A gruta é mais extensa do que a gruta

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    terça-feira, setembro 30, 2003

    Hombre / Uma Bala para o General

    I shot a man in Reno just to watch him die.

    Falar de faroeste sempre cai bem, não? E olha que, com exceção das mulheres, eu não sou muito chegado em certas coisas consideradas "de macho", como armas, futebol e exame de próstata. Mas que eu gosto de um bom e velho bang-bang, ah...

    Pois "Hombre", de 1967 (inspirado num romance de Elmore Leonard), o último dos cinco filmes no qual Martin Ritt dirigiu Paul Newman, é um dos exemplos máximos de um subgênero do faroeste que surgiu após a Era de Ouro de Hollywood; além de contar com um protagonista que encarna o anti-herói e de introduzir os conflitos internos característicos do dito "western psicológico" (vertente cuja inauguração é apontada como sendo o clássico "Matar ou Morrer", de Fred Zinnemann), esta obra adiciona ainda mais um ingrediente que contribui para a maturidade do estilo: o politicamente correto.

    Ou seja, em "Hombre", os índios são os mocinhos, e os brancos, os vilões: ladrões, corruptos e usurpadores, assassinos, cruéis e violentos. Newman, pasmem, surge no filme como um índio apache, de olho azul e tudo. Na verdade, John Russell (o nome "branco" de seu personagem) foi seqüestrado pelos apaches quando criança, tornando-se um deles. Quando cresce, passa a trabalhar como policial dentro de uma reserva (sim, reservas indígenas não são novidade), onde testemunha as agruras que os apaches passam _a pior delas, a fome.

    Mas Russell tinha um pai adotivo branco e, quando ele morre, o nosso (anti)herói herda um hotel. Meio a contragosto, corta o cabelo, veste roupas "de branco" e vai resolver o pepino. Na volta, pega uma carruagem na companhia da mulher que cuidava do hotel, do administrador da reserva e de sua esposa (que não entende como os apaches são capazes de comer cachorros _uma postura bem Maria Antonieta), um casal de pacatos fazendeiros e um mal-encarado encrenqueiro, além do condutor. E é aí que a história começa de verdade _qualquer semelhança com "No Tempo das Diligências", o clássico de John Ford, não é mera coincidência.

    "Hombre" é um filme riquíssimo, e é impossível analisá-lo propriamente sem estragar as muitas surpresas que ele nos reserva. Passa longe da chatice, da afetação e da pretensão insuportáveis de "Dança com Lobos", embora seja um de seus antecessores, e dá a Newman um de seus personagens mais sérios e trágicos (o filme fica ainda mais tenso por causa da ausência de trilha sonora, normalmente um ponto forte dos faroestes clássicos). Independentemente de gênero, Martin Ritt realizou um grande filme, que eu recomendo com tremendo entusiasmo. Aliás, este filme é tão sensível e tão pouco sensacionalista que eu o recomendo inclusive para as meninas, que parecem não ser muito chegadas num bando de homens sujos trocando tiros... Tá, isso também rola aqui, mas há muito mais, acreditem.

    "Uma Bala para o General" (cujo título original, "Chucho: Quien Sabe?", é muito mais profundo), também de 1967, é outro filme antológico, representante de outro subgênero do faroeste: o "spaghetti", amado por uns, odiado por outros. Produções de baixo orçamento, feitas para exportação, que muitas vezes acabavam não sendo mais do que uma reunião de amigos que faziam filmes por farra e ainda ganhavam uma graninha com isso, os westerns de produção italiana são comumente mal vistos porque, realmente, muita coisa ruim foi feita, mas há os grandes e redentores exemplares do gênero, como os do mestre Sergio Leone, o "Django" de Sergio Corbucci e alguns outros mais.

    Este, de Damiano Damiani (que já dirigiu até a Bette Davis e hoje, octagenário, continua filmando), é a típica obra pela qual você não dá nada a princípio, mas acaba sendo conquistado, devido a sua verdadeira grandeza. Confesso que, durante a primeira meia hora do filme, eu estava bem cabreiro, pois ainda não havia compreendido o tom da atuação do milanês Gian Maria Volonté (um puta ator, pleno de preocupações éticas e políticas, que figura em vários clássicos, como "O Incrível Exército de Brancaleone" e "A Classe Operária Vai ao Paraíso") e não estava engolindo a tosquice da produção, que emprega atores amadores, que sequer sabem morrer direito. Mas, depois, mordi a língua...

