Nanook, o Esquimó / O Homem da Câmera / The Beatles Anthology
As the mist leaves no scar on the dark green hill, so my body leaves no scar on you, and never will. True love leaves no traces, if you and I are one. It's lost in our embraces like stars against the sun.“É Tudo Verdade” é um título obviamente mentiroso, assim como todos os livros, jornais, este site etc. Tem gente que desconfia até da ciência... No caso do cinema, então, a coisa complica: muita gente acha as imagens bem mais críveis do que as palavras, e um filme como “A Paixão de Cristo” é interpretado por muita gente como “fiel aos fatos”.
Agora, que o gênero batizado de “documentário” (uma palavra que carrega armadilhas) parece ganhar cada vez mais popularidade, é preciso prestar muito mais atenção quanto às supostas idoneidade e neutralidade desses filmes. Porque está cheio de documentário (como definir o gênero? Seria, como tentou resumir Jean-Claude Bernardet, um filme que mostra “situações que ocorreriam sem a presença da câmera”?) por aí que se utiliza de recursos claramente ficcionais, como curva dramática e uso de trilha sonora para dar “aquele clima”... O interessante é que o contrário também ocorre: a série “Band of Brothers”, por exemplo, não é uma dramatização do “real”? A verdade, segundo a boneca Emília, não é uma mentira tão bem contada que todo mundo acredita?
Vejam o caso de “Nanook of the North”, lançado em 1922, considerado por muitos o primeiro documentário em longa metragem da história. Em seu filme de estréia, o diretor Robert Flaherty (1884-1951), explorador e geólogo, não só idealiza os esquimós, transformando o caçador de ursos Nanook em uma figura heróica (algo típico da ficção) e ignorando problemas já vigentes entre aqueles povos, como a prostituição e o alcoolismo, como utiliza uma série de subterfúgios, por exemplo: Nyla, apresentada no filme como mulher de Nanook, era, na verdade, amante de Flaherty; o diretor pedia para os esquimós encenarem ações que ele não havia conseguido captar (por exemplo, os fazia “matar um bicho morto”); para mostrá-los dentro do iglu, mandou construir meio iglu, enquadrando-o de forma a dar a ilusão (característica básica de qualquer filme) de que estamos vendo o interior de um iglu verdadeiro etc. Sem falar que ele retrata, ali, um modo de vida que não mais existia, pois, naquela época, os esquimós já caçavam com rifles há décadas...
O que nos leva ao ponto principal, ao discutirmos o gênero: a questão não é se o documentário é realista (ele pode mirar para o real, mas nunca será real), mas se é honesto _porque, como bem sabemos (ou deveríamos saber), isenção é como o Papai Noel: não existe nem no pólo norte... O que conta, muitas vezes, nem é o que está na tela, mas como tal informação foi processada (coisa que o nosso Eduardo Coutinho costuma mostrar muito bem). Isso dá um pano pra manga...
Botando essas questões de lado por um minuto, “Nanook...” é um filmão. Não só pela homérica proeza, quase sobre-humana (imagine você, há 85 invernos, sozinho no pólo norte por mais de um ano, com um equipamento arcaico e não tão portátil, tendo de aprender a preservar e a revelar um filme a temperaturas de pelo menos -20ºC) e pela coragem de um empreendimento realmente novo, mas porque o filme é delicioso de assistir. “Nanook, o Esquimó”, pode não nos contar a verdade, mas é grande cinema _não é à toa que Orson Welles (que, no já citado “It’s All True”, demonstra ter sido clararamente influenciado por filmes como “O Homem de Aran” e “Moana”) considerava Flaherty um gigante comparável a Griffith.
Por acaso vocês acham que “O Homem da Câmera” (1929), o filme mais famoso do nosso amigo Dziga Vertov e o preferido da Tatica, estaria mais perto da “realidade” do que “Nanook...”, mesmo com todos aqueles efeitos especiais? Pessoalmente, eu acho essas “sinfonias da cidade” (alguém aí já viu os adoráveis curtas do holandês Joris Ivens?) muito mais atraentes... Trata-se de outra obra monumental, sofisticadíssima, um poema visual metalingüístico claramente empolgado pela apropriação artística da cidade pelo olho mecânico. É uma declaração de amor ao cinema, que abarca a tela, o público, a câmera, o filme, a moviola. Outra proeza admirável e inesquecível, sem muito do ranço político explícito de outros trabalhos do diretor (embora, no fundo, também se tratasse de demonstrar como o socialismo leninista levava ao “progresso”). Vá ver e depois me conte o que achou, sim?
Mas vamos viajar no tempo para uma época (1995) e um assunto (os quatro cabeludos de Liverpool) bem mais acessíveis, senão quase ninguém vai saber o que falar nos comentários, a parte mais nobre e mais legal deste site. “The Beatles Anthology”, série televisiva em oito capítulos, foi o produto que deu o pontapé inicial na retrospectiva oficial da carreira da banda (que teve, como experiências anteriores, o lançamento do disco “The Beatles at the BBC” e de um documentário nos mesmos moldes sobre o “Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band”, aquele disco que, apesar de representar uma ruptura estética bem mais drástica do que seus dois antecessores imediatos, está longe de ser o melhor da banda), seguida de três CDs duplos com duas músicas “novas” e de uma enciclopédia, ambos baseados na série.
