A gruta é mais extensa do que a gruta

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    sexta-feira, fevereiro 20, 2004

    O Gabinete do Dr. Caligari / O Golem / Nosferatu (1922 e 1979) / Fausto

    Neste mundo de tantos espantos, cheio das mágicas de Deus, o que existe de mais sobrenatural são os ateus...

    Há cerca de um ano, escrevi, neste site, um texto bem fraquinho (como de praxe neste espaço específico) sobre alguns filmes que passaram num festival da Cinemateca que enfocava a UFA, estatal alemã que produziu obras importantíssimas, que inspiraram cineastas do mundo inteiro e acabaram recebendo, emprestado das artes plásticas, o rótulo de expressionistas.

    Considera-se o euro, quero dizer, o marco inicial deste estilo um filme de Robert Wiene, diretor que trabalhou bastante durante o início do século passado, mas que, ao contrário de Lang, Murnau, Lubistch e outros colegas, não emplacou outra obra-prima como “O Gabinete do Dr. Caligari” (1919). O filme (um média-metragem, uma hora de duração), bastante inteligente e com um final surpreendente e empolgante (seu modelo é seguido até hoje), aproveita-se de seu enredo, baseado em uma lenda do século XI, para promover uma fuga do real, usando cenários interessantíssimos, matéria de pesadelo. Como se não bastasse, as caracterizações de Caligari e do sonâmbulo sensitivo Cesare (Werner Krauss e Conrad Veidt, respectivamente) dão o tom das obras-primas posteriores _feitas durante um período terrível, já que o país havia sido derrotado na guerra e enfrentava grande crise econômica.

    Por exemplo, “O Golem” (a versão que eu vi é a de 1920, a terceira levada às telas por Paul Wegener, que é também co-roteirista e intérprete do monstro _a fotografia, outro destaque, é do Karl Freund) também se apropria de uma lenda alemã (no caso, judaica) para retratar o seu país. Sintam o drama: o imperador decreta a eliminação dos direitos de todos os judeus (lembra alguma coisa?); para proteger seu povo, um mago invoca o demônio Astaroth e pede que ele lhe revele a palavra mágica que trará vida a um ser feito de argila (que se rebelará depois de um tempo, graças ao coisa-ruim). No meio desta história, um romance proibido entre uma “donzela” (as aspas estão aí por pura desconfiança de minha parte) e um conde (não o Drácula, calma).

    Vejam que há uma relação entre essas obras (e a influência que elas tiveram sobre a série de filmes de terror que seria mania nos anos 30): o Golem lembra muitíssimo a história de Frankenstein, o Prometeu moderno (ser que acabou entrando para o imaginário em uma mesma categoria que os vampiros, os lobisomens, as múmias etc.). Há uma cena, na qual o monstro, já descontrolado e furioso, demonstra empatia com crianças _James Whale faria igualzinho, poucos anos depois.

    O famoso “Nosferatu” (1922), de Friedrich Wilhelm Murnau (que tem como epíteto mais comum “Uma Sinfonia de Horror”), chupa, na cara dura, o “Drácula” de Bram Stoker. A história é rigorosamente a mesma (quem viu o filme do Coppola vai ter vários “déjà vus”), embora os nomes sejam trocados (em vez de Jonathan, Hutter; Drácula vira Orlok; Ellen no lugar de Mina). O que entrou para a história, aqui, é a caracterização impressionante de Max Schreck, que, por sinal, aparece bem pouco (mas o suficiente). Até hoje, trata-se de uma figura de causar medo. Claro que não é só isso; a direção de Murnau é muito inventiva, há experiências com filtros e trucagens de edição que dão ao filme uma atmosfera única.