    Volonté interpreta (de forma brilhante) o extremamente complexo Chucho, líder de um pequeno bando de ladrões mexicanos, que tem como irmão Santo, encarnado pelo malucão Klaus Kinski (sim, o alemão banca o revolucionário mexicano...). De meros assaltantes, eles passam a traficar armas para a Revolução, adicionando uma causa ao seu pendor natural pela infração da lei. Durante um fatídico assalto a trem, une-se a eles Gringo, um norte-americano interpretado por Lou Castel, outra figurinha fácil dos spaghetti (só faltaram mesmo o Franco Nero e o Lee Van Cliff...).

    A partir daí, o bando viverá uma série de aventuras amorais (uma das frases que definem o contraditório Chucho é "Minha palavra some com o vento" _olha a figura do anti-herói pintando com força novamente), mas sempre com um fundo histórico e político (anticapitalista e anti-EUA ao extremo; o Osama ia curtir), embalado por uma boa trilha sonora, cujo tema de Adelita, personagem da totosa Martine Beswick, fica na memória. Pode assistir sem medo _mas tenha paciência, pois é só no final (maravilhoso, costura tudinho) que o filme é salvo e torna-se uma obra-prima. Não compre sangue, compre dinamite!

    P. S. "Uma Bala para o General" lembra, por mais de um motivo, "Viva Zapata!", filme menor do gigantesco Elia Kazan, que faleceu esta semana, aos 94 anos. Há pouco tempo, quando recebeu um Oscar pelo conjunto da obra, foi aplaudido de pé por uns e hostilizado por outros, porque teria dedurado "comunistas" na época do mccarthismo... Eu costumo julgar a obra, nunca o homem, portanto Kazan entra para a história como o diretor de grandes filmes como "Sindicato dos Ladrões", "Vidas Amargas", "Clamor do Sexo", "Uma Rua Chamada Pecado", "O Último Magnata"... E eu o aplaudo de pé.

    P. P. S. Há poucos dias, vi, em DVD, "O Fabuloso Destino de Amélie Poulain", de Jean-Pierre Jeunet, diretor de "Delicatessen" e de "Alien: a Ressurreição". Curto e grosso: que filme bobo!

    P. P. P. S. A notícia que todos esperavam: o melhor programa de rádio do Brasil, o "Garagem", volta, mês que vem, na Brasil 2000. Yeah!

    quarta-feira, setembro 24, 2003

    O Homem do Ano / Lisbela e o Prisioneiro / Amarelo Manga

    Repetir repetir _até ficar diferente. Repetir é um dom do estilo.

    Eu nunca li um livro da Patrícia Melo. Nunca fui com a cara dela, sempre achei que ela fala besteira nas entrevistas. É bastante provável que eu esteja sendo injusto e preconceituoso, mas simplesmente não me sinto atraído por uma escritora que se diz discípula de Rubem Fonseca. Nada contra o véio Rubão: li alguns livros dele, foram leituras agradáveis, embora não muito marcantes. O velhinho também gosta de sexo, pelo menos.

    Pois muita gente me fala muito bem de “O Matador”, livro que serve de base para “O Homem do Ano”, filme roteirizado pelo Rubão e dirigido por seu filho, Zé Henrique Fonseca, um dos capos da Conspiração Filmes. Tem gente que até diz que esperou anos para ver este filme. E que decepção eles devem ter sentido, hein? Ainda bem que eu não tinha expectativa alguma a respeito da obra. E olha que a Conspiração já produziu uma bela adaptação do Rubão, o assistível “Bufo & Spallanzani”...

    Sem delongas, vamos aos pontos positivos do filme: Murilo Benício está bom (e chega a brilhar na cena do casamento, quando faz um “inspirado discurso poético”); Cláudia Abreu está gostosíssima no início do filme, pena que aparece pouco; Mariana Ximenes, idem; Natália Lage, que me parece OK como Érica, completa o núcleo principal de mulher bonita (a tatuagem de escorpião bem naquele lugar do corpo me lembra muito de alguém que eu conheço... será coincidência?). Mas a melhor coisa do filme é, sem dúvida, a trilha sonora de Dado Villa-Lobos, que está mandando muito bem nessa área.

