A gruta é mais extensa do que a gruta

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    terça-feira, março 23, 2004

    A Paixão de Cristo

    A lágrima de um homem vai cair. Esse é o seu B. O. pra eternidade. Diz que homem não chora; tá bom, falô. Não vai pra grupo, irmão. Aí, Jesus chorou.

    Me diga você, que sabe datilografia: o Jim Morrison não morreu de ataque cardíaco, numa banheira em Paris, em 1971? Então por que cargas d'H2O o Mel Gibson resolveu crucificar o bebum? Podia ter escolhido o Bono, não?

    Então, eu não ia atualizar o site tão rapidamente nem ultrapassar a fila de filmes vistos anteriormente que ainda não foram pitacados, mas prefiro falar sobre "The Passion of the Christ" assim, no calor do momento, porque não estou sendo pago para escrever este texto e posso me dar ao luxo de ser irresponsável. Vi a coisa hoje à tarde, e está rolando o contrário do que aconteceu com "Lost in Translation": a cada minuto que passa, ele me parece pior (ei, preste atenção: a seguir, vamos discutir cinema, e não religião; sem maluquice, tá?).

    E olha que eu não esperava grande coisa, até por já estar cabeludo de saber que o Mad Mel não é exatamente o atípico americano liberal heterodoxo hippongo e meio de esquerda que eu conheci em Berkeley (até porque ele sequer é americano, apesar de ter feito "O Patriota"). Mas, puerra, estamos falando de uma das minhas narrativas preferidas, que inspirou belas obras (do "King of Kings" do Nicholas Ray a "Monty Python's Life of Brian", passando pelo bizarro, porém interessante, "Jesus Christ Superstar") e o mega-over "Ben-Hur".

    Mas, antes de começar a jogar pedra na cruz, é bom eu dizer que ter visto "A Paixão de Cristo" não foi, de maneira nenhuma, uma perda de tempo. Também está longe de ser um dos piores filmes que já vi (você deve estar imaginando que já vi muito filme ruim; pois é, já passei até por "Se7en"). Mas que é de doer, ah, isso é.

    E não exatamente pelo suposto anti-semitismo da peripécia de US$ 25 milhões (cadum cadum; eu, particularmente, não senti ódio de ninguém por causa da película _nem mesmo do Mel Gibson_, até porque é preciso muito mais do que um filme para me fazer sentir ódio) ou por causa de seu "excesso de violência", justamente o que todo mundo anda comentando. O problema é que o filme se limita a uma espécie de lavagem cerebral programada para incutir culpa em seus espectadores. O espetáculo sádico de malhação do Jésa (acho que só vi tanto sangue em "Cães de Aluguel" e no "Macbeth" do Polanski) serve para martelar na testa de todo mundo que o salvador sofreu horrores por nossa causa, e que devemos purgar nossos pecados pela compaixão _até parece que Gibson corrobora aqueles espetáculos grotescos de crucifixão e autoflagelação nas Filipinas que os jornais, todos os anos, mostram. As mensagens basilares da doutrina cristã de amor ao próximo ficam totalmente em segundo plano. Ou seja, o filme é anticristão, e quem acha que ele é evangelizador só pode estar doente.

    Na verdade, "A Paixão de Cristo" deveria ser rotulado como um filme de terror, pois é justamente este o seu propósito: assustar, e da maneira mais grotesca. Embora a caracterização da atriz italiana Rosalinda Celentano como Satã seja a melhor do filme (adorei o vermezinho rebolando na narina dela, um dos poucos planos que valeram a pena), as nada sutis aparições demoníacas que permeiam toda a obra, compondo metáforas bem rasas, depõem contra a mesma. Taí uma das coisas que vieram à minha mente enquanto eu assistia ao filme: quando criança, eu nunca tive medo do diabo, porque nunca cheguei a acreditar nele; Jesus, por outro lado, era como um bicho-papão ou um homem do saco: eu morria de medo de ele vir me buscar, à noite. Mel Gibson diz que acredita no diabo. Isso nunca é um bom sinal.