    A refilmagem/homenagem de Werner Herzog (“Nosferatu, o Fantasma da Noite”), de 1979, parece aproximar-se mais do livro de Stoker, mas apenas parece (por causa da adoção dos nomes normais dos personagens _apenas há uma curiosa troca entre Mina e Lucy). Herzog, que sempre afirmou que seus filmes vêm da dor, nunca do prazer, convida o espectador a uma viagem por planos de longa duração, com uma trilha sonora poderosa. As cenas fantásticas são muitas, como a de Lucy e Drácula perante o espelho e a dos caixões das vítimas da peste sendo carregados pela praça, além da engraçadíssima libertação de Jonathan (Bruno Ganz) pela empregada. A caracterização de Klaus Kinski como o bichão não é tão marcanta quanto a de Schreck (ou mesmo a de Willem Dafoe em “A Sombra do Vampiro”), mas é claro que não é ruim; mas quem rouba a cena mesmo é Isabelle Adjani, bela e alvíssima, sexy até em alemão. Vai bem com salsichão.

    Voltando a Murnau, “Fausto” (1926) é seu último filme feito na Alemanha (pouco depois ele foi a Hollywood, onde rodou sua obra-prima “Aurora”, que ainda não consegui ver), e lembra bastante “O Golem” em alguns aspectos. A produção é bem mais acabada do que em “Nosferatu” ou no maravilhoso “A Última Gargalhada” (meu Murnau preferido, disparado), trata-se de um filme extremamente bem-feito, com trucagens bastante refinadas. O destaque óbvio é o Emil Jannings como Mephisto (irônico como ele acabaria se unindo aos nazistas), com uma caracterização bem caricatural, com aquela pena enorme no chapéu e a espada fazendo vez de rabinho... O problema é que, depois de um início fenomenal, a história fica meio arrastada (o filme é longo, duas horas), e o resultado final fica a desejar, principalmente se o compararmos com o grande épico do Fritz Lang, “Os Nibelungos” _ou mesmo com a grande peça de Goethe, que o inspira.

    P. S. Chegamos aos tempos de hoje, tempo de “Adeus, Lênin!”. Um filme que não se resolve: não se decide entre comédia de erros, drama familiar ou filme político. Enfim, bonitinho, não mais. Mesmo a tão propalada cena da estátua ficou aquém do que eu esperava...

    P. P. S. O livro clássico sobre o expressionismo alemão, “De Caligari a Hitler” (1947), foi escrito por Siegfried Kracauer (outro que saiu por aqui, bem mais recente, foi “A Tela Demoníaca”, de Lotte Eisner), ironicamente, um teórico ligado ao realismo cinematográfico. A seguir, um trecho do ótimo “As Principais Teorias do Cinema”, de J. Dudley Andrew, que indica algumas diferenças entre as idéias dele e as do mais conceituado teórico realista, André Bazin:

    “Kracauer assume que o cinema deve registrar as ocorrências cotidianas da vida por causa de sua afinidade com a realidade empírica. Bazin, por outro lado, tem um ponto de vista muto mais complexo sobre a realidade, concebendo-a como multinivelada. Para ele, a realidade empírica contém correspondência e inter-relacionamentos que a câmera pode achar. Além disso, o homem criou um mundo político e artístico acima da ‘realidade natural’, e isso também está à disposição da câmera. Assim, embora Bazin criticasse as composições abstratas e pictóricas em filmes, apoiava totalmente os documentários sobre pinturas e pintores. De modo semelhante, apesar de sua teoria, como a de Kracauer, não ter lugar para o expressionismo alemão, Bazin defendeu um filme tcheco sobre um campo de concentração que tinha a aparência exata do expresionismo alemão, porque seu terrível cenário, esse ‘mundo de Kafka ou, mais curiosamente, de Sade’, tinha uma fidelidade interna que o transformava claramente não no desejo de um artista, mas em um resultado da lógica de uma máquina política. O expressionismo, nesse caso, existe não no cinema, mas na história. O cinema apenas o registra.”

    P. P. P. S. A minha época preferida do ano, o Carnaval, chegou, e eu, é claro, me vou. Desta vez, para a praia, onde estou certo de encontrar muita luxúria, depravação e bicho geográfico. Sei lá quando volto, eu quero é rosetar. Feliz Carnaval!

    domingo, fevereiro 15, 2004

    O Mágico de Oz / Labirinto, a Magia do Tempo / Veludo Azul

    Há um mundo bem melhor, todo feito pra você. É um mundo pequenino, que a ternura fez.