    Vamos aos pontos ruins: tenho a impressão de que o roteiro deixou a desejar, mas o que realmente é de última categoria neste filme é a fotografia. Nada contra o artificialismo descarado na iluminação; De Palma fez isso de forma brilhante em seu “Um Tiro na Noite”, por exemplo. Infelizmente, aqui em “O Homem do Ano”, o resultado é asqueroso. Ainda assim, dizer que se trata de “cinema publicitário” é uma besteira de marca maior, dita por muita gente que, supostamente, “manja do assunto”.

    Ainda é notável a presença de novos atores-fetiche do cinema nacional, os bons Lázaro Ramos e Wagner Moura (cadê o Matheus? Ah, este está em “Amarelo...”), com veteranos como José Wilker, Jorge Dória e o consagrado Pereio, primeiro e único. Também há presenças inusitadas, como o tal do Moska (bem mais inofensivo como ator do que como músico) e o velho Agildo Ribeiro, felizmente num papel não-cômico. Chega, né?

    “Lisbela e o Prisioneiro”, terceiro longa do craque televisivo Guel Arraes (responsável por muito do melhor da programação da Globo nos últimos vinte anos), é um filme muito bom porque, diferentemente de “O Homem do Ano”, cumpre o que promete: é uma comédia eficientíssima, ou seja, faz rir. Tem gente que reclamou, dizendo que é muito parecido com “O Auto da Compadecida” (não vi “Caramuru”), mas isso é tolice, é como dizer que “Contatos Imediatos do Terceiro Grau” é parecido com “E. T.”...

    É claro que podemos elocubrar sobre toda a metalinguagem que o filme adota e sobre o caráter ao mesmo tempo irônico e, quiçá, “vendido” (a bilheteria de Lisbela, produzido pela mulher do Caetano Veloso, vai muito bem), ao mirar nas famosas comédias românticas, este gênero que costuma ser tão açucarado, mas que, em Lisbela, felizmente, é um pouquinho mais apimentado, como convém à tradição nordestina... mas eu não quero fazer isso aqui, fica para os comentários.

    O que me faz recomendar este filme é simplesmente a garantia de diversão, encabeçada por um ótimo Selton Mello (que se firma como o ator preferido de Arraes), além de Marco Nanini, do engraçadíssimo Tadeu Mello (que substitui o incrível Zacarias no triste “Turma do Didi”), da gostosa Virginia Cavendish, de André Mattos (que fez o D. João VI naquele lixo “O Quinto dos Infernos”) e de Bruno Garcia, que, apesar de não fazer feio como o pândego vilão Douglas, está muito pior do que o Edson Celulari, que estava no elenco da adaptação televisiva (aliás, uma das melhores piadas da TV não foi para o cinema: quando Douglas resolve voltar para o Rio, o vemos trabalhando em uma obra e dizendo gracinhas para as cariocas, com um sotaque nordestino arrastadíssimo _o que não apenas é engraçado, mas uma sacada poética muito interessante, afinal, toda a caracterização do personagem poderia ser apenas fruto de sua imaginação...). Enfim, uma comédia muito boa situada no Nordeste brasileiro, infinitamente melhor do que aquela porcaria que é “Deus É Brasileiro”.

    “Amarelo Manga” traz um Nordeste menos folclórico e edulcorado, mas igualmente brasileiro, ao adotar um naturalismo digno de um “A Carne”. Eu não diria que o filme quis recuperar um estilo mais abusado de cinema, ao partir da premissa (bastante verdadeira, por sinal) de que “o ser humano é estômago e sexo”, ou seja, apesar de tudo, não passamos de uns animais, com necessidades fisiológicas bastante prementes, que precisam ser saciadas com muito mais urgência do que as ditas necessidades “do espírito”. Mas que pode causar desconforto em muita gente, bem, é verdade.

    Mas o filme não me causou desconforto, e sim decepção. Por um lado, é bom quando o filme se torna um fenômeno de mídia, ao causar bafafá em festivais, bem antes de ser lançado. Por outro, é sempre uma merda quando a gente cria uma expectativa em torno do filme e se decepciona. “Amarelo Manga” se deu mal nessa: após finalmente conseguir estrear em circuito comercial, vem desencantando muita gente.