    Outra coisa que me incomodou muito é o desperdício da dramaticidade da história. Ao se limitar a mostrar incansavelmente o castigo físico do protagonista (sim, pegaram Jesus pra Cristo _e ainda queriam que fosse censura livre), Gibson anestesia seu espectador, em vez de fazer com que ele se compadeça de seu herói. O filme é monótono, monótono. As tentativas de manipular as emoções do público dão com os burros no açude, justamente por exageradas demais. A cena com o maior potencial dramático do filme, aquela em que Maria vai falar com o filho no meio da via crúcis, é totalmente arruinada pela péssima trilha sonora (ora metida a exótica, ora metida a transcendental). O uso de câmera lenta e suas variantes também é desastroso; Cristo pós-"Matrix", façam-me o favor.

    E o elenco, sorry, não dá para levar a sério. Usar a atriz de "C. S. I." para fazer a Maria parece piada de mau gosto; fiquei imaginando a hora em que ela fosse exumar o cadáver do filho e colher pistas que a levassem até o assassino. Até a Giovanna Antonelli seria melhor. E a Momô, hein? Quando se trata da Momô, é sempre bom perguntar duas vezes: e a Momô, hein? Como disse meu amigo Julito, que viu o filme do meu lado esquerdo, só mesmo o filho de Deus (ou um muito do viado) para não comer. E porque não chamaram o Bowie para fazer o Pilatos de novo? Eu, hein? Vade retro, Mel!

    P. S. Falando em filme de terror chinfrim e de coisas que eu tinha medo quando criança (como o E. T.), revi, há poucos dias, "Poltergeist, o Fenômeno" (na época, o Ronaldinho ainda não era famoso). O início, com o hino dos EUA tocando na TV e as cenas que introduzem a vizinhança onde a trama ocorre, é bem interessante (assim como a cena dos pais fumando maconha), mas não demora muito para a coisa descambar. O final é horroroso, e não sei porque eu fiquei com tanto medo quando era pequeno, já que se trata de um terrorzinho família produzido e roteirizado pelo Spielby. As continuações, nunca vi, obrigado. É verdade que a menininha morreu?

    P. P. S. Ah, falando em terror e suas continuações, vi o segundo e o terceiro "Halloween". Ambos são produzidos por John Carpenter, nenhum é dirigido por ele, e o criador do Michael Myers só assina o roteiro do segundo, que continua bem de onde o original parou e nos revela "o segredo" _após um monte de mortes estúpidas. E, diferentemente deste, que é bem interessante, ambos são porcarias. Será que o Mel Mortífero vai fazer a continuação de "The Passion of the Christ", com Jesus Morrison apavorando os infiéis no dia do Juízo Final? Seria mais legal e mais lúcido (e, talvez, mais lucrativo) da parte dele...

    sábado, março 20, 2004

    Bang Bang / Hitler IIIº Mundo

    When I am not this hunchback that you see, I sleep beneath the golden hill.

    Como boa parte das pessoas que visitam esta pequena propriedade rural da Internet são cinéfilas (eu não sou cinéfilo, longe disso), é bem provável que a maioria já tenha ouvido falar de “Bang Bang” (1971). Uns e outros até devem tê-lo assistido.

    Pois sequer dá para dizer que o longa de Andréa Tonacci seja uma espécie de “pérola perdida do cinema nacional”, um “clássico cult do cinema marginal” ou qualquer outra frase não muito plena de sentido. Porque o filme é totalmente desconhecido, não tem sequer o status de obra muito falada e pouco vista, como “Limite”, “O Despertar da Besta” ou até mesmo as mais acessíveis “O Bandido da Luz Vermelha” e “Matou a Família e Foi ao Cinema”, por exemplo. “Bang Bang” não é visto nem discutido. A não ser, é claro, entre cinéfilos dignos do nome (eu não sou, faz-se o paradoxo).

    E o que é que se diz a respeito de um filme tão pouco discutido, mas considerado extremamente importante por aqueles que o discutem? Grosso modo, que se trata de um cinema puro, no qual os planos (e tudo o que eles captam) não se deixam limitar pela narrativa. Uma discussão antiga...

