
    Taxi Driver / Maratona da Morte / Desafio no Bronx / Assassinos por Natureza

    Dezembro

    As Invasões Bárbaras / Os Reencarnados
    Uma Rua Chamada Pecado / Dois na Gangorra / Meu Amigo Harvey / Viagem a Roma
    Sobre Meninos e Lobos / Os Imperdoáveis/ A Promessa

    Janeiro

    O Mensageiro Trapalhão / Mocinho Encrenqueiro
    Simplesmente Amor / Narradores de Javé

    Fevereiro

    Dogville / Era uma Vez na América
    Encontros e Desencontros / 21 Gramas / Interiores
    O Mágico de Oz / Labirinto, a Magia do Tempo / Veludo Azul
    O Gabinete do Dr. Caligari / O Golem / Nosferatu (1922 e 1979) / Fausto

    Março

    Peixe Grande e suas Histórias Maravilhosas / Abry / 33 / Maridos e Esposas
    Bang Bang / Hitler IIIº Mundo
    A Paixão de Cristo

    P. S. Vocês viram que este ano começou com "Deus" e acabou com "Cristo"? Ai, que medo!

    sábado, abril 10, 2004

    Glória Feita de Sangue / Nascido para Matar / Casablanca / De Crápula a Herói

    I don’t know but I’ve been told: eskimo pussy is mighty cold! Ho Chi Minh is a son of a bitch: got the blue balls, crabs and the seven-year itch!

    Eu nem estava esperando a resistência iraquiana tocar o terror pra lá de Bagdá (com direito a manifestação do Paul Virilio, autor do livro "Guerra e Cinema", e tudo) para falar de guerra. Mera coincidência.

    Vamos começar com um Kubrick ainda embrionário, embora tenha alcançado status de clássico. “Paths of Glory” (1957), um dos mais importantes filmes sobre a Primeira Guerra Mundial (outro é “A Grande Ilusão”, de Jean Renoir, com Jean Gabin e Erich von Ströheim), traz, à primeira vista, um desequilíbrio entre forma e conteúdo, algo que não ocorreria nos filmes mais famosos do diretor nova-iorquino. Acima de tudo, o que conta aqui é o farol ético representado pelo protagonista, coronel Dax, a quem Kirk Douglas emprestou sua face pétrea.

    Basicamente, “Glória Feita de Sangue” enfoca a dicotomia covardia/bravura, mostrando o que geralmente acontece: a corda sempre arrebenta do lado mais fraco. Em tempos de guerra, como podemos perceber atualmente, a verdade e a honra costumam ficar em segundo plano; quem está no alto da hierarquia também está mais suscetível à degeneração e à vaidade, características de quem manda homens à morte sem grande peso na consciência, sejam militares, políticos, sacerdotes ou empresários. Qualquer questionamento dá vazão a punições tão severas quanto injustas. Seria desumano, se não fosse tão humano.

    Em contraposição à franca manipulação emocional da cena final, na qual uma alemãzinha canta para os soldados franceses, que se comovem, temos, trinta anos depois, um pelotão de jovens norte-americanos de classe baixa entoando o tema do Clube do Mickey, enquanto caminham pela terra devastada do Vietnã. Um progresso e tanto.

    Muitas vezes tenho a impressão de que “Full Metal Jacket” (1987), penúltimo longa do velho Kuby, é injustamente menosprezado. O filme é brilhante ao assumir tom de comédia (bastante sombria, mas ainda comédia) para mostrar, sem um pingo de sutileza (é preciso coragem para ser didático, o jornalismo ensina isso), como os oficiais militares desumanizam seus recrutas para que morram por qualquer que seja a causa. O próprio sargento Hartman (para quem nunca teve de lidar com um sargento, saibam que a personagem de Lee Ermey, merecidamente indicado ao Oscar de coadjuvante, é extremamente verossímil) deixa bem claro que os recrutas não são seres humanos _durante o Tiro de Guerra, lá se vão dez anos, meus companheiros e eu éramos chamados de “porcos”. Aliás, não só nós, como as nossas mães, também.