    Direto ao assunto: e daí que o filme de Victor Fleming (de “...E o Vento Levou”) que eternizou a Judy Garland tenha uma história super básica, e que a gente perceba perfeitamente os fundos pintados do estúdio ou que vejamos claramente o fiozinho que sustenta o rabo do Leão Covarde? Passados 65 anos, “O Mágico de Oz”, que eu vi pela primeira vez na “Sessão da Tarde” (quando a programação, apesar de passar filmes fracos, volta e meia despejava na molecada clássicos como este, além de Chaplin, Jerry Lewis, o “Robin Hood” com Errol Flynn, “O Pássaro Azul” com Shirley Temple etc.) ainda é uma diversão de primeira para pais e filhos.

    E não é só a música, realmente maravilhosa (as letras das canções que versam sobre a morte da Bruxa Má do Oeste, os objetos de desejo de cada um dos companheiros de Dorothy e a clássica “we’re off to see the Wizard, the wonderful Wizard of Oz” são riquíssimas em rimas e em aliterações), que faz deste filme um espetáculo: as caracterizações das personagens são perfeitas, da bruxa aos (ótimos) Munchkins, passando pelo Totó. Outros destaques vão para as atuações de Ray Bolger como o Espantalho (por sua habilidade como dançarino), Bert Lahr como o Leão Covarde (por seu talento para a comédia) e para Margaret Hamilton como a Bruxa Má do Leste (pelo physique du rôle). Ah, e aquele lance da sincronicidade entre o filme e “Dark Side of the Moon”, do Pink Floyd, é bacaninha.

    “Labyrinth”, de 1986, eu vi no cinema e não fiquei muito impressionado (lembro de ter gostado mais de “O Cristal Encantado”, do mesmo diretor). Hoje, ao revê-lo, não me surpreende tanto o fato de ele ter se tornado um clássico infantil contemporâneo, já que ele reúne uma série de grandes nomes: George Lucas assina a produção executiva; Terry Jones, do Monty Python, encabeça o roteiro; Jim Henson, o diretor, deveria dispensar apresentações, pois é um dos maiores idealizadores de produções infantis para TV e cinema (o cara só criou “Vila Sésamo” e os Muppets...); ainda temos Jennifer Connelly (responsável pelo desenvolvimento precoce da sexualidade em muitos meninos), que já era boa atriz, no papel principal, e David Bowie contribuindo com boas canções para a trilha. Há cenas que valem a pena, como o delírio da protagonista durante a canção “As the World Fall Down” e todas aquelas na qual a hilariante personagem Sir Didymus aparece. Difícil de engolir, só a peruca que o Bowie roubou da Tina Turner e a tentativa de realização de um “Labirinto” brasileiro, que se acabou se chamando “Super Xuxa contra o Baixo Astral”.

    “Blue Velvet” (1986), do nosso velho amigo David Lynch, está longe de ser um filme para crianças, mas existe nele (como existem em alguns outros filmes do diretor) algo de histórias para a infância. Por exemplo, a obsessão de Lynch com “portas” que levam a outros mundos, como ocorre nos filmes supracitados, nos livros de Carroll com Alice e em outros do próprio Lynch. Aqui, a tal passagem é representada por uma orelha humana (coberta de formigas, num plano que lembra bastante o da mão em “Um Cão Andaluz”, o clássico filme surrealista), encontrada por Jeffrey (Kyle MacLachlan, cria de Lynch), um decente jovem que larga a escola para cuidar do pai doente.