    Engraçado é que existe um esforço (de certas pessoas) de achar alguma narrativa em “Bang Bang”. Mas, até agora, todas as tentativas de sinopse deste filme (quer tentar?) que eu li parecem puro chute, como se fossem produtos de uma intuição (sempre redutora), e não da descrição do que se passa na tela.

    E o que a gente vê, quando assiste a “Bang Bang” (classificado como pertencente ao gênero “policial”)? Paulo César Pereio briga (mais de uma vez) com um taxista, canta “Eu Sonhei que Tu Estavas Tão Linda” usando uma máscara de macaco, some e reaparece sob o estalar de dedos de um mágico, tem um diálogo sem muito nexo com uma dançarina de flamenco em um bar (a cena lembra muito o início de “Pulp Fiction”), passeia de carro por longos planos, é perseguido por um trio de figuras muito estranhas, como um travesti e um cego que, claro, dispara tiros a esmo. No final, risos, talvez de escárnio, talvez uma reiteração de que a única saída para a criatividade durante tempos de ditadura pesada, no Brasil, fosse o tal do desbunde. “Ou não”, como diria Caê.

    Mas quer saber o que realmente interessa? “Bang Bang” é um filme muito divertido, gostoso de assistir. Podia ser pernóstico, narcisista e bobo como “Meteorango Kid, o Herói Intergalático”, por exemplo. Mas não é. E isto não é pouco.

    “Hitler IIIº Mundo” (1968), de José Agrippino de Paula (mais conhecido por seu romance “PanAmérica”, hoje ele vive recluso no Embu das Artes, aqui pertinho de São Paulo _onde fiz, com um grupo de amigos, um vídeo bastante interessante em 2002, pena que vocês não vão ver), é comumente relacionado ao filme do Tonacci, embora seja uma experiência menos radical. Também nunca lançado comercialmente, este filme em 16mm (fotografado pelo Jorge Bodansky, pai da Laís, e montado por Rudá de Andrade, filho do Oswald e da Pagu) oferece uma visão menos enviesada politicamente do que “Bang Bang”: o regime de exceção em voga no Brasil (ainda em uma época pré-AI 5) é comparado, sem muita sutileza, ao nazi-fascismo.

    É mais ou menos isso: um robô (referência aos políticos ditos “biônicos”, como Paulo Maluf?) semelhante a Hitler dá um golpe de estado (para depois reclamar que “é muito difícil manter a ordem no terceiro mundo”); relaciona-se, aos latidos, com os EUA (representados por um homem com tapa-olho de pirata, que pergunta “do you speak english, Adolf? Can you go to the United States, Adolf?”); Jô Soares (em sua melhor atuação no cinema) representa o Japão, no papel de um samurai de pantomima (a cena na qual ele enche uma Kombi com crianças de uma favela _dizem que se trata de uma sátira a um concurso lançado por Silvio Santos_ é sensacional); uma versão de Mussolini nos é apresentada como um homem de TV; ainda temos uma “anãzinha” e uma tentativa frustrada de suicídio do Coisa (sim, aquele do Quarteto Fantástico, numa caracterização incrível, uma roupa de espuma com olhos de bolinhas de gude), a ligação com a cultura pop dos EUA. E, para deixar tudo muito mais divertido, o som não é sincronizado. Coisa de quem tem peito (como a nossa amiga Courtney).

    Fala a verdade, não te deu vontade de assistir? O povo da sala Lima Barreto (curiosamente, sem o seu característico cheiro de mofo, algo inédito) dormiu, saiu no meio ou falou muito mal no final _com exceção do tradicional bêbado que freqüenta a sala, que riu o filme inteiro e se divertiu reconhecendo logradouros da capital paulista, como o Viaduto do Chá... Acho que o Agrippino teria curtido, se não estivesse lá no Embu do mundo.

    Cena da semana: James Taylor (sim, aquele cantor chato), jovem e com semblante impassível (como uma máquina), dirige um Chevy 55 em uma pista de aeroporto. O filme se desintegra (“Corrida sem Fim”, de Monte Hellman, 1971).

    sábado, março 06, 2004

    Peixe Grande e suas Histórias Maravilhosas / Abry / 33 / Maridos e Esposas

    Quando eu cair no chão, segure a minha mão, me ajude a levantar para lutar.