    O processo de transformação de garotos em máquinas de matar passa pela sexualidade (“this is my rifle, this is my gun, this is for fight and this is for fun”; “o nome do meu rifle é Charlene”), pela religião (antes de dormir, os recrutas rezam a oração do rifle; o sargento faz um discurso sobre como os marines servem a Deus, enviando almas fresquinhas para o Céu) e pela glorificação de assassinos (inclusive o de JFK), na primeira parte do filme, que começa com a cruel tosa dos cabelos (ao som de "goodbye, my darling, hello, Vietnam"), uma imagem sempre poderosa. Gomer Pyle, personagem de Vincent D’Onofrio, me lembra um pouco as de Jerry Lewis, o eterno desajustado num mundo que cobra eficiência; só que ele acaba chegando lá (e paga o preço). Sobre a segunda parte do filme, conversamos no espaço nobre dos comentários, se vocês quiserem.

    Voltando no tempo, encontramos “Casablanca” (1942), produzido em época de guerra por um dos grandes estúdios de Hollywood (Warner) e dirigido por um veterano estrangeiro, o húngaro Mihály Kertész (1886-1962), aqui rebatizado como Michael Curtiz (pronuncia-se “curtís”), rei de filmes de ação (como "As Aventuras de Robin Hood", com Errol Flynn e Olivia de Havilland) que viria a dirigir Elvis Presley em “Balada Sangrenta” (“King Creole”) e John Wayne e Lee Marvin em “Os Comancheros”, seu último filme.

    Há um mistério em “Casablanca”? A princípio, deveria ser apenas mais um produto hollywoodiano, um filme de esforço de guerra (mas bem mais universalista do que poderíamos supor _você imagina ouvir “A Marselhesa” num filme da era Bush, xará daquele pit-bull que atacou um garotinho de 4 anos nesta semana?), feito aos trancos e barrancos (os atores gravavam sem o roteiro completo, sem saber como a história terminaria), apenas para cumprir tabela, numa época em que a indústria cinematográfica estava em seu auge de produção. Mas, como bem diz Lauren Bacall na introdução do DVD, uma mágica aconteceu. “Casablanca” não só ganhou três Oscars, incluindo o de Melhor Filme, como se tornou um clássico. Melhor: um clássico que, apesar de tudo, permanece incrivelmente moderno.

    Os diálogos são exemplares, assim como o timing; o filme é agilíssimo, e a narrativa, apesar de razoavelmente complexa (são muitos personagens, todos capitais para a trama), se desenrola com tranqüilidade. Bogart, no papel de sua vida, está simplesmente genial (e pensar que Ronald Reagan chegou perto de pegar o papel, brr!); Bergman, encantadora, apesar de um tanto chorosa demais; Henreid (que dirigiria dezenas de episódios da série “Alfred Hitchcock Presents”), completando o trio principal, consegue transmitir a grandeza de Victor Laszlo. Os coadjuvantes, todos não-americanos (assim como Bergman e Henreid), também são incríveis: Claude Rains está impagável como Louis Renault, o tão corrupto quanto simpático chefe de polícia; Conrad Veidt (o sonâmbulo Cesare de “O Gabinete do Dr. Caligari”), que morreria poucos meses depois, faz um vilão sem exageros; e Peter Lorre... bem, Peter Lorre é sensacional, certo?

    O legal de “Casablanca” (que, curiosidade, tem Don Siegel como um dos montadores) é não se limitar a um drama choroso sobre um casal separado pela guerra. Com muita sutileza e economia, o filme também cumpre seu papel ético ao mostrar um verdadeiro herói disfarçado de anti-herói, cuja abnegação acaba triunfando sobre a corrupção e falando de amor de uma maneira que até o Cristo do Mel Gibson não consegue. Este é pra ter em casa e rever todos os meses. Here’s looking at you, kid.

    Ainda falando em ética, o péssimo título brasileiro de “Il Generale Della Rovere” (1959) entrega e resume todo o enredo. O filme de Roberto Rossellini (a este ponto, já separado de Ingrid Bergman _por sinal, os arquivos de todos os textos sobre filmes do Rossa e de muitos outros que eu escrevi não estão disponíveis, alguém sabe como recuperá-los?), “um santo”, segundo Glauber Rocha, é ainda melhor que o clássico “Roma, Cidade Aberta” e traz Vittorio de Sica (o diretor de “Ladrões de Bicicleta” também era um excelente ator, meio “latin lover” _neste filme, aliás, ele se parece bastante com Chaplin) como o protagonista, num papel que lembra, em termos gerais, o Rick Blaine de Bogey. Seu Bardone é um trambiqueiro que, durante a ocupação alemã na Itália, tira dinheiro de famílias cujos homens estão em prisões nazistas, até que, acossado por um oficial da Gestapo, ele é obrigado a fingir ser o general Della Rovere, herói da resistência, e identificar outros rebeldes em uma prisão.