    O que se elogia, em geral, é que o filme espelha a personalidade de seu diretor, Cláudio Assis (que, nas entrevistas, aparenta ser bastante arrogante _o que não quer dizer que seja), o que é indício de honestidade artística _o que não é nada desprezível, óbvio. Mas parece claro que ainda há muito o que afinar (tudo bem, é o primeiro longa do cara...).

    O problema principal do filme, a meu ver, é o roteiro: a pobreza do texto compromete em demasia as atuações, entregues por um elenco respeitável, mas igualmente decepcionante. Chega a ser constrangedor ver o Jonas Bloch gritando “do caralho!” de maneira tão artificial. A narrativa é muito frágil, os atores explicam suas intenções, em vez de demonstrá-las por meio de suas ações. A falta de sutileza é generalizada, o que não é um defeito em si, mas que, no caso específico de “Amarelo...”, acaba sendo um grande revés. O que realmente salva um pouco da história é o enfoque dado à religião: vemos o crescimento das igrejas evangélicas, cuja picaretagem é mais aparente, aliado à decadência do catolicismo mais tradicional _o padre sem igreja (com suas janelas vedadas por tijolos) é, de longe, o melhor personagem do filme.

    O melhor mesmo são as imagens documentais do cotidiano do Recife (onde eu morei em 1997, uma experiência agradabilíssima e que deixa saudades), com trilha sonora de Jorge du Peixe e Lúcio Maia, da Nação Zumbi (sem falar de uma intervenção muito legal de Fred Zero Quatro, do mundo livre s/a, que canta um trecho de “Édipo, o Homem Que Virou Veículo”, finalizando com um polêmico “é tudo gente boa, é tudo Osama”), o que pode dar a Assis o rótulo de cineasta “manguebit”.

    Uma observação: na sala em que vi o filme, logo no início do mesmo, quando apareceram os patrocinadores da obra (que teria custado menos de R$ 500 mil, módica quantia para um longa), feita com verbas das prefeituras do Rio, de São Paulo e do Recife, além de empresas estatais como Eletrobrás e BNDES, entre outros, alguém da platéia não se segurou e gritou: “Já ficou rico!”. Ê, Brasil!

    P. S. Foi total obra do acaso, mas, domingo passado, tive a alegria de conhecer pessoalmente a pequena Catarina. Ela é linda! E parece que a maternidade faz bem, mesmo: eu nunca tinha visto a mãe dela (a quem reencontrei após mais de dois agitados anos de distância) tão bonita. Felicidades para elas!

    sexta-feira, setembro 19, 2003

    Cidadão Kane / Othello / O Processo / F for Fake

    Don't you think it's rather funny I should be in this position? I'm the one who's always been so calm, so cool, no lover's fool, running every show... She scares me so.

    Como prometido, Orson Welles (1915-1985). Um artista multifacetado, cuja vida é envolta em uma série de mitos (ele teria sido músico na infância, pintor e, pasmem, toureiro na adolescência...), comumente rotulado como gênio maldito. É irônico: no P. S. do texto abaixo, coloquei um artigo de Welles lamentando o abandono que Griffith sofreu durante seus últimos anos; com Welles aconteceria o mesmo: após algumas experiências frustradas em Hollywood, ele partiu para a produção independente no exterior dos EUA, passando o resto de sua vida a buscar financiamento para seus filmes _fazendo, inclusive, uma série de pontas como ator em tudo quanto é tipo de película, para sobreviver, deixando muitos projetos inacabados. Sad but true, baby.

    E olha que essa vida profissional desgraçada teve um início não menos do que brilhante: em meados da década de 30, o jovem Welles (com cerca de 21, 22 anos) montou, na Broadway, uma heterodoxa versão de “Macbeth” com um elenco de atores negros. Não muito depois, ele voltou a causar escândalo com um programa radiofônico (o meio de Welles, por excelência _seus filmes têm grande influência do rádio, não é à toa que o gordão barbudo é chegado numa narração) baseado em “A Guerra dos Mundos”, que disseminou pânico em uma parte da população de Nova York.