    Relação entre pais e filhos é um dos grandes temas narrativos, desde antes da Bíblia. Trata-se de uma história (em geral, poderosíssima) que todos podem contar _mesmo quem não os conheceu (neste momento, lembro de “O Menino que Inventou a Verdade”, livro do recém-falecido Pedro Bloch).

    Tim Burton, recentemente, deixou de ser filho (seu pai morreu há pouco) e tornou-se pai (com Helena Bonham-Carter, aqui transfigurada como uma bruxa). Em meio a esta revolução em sua vida, adapta um romance sobre um filho que vai visitar o pai, à beira da morte.

    Bem, não li o livro, mas o filme dá a impressão de ser uma adaptação muito mal-sucedida (ou a de que o livro é realmente ruim). O pai é mostrado como uma pessoa brilhante, extremamente carismática; nas entrelinhas, um homem comum, trabalhador, que conseguiu dar uma vida decente à família, dentro do sistema capitalista. Um de seus dons mais pronunciados é o de entreter e encantar as pessoas com as histórias maravilhosas do título em português. É o que ele faz com o filho, desde criança, e com todos aqueles que cruzam seu caminho.

    O filho, talvez por inveja, rompe com o pai, bem no dia de seu casamento. Ficam sem se falar por mais de três anos, até que a notícia da morte iminente do velho força a reaproximação. É aí que está a fragilidade do filme como narrativa: falta conflito. Burton se resume a ilustrar as histórias que formam a vida do pai, ou seja, ele não se arrisca, busca o caminho mais fácil, o gosto médio do público, fala ao hipocampo. Dá uma sensação desagradável de filme covarde, engana-trouxas, que não consegue encantar de verdade. Pena, porque Burton é bastante talentoso, e seu “Ed Wood” é um dos melhores filmes da década de 90. Vamos torcer para que o próximo seja melhor.

    “Abry”, despretensioso média-metragem do sul-mato-grossense Joel Pizzini (cineasta mais “poético” do que narrativo _basta ver seu “Caramujo-Flor”, de 1988), que eu vi na abertura da 17ª Mostra do Audiovisual Paulista, parte da mãe para enfocar o filho. O filme é de Lúcia Rocha, mãe de Glauber e avó de Paloma, a co-diretora. O verbo do título, com o “y” que o bifurca (não sabemos bem se é “abre” ou “abri”), faz menção a uma cirurgia para colocação de pontes de safena que a senhora octogenária sofreu, há pouco mais de um ano. O documentário a enfoca no hospital e faz um passeio por sua vida de artista: ela conta que não se casou com a grande paixão de sua vida; que era atriz, mas freqüentemente não era creditada; ouvimos algumas de suas poesias, enquanto vemos trechos de quase todos os filmes de Glauber (inclusive seu curta de estréia, “O Pátio”, e do proibido “Di”), além de imagens de Anecy Rocha _participam, também, Helena Ignez, Odete Lara, Pierre “Fatumbi”Verger etc. Para conhecer melhor a guardiã da memória do filho, como ela se intitula em uma carta a Jean-Luc Godard.

    Em “33”, documentário do mineiro Kiko Goifman que estréia na próxima sexta, é o filho que parte em busca da mãe. Goifman (xará de voz do Arnaldo Antunes) foi adotado pouco depois de nascer; aos 33 anos (e por sua mãe adotiva ter nascido em 1933), dá-se o prazo de 33 dias para encontrar a mãe biológica, fazendo um filme durante o processo. Usando da mídia (um diário na Internet abrigado pelo extinto no.com.br, hoje no.mínimo) como apoio ao projeto, o diretor, munido de uma mini-DV, passou os 33 dias entrevistando detetives, familiares, conhecidos e outros que foi encontrando pelo caminho, e, de noite, em plena época de apagão e pós-11 de setembro, capturava imagens noturnas que dão o tom de filme noir a seu documentário. A premissa é muito interessante, mas o filme não se resolve e deixa uma dúvida: o público vai se interessar em ver uma obra tão pessoal, quase narcisista, de um diretor que ainda não chegou ao estrelato?