    Não é difícil imaginar onde a história vai dar, já que o título brazuca entrega tudo; mesmo assim, assistir a este filme é uma experiência emocionante, mesmo sem nenhum tipo de sensacionalismo ou pieguice (os toques de comédia também são freqüentes e eficientes), mas pela sua verdadeira grandeza ética e cinematográfica. E, como bônus, já que ninguém é de ferro e o Rossa não era bobo, apesar de “santo”, mulheres belíssimas, dessas de pendurar na parede. Viva l’Italia!

    P. S. Falando em guerra e romance, revi, na semana passada, "...E o Vento Levou", que só havia visto na Globo, quando criança. Vivien Leigh é uma grande atriz, como podemos ver no superior "A Streetcar Named Desire", e eu sou fã do Clark Gable especialmente por causa de "The Misfits" (mais uma vez, o arquivo do texto não está disponível), mas o filme só é espetacular no quesito produção, como ocorre com "Ben-Hur"; de resto, não passa de um novelão para mulherzinhas, excessivamente longo (quase quatro horas de duração, sem necessidade). Mas é claro que há bons momentos e boas cenas, especialmente por causa dos atores principais...

    P. P. S. Anteontem, foi o aniversário de dez anos do descobrimento do cadáver de Kurt Cobain. Dez anos parece ser muito tempo, mas a verdade é que estes anos voaram. Felizmente, foram riquíssimos. Os próximos dez prometem, porque, apesar de vivermos num momento social e econômico terrível, sem grandes perspectivas de melhora, eu sou doente de esperança e não conheço a cura. E parece que eu não vou morrer aos 27... Será?

    quinta-feira, abril 01, 2004

    Festim Diabólico / A Dama de Shanghai / O Veredicto / O Sol É para Todos

    Deixou a marca dos dentes dela no braço pra depois mostrar pro delegado se acaso ela for se queixar da surra que levou por causa de um ciúme incontrolado...

    Mas essa violência toda é de matar, hein? Não adiantou nada terem crucificado o Cristo: em 1924, na terra dos Bush, dois rapazes ricos assassinaram um garoto de 14 anos, só para ver como era, só para sentir o prazerzinho de matar. A imprensa, é claro, faz um carnaval para vender jornal, e, assim como Crosby, Stills, Nash & Young capitalizaram em cima da morte de quatro estudantes em “Ohio”, não demora para alguém transformar a monstruosidade em peça (não, não estou sendo moralista e condenando tais fatos, seria pior se estas mortes passassem em branco).

    Aí, em 1948, nosso velho amigo Hitch, já estabalecido nos EUA, adapta “Rope’s End” para o cinema, que vira “Rope”, sua primeira película em cores e sua primeira produção independente naquele país. Ela destaca-se em sua filmografia mais pela forma do que pelo conteúdo; o mestre do suspense quis fazer uma “Arca Russa” (ou 25% de “Timecode”, que vi semana passada e considerei bastante interessante, embora não brilhante), mas, como naquele tempo, oh, ainda não existia vídeo, teve que fazer cortes a cada dez minutos, mais ou menos, para trocar o rolo de filme.

    Há quem diga que “Festim Diabólico” (título nada a ver, como de praxe) fracassou nas bilheterias por causa disso; outros creditam o tropeço à escalação de James Stewart (realmente esquisito no papel de Rupert Cadell, que, originalmente, deveria ser de Cary Grant, que recusou; na minha modesta opinião, James Mason, curiosamente citado em um dos diálogos, seria mais adequado), que normalmente encarnava homens moralmente inquestionáveis, mas aqui defende idéias que lembram o ainda recente regime nazista (Nietzsche e seu übermensch são citados e, mais uma vez, distorcidos, ai, ai). Claro que o final moral (necessário, talvez) não é uma surpresa; aliás, em Hitchcock, vocês devem saber, nunca é o final que interessa, mas o percurso até lá (mentira, mentira, primeiro de abril).