    Fenômeno de mídia, Welles foi cooptado por executivos da RKO (que acabaria sendo comprada por uma atriz que Welles tinha proposto para um filme, mas foi rejeitada: a brilhante comediante Lucille Ball) com uma proposta irrecusável: pela primeira vez no “studio system”, um diretor teria decisão final na montagem do filme _o famoso “final cut”. Welles sequer permitiu que os executivos do estúdio vissem os copiões ou as filmagens, realizadas praticamente em segredo (diz a lenda que eles fingiam que estavam ensaiando, enquanto filmavam, e que, quando os chefões apareciam, eles paravam tudo e começavam a jogar softball...). Coisa que nem veteranos importantíssimos, como Cecil B. de Mille, haviam conseguido. E o cara era apenas um moleque de 24 anos que nunca tinha feito um filme... Desnecessário dizer que a inveja generalizada fez com que Welles se tornasse persona non grata antes mesmo de começar a trabalhar.

    Um de seus primeiros projetos, que não vingou, era justamente uma adaptação de “Coração das Trevas”, de Joseph Conrad _obra que inspirou o “Apocalypse Now” de Coppola_, feita totalmente com câmera subjetiva, ou seja, veríamos a história através dos olhos do protagonista. Mas o desafio era grande demais, e o projeto foi trocado por uma idéia chamada “American”, que se tornaria “Citizen Kane” (1941).

    Todo mundo está careca de saber que Kane é inspirado na figura de William Randolph Hearst (1863-1951), que acabou sendo ligado ao nosso Roberto Marinho por aquele documentário muito discutido e pouco visto da Channel Four. Dono de uma vasta cadeia de veículos de comunicação, o Chatô dos EUA não deu trégua para Welles, fazendo com que o filme, que tinha tudo para ser um sucesso, fosse mal e porcamente exibido, além de não ir tão bem no Oscar _levou apenas o de roteiro original.

    Para o filme, Welles trouxe seus amigos do Mercury Theatre, estreantes em cinema: gente como a Agnes Moorehead (chamada por Welles no fantástico trailer de “Kane” de “a melhor atriz do mundo" _e que ficaria famosa por interpretar a bruxa-sogra da série “A Feiticeira”, uns vinte anos depois), Dorothy Comingore (que estava grávida, forçando Welles a colocá-la em cena de modo a não mostrar a barriguinha), Joseph Cotten (que protagonizaria “A Sombra de uma Dúvida”, o filme preferido de Hitchcock) e o figura Everett Sloane, entre outros. Mas, para a excelente e revolucionária fotografia, que deixa tudo em foco, brincando com a perspectiva, e desenha uns movimentos de câmera que deixam o babaca do David Fincher no chinelo (vocês viram o Inácio Araújo na Ilustrada de quinta, descendo a lenha em “Se7en” e em “Clube da Luta”? Boa, velhinho!), chamou o experiente Gregg Toland (que já havia ganhado um Oscar por “O Morro dos Ventos Uivantes”); para a edição, Robert Wise, que depois dirigiria clássicos como “Amor, Sublime Amor” e “A Noviça Rebelde”, entre outros (as transições de cenas são fantásticas); para o roteiro, Herman J. Mankiewicz; para a trilha sonora, o grande Bernard Herrmann (que foi indicado ao Oscar, mas perdeu para... ele mesmo!) and so on...

    Em suma, “Cidadão Kane”, notório campeão dessas listas de melhores filmes de todos os tempos... realmente merece. Acho que não o coloquei naquele meu top 20 por pura birra, não com o filme, que eu amo e já vi várias vezes, mas com essa unanimidade toda. Trata-se de uma obra esplêndida, muitíssimo feliz, dotada de uma narrativa concisa, aliada a uma grande força poética. “Kane” é um poema fílmico, sem, por isso, ser desagradavelmente pretensioso ou hermético. Da tremenda atuação de Welles (que usa espartilho para parecer mais magro) ao fantástico enigma de Rosebud (o nosso amigo Spielby pagou US$ 60 mil, em um leilão realizado em 1982, por um exemplar do dito-cujo), passando pelo fascinante cinejornal “News on the March”, trata-se de uma obra-prima imortal, jamais igualada pelo diretor _embora ele afirme que, se não tivessem cortado 40 minutos de “Soberba”, ele seria superior a “Kane”...

    Depois de “Kane”, vocês sabem, Welles caiu em desgraça. “Soberba” foi mutilado enquanto ele estava aqui no Brasil, fazendo o inacabado “It’s All True”. Seus próximos projetos em Hollywood, como o também famoso “A Marca da Maldade”, sofreriam interferências mil, nunca saindo do jeito imaginado pelo artista. Tsc, tsc.