    Jeffrey, sem dúvida, combina com o ambiente de Lumberton, uma cidadezinha interiorana dos EUA que, como o nome indica, vive do comércio de madeira (o locutor da rádio é engraçadíssimo _sim, Lynch tem um baita senso de humor). Ao som da canção de Bobby Vinton que intitula o filme (aliás, todo o design de som é primoroso), vemos cercas brancas e flores, crianças atravessando a rua para ir à escola, um simpático bombeiro acompanhado de um cachorro nos acena em câmera lenta (tamanho bucolismo pede para ser perturbado). Também combina com ela a personagem de Laura Dern (então com 18 anos), a encarnação da inocência. Não só ela se chama Sandy, como é loirinha, usa vestidos comportados e namora o jogador de futebol americano do colégio _exatamente como a personagem de Olívia Newton-John em “Grease”.

    Mas a inocência de ambos será conspurcada quando Jeffrey, investigando a tal da orelha, se envolve com Dorothy Vallens, a “blue lady” (“O Anjo Azul”?). A terceira (e mais conhecida) personagem de Isabella Rossellini no cinema não apenas se chama Dorothy, mas canta “Blue Velvet” como uma caricatura da interpretação de Judy Garland para “Over the Rainbow”, além de usar sapatos cor de rubi, praticamente idênticos aos da adolescente do Kansas. Só que esta Dorothy, sempre maquiada como uma boneca estilhaçada, arrasta Jeffrey para um mundo de perversão, faz com que ele “coloque sua doença” dentro dela, o que fará o jovem chorar e se perguntar o porquê de tanta desgraça neste estranho mundo em que vivemos.

    A culpa de tudo seria de Frank Booth, um homem “doente e muito perigoso” no dizer de Jeffrey. Frank (Dennis Hopper, recém-liberado de uma clínica de desintoxicação, praticamente recomeçando sua carreira), seqüestrador, estuprador, assassino, corruptor e traficante, coloca as palavras fuck, fucking e fucker em todas as frases que diz, mas se emociona quando ouve Dorothy cantando com voz de veludo ou vê seu amigo Ben, o “suave” (brilhante caracterização de Dean Stockwell), dublando Roy Orbison. Na verdade, a culpa é toda de Lynch (originalmente um pintor), que tem esta mania de fazer obras que podem ser vistas muitas vezes, sem se tornarem desinteressantes. É claro que isto não impediu o filme (que teria quatro horas de duração, mas, por exigência de Dino de Laurentiis, teve de ser cortado pela metade) de ser muito mal recebido... o que não é uma grande surpresa, dado o estranho mundo em que vivemos.

    P. S. Quer brincar de dirigir um estúdio em Hollywood? .

    domingo, fevereiro 08, 2004

    Encontros e Desencontros / 21 Gramas / Interiores

    As I walk through this wicked world, searchin' for light in the darkness of insanity. I ask myself, is all hope lost? Is there only pain and hatred and misery? And each time I feel like this inside, there's one thing I wanna know: what's so funny 'bout peace love and understanding?

    Quem aí já ficou em outro país tempo suficiente para viver a experiência do expatriado? Certamente as “adaptabilidades” variam. No meu caso, para minha surpresa, foi o bastante para entender a palavra “homesickness” e o conceito de alienígena. Claro, é bem possível ser um expatriado em seu próprio país...

    E já disseram por aí que a pátria de um homem é o seu idioma. Por mais que eu estivesse familiarizado com o inglês, que falo fluentemente há muitos anos (sem nunca tê-lo estudado), viver na Califórnia tinha o seu quê de frustração justamente por isso. Mais do que tudo, eu sentia falta da língua portuguesa do Brasil (tá, da mulher brasileira, também).

    Pois, pasmem, eu já estudei japonês. Eu, brasileiro, com cara de galã de filme italiano, fui, sim, estudar os hiraganas e os katakanas da vida. Portanto, posso dizer que o idioma japonês é, para nós, ocidentais, a mesma coisa que marciano. Aos quase vinte anos de idade, lá estava eu de volta ao prézinho, desenhando vinte vezes a letra “A” em vinte quadradinhos.