    No filme de Woody Allen (que, ironicamente, chega perto de retratar o escandaloso fim de seu casamento com Mia Farrow), feito em 1992, com câmera na mão (o Dogma antes do Dogma), os pais da personagem de Juliette Lewis formam o único casal feliz da história, a única esperança. O casal encabeçado por Sidney Pollack é tristíssimo (ele, numa dessas crises de meia-idade, se envolve com a professora de aeróbica que acredita em astrologia; ela, fria, intelectual e de “bom gosto”, é outra personagem recorrente na obra de Woody), e o formado por Allen (bem menos histriônico do que de costume) e Farrow (descrita pelo primeiro marido como “passivo-agressiva”, ou seja, fica se fingindo de coitadinha e boazinha, mas sempre consegue o que quer _um retrato da verdadeira Farrow?) não fica muito atrás. Por fora, correm Lewis, a gostosinha da vez, e Liam Neeson, o bonitão-bonzinho. O filme está bem longe de ser ruim, mas, para quem conhece razoavelmente bem a extensa obra do diretor irá se confrontar com tantos de seus clichês (por exemplo, o escritor que tem uma relação de amor e ódio com sua obra e que, como veríamos de novo em “Celebridades”, perde os originais de seu livro) que não se surpreenderá com praticamente nada (a não ser a tal da câmera nervosa). Allen deve ter percebido que estava se repetindo demais e deu uma guinada de volta às comédias depois disso... É, às vezes, ter personalidade demais atrapalha.

    P. S. Falando em adaptações literárias, aí vai outro trecho do livro do Andrew, que aborda as relações entre o cinema e a literatura vistas por um dos maiores historiadores e teóricos da sétima arte, Jean Mitry:

    “Estruturalmente, o cinema está muito mais próximo, em natureza, do romance. Muitas das afirmações que hoje fazemos sobre cinema foram feitas sobre o romance quando ele se desenvolveu, no século XVIII. Desde o início, foi considerado uma forma ‘profana’, que estimulava a curiosidade natural das pessoas sobre o como as coisas funcionam. Mostrou pessoas comuns, caracterizando-as pelo discurso comum. Mostrou as amplas redes de interdependência (sociais e físicas) que existiam subjacentes a todas as situações e as ressaltou artisticamente através de um uso cuidadoso dos acidentes da vida. Posteriormente, sua estrutura sempre foi uma mistura de cenas, comentários e descrições. É uma forma pluralista, capaz de incorporar todos os tipos de escrita. Apesar de Mitry nunca escrever muito especificamente sobre a questão da organização cinemática, ele deduz que ela é, como o romance, livre. Os únicos constrangimentos são os que a protegem do absolutismo do mundo ‘totalmente significativo’ do teatro. O cinema e o romance devem criar mundos humanos, mas temos de ser sempre capazes de sentir o cerne dessa criação, a emergência do significado a partir do barro da experiência incipiente.

    E, aqui, o cinema tem a palavra final, pois é a arte em que nossas percepções adquirem significado e valor. Se o romance nos faz sentir a interdependência do homem ao homem ou dos homens ao mundo, o faz de modo muito abstrato, através de palavras e figuras do discurso; o cinema, por outro lado, o faz através do processo normal da percepção bruta. Daí a impossibilidade de uma verdadeira adaptação. Pode-se tentar preservar num filme a estrutura de um romance, mas se deve fazer isso por meios muito estranhos ao romance e à experiência da leitura. Na conclusão epigramática de seu estudo sobre esse problema, Mitry assegura que o ‘romance é uma narrativa que se organiza no mundo, enquanto o cinema é um mundo que se organiza em uma narrativa’. Novamente encontramos Mitry sintetizando tradições opostas, Assim como o ‘enquadramento’ age para nos revelar o mundo caótico da percepção, enquanto força esse mundo a padrões de significado estético, de igual modo à narrativa aberta do cinema organiza o mundo na tela de uma forma estética, mas possibilita ao mesmo tempo em que vejamos, através de sua organização, o mundo desorganizado que lhe é subjacente.”

    Na platéia