    Daí, Welles partiu para a produção independente, aos trancos e barrancos. E foi assim que ele fez “Othello” (1952), a segunda e última adaptação de Shakespeare que Welles realizou para o cinema (em 1978, Welles dirigiria um documentário chamado “Filming ‘Othello’”, rememorando a atabalhoada produção). Apesar da ótima cenografia e da fotografia (as locações são lindas, e a iluminação beneficia muito o rosto pintado de Welles), o filme me decepcionou _e o fato de eu não gostar tanto assim da peça, longe de ser a minha favorita do velho bardo, provavelmente influiu. Mas não deixa de ser admirável a tenacidade e a criatividade do diretor nos momentos de aperto: a falta de dinheiro fez com que Welles filmasse uma importante cena num banho turco, justamente porque não tinha mais dinheiro para os figurinos... Ah, outra curiosidade: Welles filma o texto de Shakespeare da maneira que o nosso Machado de Assis havia imaginado, mais de meio século antes...

    Em “O Processo”, o processo foi semelhante... Filmado na França, a adaptação do romance incompleto de Kafka traz um elencaço: o grande Anthony Perkins, que Hitchcock havia transformado em estrela com “Psicose”, protagoniza, tendo a companhia da belíssima Romy Schneider, de Jeanne Moreau e do próprio Welles (mais uma vez no papel de advogado). Trata-se de um filme escuro, com grande constraste de luz e um grande senso de humor negro _Welles afirma que quis dar ao filme uma atmosfera onírica. Se o resultado pode decepcionar algumas pessoas (Peter Bogdanovich, um dos maiores amigos de Welles em seus últimos anos, não gosta deste filme), ele é muito melhor do que a versão dos anos 90 e do que aquele filme metido a besta do Soderbergh. E, pelo menos, Welles teve liberdade para fazer o filme do jeito que quis.

    Mas grande filme mesmo é este fantástico “F for Fake”, chamado no Brasil de “Verdades e Mentiras” (e não “É Tudo Mentira”, como alguns gostam de dizer). François Truffaut é quem diz que este é um dos dez melhores filmes de um diretor norte-americano feitos nos anos 70, e não sou eu quem vai discordar. A verdade é que, após três minutos do começo da bagaça, eu já sabia que estava diante de uma obra-prima...

    É o seguinte: o cineasta François Reichenbach (que já havia dirigido um perfil de Welles para a TV francesa) estava preparando um documentário sobre um tal de Clifford Irving, que teria efetuado uma fraude, relativa a uma biografia do excêntrico milionário ermitão Howard Hughes. Welles viu o material e o comprou, adaptando-o para um “documentário fictício”, que aborda o tema das fraudes, enfocando personagens como o pintor Elmyr de Hory (que falsifica quadros de gente como Matisse e Modigliani, para em seguida queimá-los, dizendo “lá se vão US$ 50 mil...” _Elmyr acabou ficando tão famoso que suas falsificações se tornaram valiosas e começaram a ser... falsificadas!), o avô de sua “amiga” Oda Kojar, que teria falsificado Picassos e o próprio Welles, que relembra a sua experiência com “A Guerra dos Mundos”. Um filme brilhante, onde nos questionamos o tempo todo sobre o que é falso e o que é verdadeiro _a começar pelo próprio Welles, que começa fazendo truques de prestidigitação... Se é verdade que “o poeta é um fingidor”, então Orson acertou em cheio.

    P. S. Jean Renoir, em entrevista a Peter Bogdanovich, fala de Orson Welles:

    “Li um artigo de Marcuse e, segundo a teoria dele, os filmes mudos foram feitos para as classes trabalhadoras porque conseguiram atrair todas as camadas, o que talvez explique a grande popularidade de atores como Chaplin e Keaton. Mas, hoje em dia, o homem da classe trabalhadora tem dois carros e manda os filhos para as melhores escolas; na verdade, a classe trabalhadora se transformou na classe média. E quase todos os filmes atuais e dos últimos vinte anos têm sido feitos para a classe média. Aliás, a maioria dos diretores _mesmo os grandes_ é de burgueses. Orson Welles está entre um pequeno punhado de aristocratas. E seus filmes são trabalhos aristocráticos. É provável que seja esse o motivo de quase nunca serem sucesso comercial. Orson também é um grande ator, mergulha de tal forma num papel que, enquanto está dentro da pele daquela personagem, até sua personalidade própria cessa de existir. Gosto tanto do trabalho de Welles que gosto inclusive quando ele não é muito bom, porque em todos os momentos ele permanece um artista.”