O enfoque é bem simples: tentar fugir daquele esquema mais tradicional de documentário, com um narrador conduzindo a história, e deixar que os próprios protagonistas contem sua versão dos fatos. A princípio, a idéia é bem boa, mas a realização deixa a desejar em certos momentos _ora, cinema é imagem, e o documentário falha ao ilustrar as músicas (sim, é um problema fazer documentário sobre música, a Vaquinha Eugênia que o diga) com imagens vazias, estáticas e desinteressantes, como instrumentos abandonados em um estúdio e uma reconstituição de um quarto de um fã. Dá vontade de bocejar dançando twist...
Outra coisa que enche o saco é a evidente encheção de lingüiça com apresentações ditas “raras”, como a banda no Japão, na França, na Holanda e na favela da Rocinha. Evidente tentativa de ganhar mais uns cobres (como se já não tivessem ganhado o bastante) em cima do fanatismo dos beatlemaníacos. E é lógico que a gente enfia a mão no bolso para colaborar com eles...
Mas é inegável que o documentário é importante e feito com capricho, embora o resultado final tenha desapontado. Como era de esperar, há todo um tom nostálgico ao falar de Lennon, embora isso tente ser dissimulado, sem sucesso. Macca, o político, é o que mais faz macaquices, daquele jeito maquiavélico dele. Ringo, considerado sempre o bufão do grupo, o mais bem-humorado e tal, surpreende ao aparecer como um chato, evidentemente entediado com a coisa toda. Quem se mostra mais ponderado, sincero e crítico a respeito de sua própria história é George Harrison. Claro. Além dele, o que ajuda mesmo a salvar este documentário é o senso de humor dos realizadores. Por exemplo, todos parecem discordar ao falarem sobre a canção “All You Need Is Love”, de autoria de John. Como John está morto, todos vão jogando a batata quente para o outro, em cortes rápidos, até que uma imagem de George Martin calado deixa a questão sem solução.
P. S. Meu texto sobre "Elefante" foi publicado na mais nova edição da revista eletrônica Cine Imperfeito. Entrem lá, cliquem no link "Em Cartaz", leiam o texto (lembrem-se de que não é uma resenha) e venham comentar aqui. Se quiserem, claro. Ah: meu sobrenome continua grafado errado (é por isso que o abrevio aqui)...
P. P. S. Por causa do Chico, acabei entrando no tão falado Orkut, a mania internética da vez. Não há nada de novo: tudo se resume à interação social (olha só o que apareceu na minha tela: “You are connected to 222222 people through 2 friends” _o que é ótimo, a gente sempre acaba comendo alguéns), a consumir mais tempo de nossas vidas e a nos colocar diante de uma quantidade i-na-cre-di-tá-vel de lixo. Não deixa de ser uma experiência interessante, mas os blogs ainda são MUITO mais legais.
P. P. P. S. Ontem, revi mais uma vez “O Encouraçado Potemkin”, de Sergei Eisenstein (sim, a parte da escadaria de Odessa é mesmo uma das melhores seqüências já realizadas no cinema; é um deleite infernal). Por isso (e não só isso), vamos a mais um trechinho do livro “As Principais Teorias do Cinema”, de J. Dudley Andrew, que indica uma diferença fundamental entre Eisenstein e outro importante teórico e cineasta russo, Vsevolod Pudovkin:
“Ao tornar o cineasta igual ao pintor, ao compositor e ao escultor, Eisenstein supera Pudovkin, com o qual freqüentemente tem sido associado. Pudovkin colocava o cineasta à mercê do plano e insistia que a direção criativa deriva da escolha e organização apropriadas desses pedaços da realidade que já têm um poder definido. Ele afirmava que o cineasta vê através da confusão da história e da psicologia e cria uma suave sucessão de imagens que levam em direção a um completo evento narrativo. Para Pudovkin, o sentido do mundo já existe na realidade capturada pelos planos, mas poderia ser ampliado e liberado pela montagem meticulosa. O cineasta tem meios, acreditava Pudovkin, para forçar o espectador a sentir um evento cinematográfico como se fosse um evento natural. Pode sutilmente dirigir e controlar a atenção e as emoções do espectador, já que o leva, não através da confusão do enredo, mas através da claridade de uma realidade reorganizada pelo filme, de modo que suas relações secretas são esclarecidas. A ênfase de Pudovkin no plano individual como fragmento básico do filme coloca-o muito mais próximo do que Eisenstein dos teóricos cinematográficos realistas. Mesmo em seu período mais formativo, quando falava da criação de eventos pelo cinema através da montagem, Pudovkin queria ligar os planos para levar o espectador a aceitar sub-repticiamente um acontecimento, uma história ou um tema. Eisenstein mencionou isso e reinvidicou, não uma ligação, mas uma colisão, não uma platéia passiva, mas uma platéia de co-criadores.”
Cena da semana: Gregory Peck põe a mãozona na bunda de Ava Gardner, com vontade; Fred Astaire, que observa tudo por um binóculo, diz para Anthony Perkins: “Até parece que estou vendo um filme francês” (“On the Beach”, de Stanley Kramer, 1959).