    Uma coisa que me deixou impressionado é saber que o filme deveria deixar bastante claro que os personagens assassinos são homossexuais, coisa que nunca havia passado pela minha cabeça ingênua e desprovida de maldade. Mesmo ao rever o filme, não consigo obter tal impressão (no documentário que vem no DVD, o roteirista diz que queria deixar a franguice mais acentuada, além de não mostrar o cadáver no início, mas Hitch não teria deixado), apesar das diversas discussões entre as personagens de Farley Granger e John Dall (este último entrou no projeto para substituir Montgomery Clift, mas, novamente na minha opinião, quem mataria a pau no papel seria o Orson Welles _se ele usasse espartilho, lógico). Teria mesmo ficado mais interessante? Enfim, um Hitch menor ainda é memorável...

    Falando no velho Welles, seu “The Lady from Shanghai” também foi lançado em 1948 (mesmo ano de seu “Macbeth” de baixíssimo orçamento), apesar de ter sido feito dois anos antes. Aqui, Welles (ele mal tinha acabado de fazer 30 anos e sua carreira já estava em declínio) trabalha meio como diretor contratado, adaptando um romance, mas impõe sua personalidade ao roteirizar e atuar como o protagonista, além de dirigir.

    As filmagens não devem ter sido nada fáceis: seu casamento com Rita Hayworth, a estrela (belíssima, apesar de ter o cabelo cortado e pintado de loiro, distanciando-se do padrão “Gilda”, que a transformou na maior pin-up do pós-Segunda Guerra _praticamente uma pré-Marilyn, especialmente quando, lânguida, canta o tema do filme), estava indo por água abaixo; perfeccionista, filmando em locações como Acapulco e San Francisco, Welles estourou o cronograma de filmagem porque queria refazer várias cenas; no final, acabou tendo de cortar mais de uma hora de seu filme _o que, ironicamente, o deixou com um ritmo de cortes bastante acelerado, criando um efeito impressionante (graças também ao esmero de Welles na decupagem dos planos).

    “A Dama de Shanghai” é comumente descrito como um filme noir, o que é bastante compreensível: o uso da voz over, a história de um anti-herói que se envolve com uma mulher fatal (bota fatal nisso), um punhado de personagens sinistros (Everett Sloane e Glenn Anders são extremamente bem-sucedidos ao encarnarem personagens asquerosos), locações exóticas (como um aquário e um alucinante parque de diversões, entre outras) e um plot recheado de crimes e traições, além de uma hilariante, quase inacreditável seqüência de tribunal. Mas é óbvio que Welles transcende os clichês do gênero e faz um filme memorável, imensamente invulgar. E Hayworth (Margarita para os íntimos) brilha, no papel que deveria tê-la imortalizado. É verdade que o Jorge Guinle comeu?

    Misturemos outra história que passa por um tribunal com o já citado James Mason e temos “The Verdict”, um Lumet de 1982 estrelado por Paul Newman e roteirizado por David Mamet. A trama lembra o estilo consagrado por John Grisham: um pobre indivíduo íntegro (um velho, patético e fracassado advogado-alcoólatra-de-porta-de-velório) combate uma máquina industrial de advogados que jogam sujíssimo, em mais uma disputa entre o poder do dinheiro e o discurso ético (algo fundamental não só no direito, mas na medicina, no jornalismo, no cinema, na política, enfim, até lixeiro precisa ter ética). Sim, o desfecho deste Davi versus Golias é altamente previsível, mas isto não tira o prazer de ver Newman e Mason em ação.

    Mas o campeão da ética mesmo é Atticus Finch, personagem de Gregory Peck em “To Kill a Mocking Bird” (1962). Atticus, como é chamado por seu casal de filhos, Jem e Scout (a narradora da história, bem no estilo “Anos Incríveis”), foi eleito o maior herói do cinema americano, em uma daquelas intermináveis enquetes promovidas pelo American Film Institute. Sim, John Rambo perdeu para um advogado viúvo que, apesar de ótimo atirador, não quer que o filho tenha uma espingarda. Alguém lembra em que filme uma personagem se pergunta “o que Gregory Peck faria numa situação dessas”? Será que foi o Michael Moore? Brincadeirinha...