    P. P. S. A epígrafe do texto sobre “Crepúsculo dos Deuses”, “A Malvada” e “Os Desajustados” é de autoria do grande Johnny Cash _talvez o maior nome do country norte-americano, ao lado do Hank Williams. Um grande artista.

    quarta-feira, setembro 10, 2003

    Macbeth / A Paixão de Joana D’Arc

    Life's but a walking shadow, a poor player that struts and frets his hour upon the stage and then is heard no more: it is a tale told by an idiot, full of sound and fury, signifying nothing.

    Ou, como diria Carlos Drummond de Andrade: êta vida besta, meu Deus.

    É provável que muitos fãs do Nick Hornby não saibam que "A Vida É Cheia de Som e Fúria" foi assim batizada por causa desta citação da temível "peça escocesa" (os supersticiosos do teatro dizem que pronunciar o título da obra dá azar), do velho bardo inglês adorado pelo Harold Bloom e pelo Neil Gaiman. Claro que não só o teatro se aproveita do legado de Shakespeare _o cinema já enjoou de interpretar (e de adaptar _o "Ran" de Kurosawa é um "Rei Lear" espetacular) suas obras-primas.

    Além dos shakesólatras assumidos como Laurence Olivier, Orson Welles (que também adaptou "Macbeth", uma versão de baixíssimo orçamento) e Kenneth Branagh, o nosso amigo estuprador de garotinhas Roman Polanski também entrou na brincadeira.

    Era fim dos anos 60 (o filme foi lançado em 1971), aquela fofura do Charles Manson tinha tocado o terror na gostosa da Sharon Tate (que estava grávida de oito meses), então não é de estranhar a escolha de Polanski, que, com financiamento de Hugh Hefner, o homem mais invejado do planeta Terra, deu ao mundo esta razoavelmente fiel adaptação da sangrenta história do nobre que, instado por sua cruel mulher, assassina a torto e a direito para conquistar e se manter no poder.

    Mas nem vou ficar discutindo a riqueza de Shakespeare aqui _"Macbeth", assim como a maioria de seus trabalhos, vem sendo estudada e reestudada até hoje e o será por muito tempo, duvida? O que eu quero mesmo é indicar este filme, repleto de violência, de pesadelos horripilantes e de crueza explícita, já que estou cheio de amor em meu coraçãozinho desempregado.

    O "Macbeth" de Polanski não só vale a pena pelos seus belos figurinos e cenografia ou pela incrível coreografia dos duelos entre cavaleiros, mas, principalmente, pela atuação magistral de Jon Finch (o azarado protagonista de "Frenesi"). O cara é muito bom, dá umas nuances incríveis ao personagem, mesmo durante as cenas de porrada.

    Fora algumas outras seqüências de destaque, como aquela em que Macbeth vai visitar as bruxas (que aqui não são três, mas inúmeras, todas velhas, feias, deformadas e peladas) e se depara com os descendentes de Banquo contidos em espelhos e também a da morte do filho de Macduff, antecedida de um famoso diálogo, no qual a criança afirma que os desonestos deveriam enforcar os honestos... Também é notável a bela Francesca Annis, que tem alguns ótimos momentos na pele de Lady Macbeth _interessante a visão da personagem, que associa o mal à masculinidade e ofende o marido quando ele reluta em praticar os covardes homicídios.

    Ainda nesta seara de bruxas, de morte e de histórias inspiradas em fatos (sim, "Macbeth", uma encomenda de um rei a Shakespeare, foi inspirada numa história real), vem bem a calhar esta magnífica e controvertida obra-prima do cinema (ainda em sua fase muda, ou melhor, sem som sincronizado), "A Paixão de Joana D’Arc", de 1928 (quem me falou deste filme pela primeira vez foi, vejam só, a Cat Power...).

    Um dos filmes mais celebrados do mais famoso diretor dinamarquês, Carl Theodore Dreyer (outros longas de destaque são "Vampyr", de 1932, e "A Palavra", de 1955), é também uma das muitas adaptações (Bresson, Preminger, Fleming e outros também fizeram das suas) do histórico processo de julgamento de Joana D’Arc _que durou cerca de um ano e meio e consistiu de 29 interrogatórios, mas que aqui aparece condensado em um só dia.