    A história se divide entre a defesa de um jovem negro acusado de estupro (o racismo começava a ser discutido nos EUA, em tempos de Rosa Parks e Martin Luther King) e a curiosidade dos filhos de Atticus a respeito de um misterioso vizinho. Em meio a tudo isso, um filme sobre a paternidade, a família, a solidariedade entre vizinhos (em plena depressão econômica, numa região pobre do país, Atticus aceita ser pago com mercadorias, em vez de dinheiro), tudo de uma maneira bonita, mas pouco apelativa, sem moralismo reacionário ou sentimentalismo barato, mas com responsabilidade. No final, Scout lembra que Atticus passou uma noite inteira ao lado do filho acamado _coisa que todo pai decente faria, ou seja, mais uma vez, o herói é o homem comum.

    P. S. “Out of Time” é nome de uma música dos Rolling Stones (os Ramones regravaram no “Acid Eaters”, lembra?). É também o título original de “Por um Triz”, de Carl Franklin, ator de séries de TV dos anos 70 que passou a dirigir no final dos anos 80. O filme se apropria de uma série de clichês do cinema policial norte-americano (lembra Hitchcock de raspão em vários momentos, apesar de não ser a mesma coisa), mas não se limita a uma mera sessão da tarde, porque é incrivelmente (faço questão deste negrito) bem-feito. Competentíssimo e imperdível. Será que o Franklin seria mais reconhecido se fosse branco, como falaram por aí?

    P. P. S. Momento “herrei”: a minha piadinha com o “C. S. I.”, feita no texto anterior, foi por água abaixo; a atriz que interpreta a mãe de Jesus Caviezel não é a mesma da série (os nomes e os rostos de ambas são bem parecidos, daí a confusão, que eu fiquei com preguiça de consertar porque não ganho dinheiro com este site). E o Mel Gibson, quem diria, é americano mesmo: ele nasceu no Estado de Nova York. Tudo bem que chamar o Gibson de americano, em vez de australiano, é a mesma coisa que dizer que o Nelson Rodrigues é pernambucano, e não carioca, mas, tecnicamente...

    P. P. P. S. Tá, o texto já está bem comprido e tal, mas a melhor parte vem agora: mais um trecho do livro do Andrew, sobre como Bazin via a questão de o uso da profundidade de campo (ou seja, até que ponto as imagens entram em foco) poder dar maior ou menor liberdade de interpretação ao espectador, citando dois grandes diretores:

    “Bazin achava que William Wyler, em seus primeiros filmes, proporcionou ao espectador uma ampla qualidade de informações e o encorajou a escolher, em grande medida, sua própria perspectiva. Defensores da montagem afirmam que Wyler é fraco e que seus filmes não têm autoridade, mas Bazin achava que ‘a profundidade de campo de William Wyler pretende ser tão liberal e democrática quanto a consciência do norte-americano e dos heróis de seus filmes’. Embora a filmagem em sua profundidade de campo permitisse a Wyler dar à platéia uma posição privilegiada, outros diretores usaram-na para insistir na prioridade do mundo diante do espectador.

    Orson Welles é o exemplo perfeito. Ele usou esse título tão brilhantemente e com tanto sucesso em seus dois primeiros filmes que o que antes era considerado não-cinematográfico ganhou prestígio. Mas seu uso da profundidade de campo foi completamente diferente do de Wyler. Ninguém jamais cometeu o equívoco de chamar Welles de democrático. Ele desencorajava o espectador com sua profundidade de campo, pois ‘ela força o espectador a usar sua liberdade de atenção e o obriga ao mesmo tempo a sentir a ambivalência da realidade’. A profundidade de campo de Welles criou um realismo triplo: realismo ontológico, dando aos objetos uma densidade e uma independência concretas; realismo dramático, recusando-se a separar o ator do cenário; e, mais importante para nós, realismo psicológico, colocando ‘o espectador nas verdadeiras condições de percepção nas quais nada é jamais determinado a priori’.”

    Na platéia