    Dreyer (considerado o maior mestre de Godard _em "Viver a Vida", Anna Karina chora ao ver este filme_ e de Bergman), que foi jornalista e cobriu tribunais, consultou os legítimos documentos do processo para construir o seu filme, que inova incrivelmente nos enquadramentos (é quase todo em primeiro plano) e na incrível fotografia de Rudolph Mate (discípulo do grande Alexander Korda e do expressionista Karl Freund _ele também trabalhou com Fritz Lang, René Clair, William Wyler, Howard Hawks, King Vidor, Alfred Hitchcock, Ernst Lubistch e outros, além do famosíssimo "Gilda", que imortalizou a Rita Hayworth).

    Ainda se destacam a presença de Antonin Artaud (que atuou em clássicos como o "Napoleão" de Abel Gance e roteirizou uma das obras mais conhecidas do cinema surrealista francês, "A Concha e o Padre" _cujo resultado final ele abominou, diga-se), celebrizado por seu Teatro da Crueldade e por sua posterior loucura, e a de Maria Falconetti, famosa atriz de teatro, nascida na Córsega para morrer em Buenos Aires, aqui em seu segundo e último papel no cinema (reza a lenda que fazer este filme teria sido traumático para ela...).

    Os figurinos e cenários (feito pela mesma equipe do clássico alemão "O Gabinete do Dr. Caligari") são simples, como se não quisessem aparecer mais do que os atores, figuras interessantíssimas, quase caricatas (embora estivessem todas sem maquiagem), como as que Fellini usaria em seus filmes. Mas nada consegue ofuscar a dolorosa atuação de Falconetti, neste filme que busca mostrar a purificação espiritual sob um viés realista ao extremo. O resultado é encantador, emocionante, fantástico. Taí um filme para ter em casa, assistir mil vezes e se deslumbrar em todas elas.

    P. S. Já que falamos de Orson Welles (quem nem gostava tanto assim de "A Paixão de Joana D’Arc", mas que admirava intensamente o Alexander Korda), aí segue um trecho de um artigo do mesmo sobre D. W. Griffith, responsável pelo longa-metragem mais influente (apesar da controvérsia a respeito do racismo) da história do cinema, "O Nascimento de uma Nação":

    "Encontrei-me uma única vez com David W. Griffith, e não foi um encontro feliz. Um coquetel numa tarde chuvosa do último ano da década de 30. A Idade de Ouro de Hollywood fora, entretanto, uma década triste e vazia para o maior de todos os seus diretores. A imagem em movimento que ele praticamente inventara havia se tornado um produto _produto exclusivo_ da quarta maior indústria norte-americana, e nas linhas de montagem das monstruosas usinas de filmes não havia lugar para Griffith. Era um exilado em sua própria cidade, um profeta sem honra, um artesão sem ferramentas, um artista sem trabalho. Não admira que me odiasse. Eu, que nada sabia sobre filmes, acabara de ter garantido o maior grau de liberdade jamais incluso num contrato em Hollywood. Era o contrato que ele merecia. Dava para ver que ele não estava nem um pouco velho para isso, e não podia culpá-lo por achar que eu era jovem demais. Ficamos embaixo de uma daquelas árvores de Natal cor-de-rosa que eles usam por lá, tomamos nosso drinque e olhamos um para o outro através de um abismo sem esperança. Eu o amava e idolatrava, mas ele não precisava de um discípulo. Precisava de um emprego. Nunca cheguei realmente a odiar Hollywood, exceto pelo que fizeram com D. W. Griffith. Cidade nenhuma, indústria nenhuma, profissão nenhuma, nenhuma forma de arte deve tanto a um único homem. Todos os cineastas que vieram depois fizeram justamente isso: vieram depois dele. Ele deu o primeiro close e movimentou a primeira câmera. Foi, porém, mais do que um fundador e um pioneiro, e sua obra há de resistir, junto com suas invenções. Os filmes de Griffith estão hoje menos obsoletos do que há um quarto de século, quando bebemos lado a lado debaixo de uma árvore de Natal cor-de-rosa, e eu fracassei, abominavelmente, porque não consegui expressar o que ele significa para mim _para todos nós. Falhei de novo. Ele está além de homenagens."

    Na platéia