    O filme de Sofia Coppola, “Lost In Translation” (o título brasileiro nem é tão absurdo, apesar de irônico e desnecessário), usa deste recurso para exprimir este sentimento de incomunicabilidade, de diferença, de separação. Um dos planos que mais me chamaram a atenção foi justamente o de um néon, indecifrável para o público-alvo do filme. A incomunicabilidade aparecerá na obra de muitas outras formas, como base para situações cômicas (o público da sala em que eu estava se esbaldou de gargalhar o tempo todo, talvez porque tivesse ido ao cinema com tal predisposição) e dramáticas, envolvendo o casal de protagonistas.

    Sou suspeito para falar do Bill Murray, ator de quem sou fã há muito tempo. Apesar de certos aspectos da cultura japonesa (vista, aqui, sem grandes estereótipos ou preconceitos, embora muitos pensem o contrário) parecerem hilários para nós, é com Murray, seu semelhante, que o espectador ri. Como uma espécie de Buster Keaton moderno (guardadas as devidas proporções, é óbvio), a personagem de Murray enfrenta as vicissitudes de sua condição, uma estrela de cinema em seu crepúsculo, sozinha em um outro planeta. O auge do estranhamento se dá justamente quando ele se vê na televisão do hotel, em um filme antigo, dublado em japonês (outro grande momento do filme). O auge da hilaridade, claro, é a sua imitação de Roger Moore.

    Seu par, interpretado por Scarlett Johansson (que me lembra a Winona Ryder e a loirinha de “Dawson’s Creek” _a atriz, de 19 anos, é mostrada sem glamour, com celulite e tudo, o que é legal, talvez apenas por se tratar de um filme assinado por uma mulher), faz o contraponto, por ser jovem e viver drama semelhante ao do veterano ator (problemas conjugais), mas sem se debater de modo tão hilariante com a cultura alienígena.

    E, além de Tóquio e suas luzes, a música é outro grande personagem do filme. Coppolinha, “moderninha”, se apropria de clássicos recentes do pop britânico e americano, e é óbvio que a estratégia funciona. My Bloody Valentine e Jesus & Mary Chain, Elvis Costello e Roxy Music na voz de Bill Murray (outro grande momento). Coincidência, comprei os CDs que contêm todas essas músicas na minha passagem por Berkeley.

    Parece que esta foi mesmo a escolha de Sofia: algumas risadas aqui, momentos de emoção (o diálogo final entre os protagonistas é mesmo muito bonito) embalados por boa música ali, dois bons atores num filme de baixo orçamento, despojado, que indica honestidade... E eu ainda não estou certo do quanto gostei do filme. Saí decepcionado do cinema, por não ter sido uma experiência genuinamente emocionante e transformadora (como a que tive diante de “Embriagado de Amor”). Depois, ao relembrá-lo, parecia que eu gostava mais e mais e, agora, eu simplesmente não sei (entretanto, considero-o melhor do que o bom “As Virgens Suicidas”, que é mais impactante e tem uma trilha sonora muito mais interessante). Ao revê-lo, o mais provável é que eu o considere superestimado. Veremos.

    Caso engraçado é o de “21 Gramas”, elogiadíssimo antes de estrear e, agora que quase todo mundo viu, vem sendo tratado como uma bomba. Não é uma coisa nem outra, embora seja inferior a “Amores Perros”. Assim como seu antecessor, o roteiro aposta no melodrama. Não é pela nacionalidade do diretor Inárritu, mas trata-se de um dramalhão mexicano, mesmo.

    A primeira vez que ouvi falar do filme foi num comentário do José Wilker, no Cineview do Telecine. Ele o comparava a “Irreversível” (que não vi, desestimulado pelo fiasco de crítica), malhando este último e elogiando este outro. Então, o diferencial do granuladíssimo filme seria a montagem, que avança e retrocede no tempo inúmeras vezes, revelando, aos poucos, qual é a relação entre o trio de protagonistas. Atores, estes, que são o grande patrimônio da obra. O destaque é Sean Penn (se desconsiderarmos os mamilos de Naomi Watts), numa atuação muitíssimo melhor do que a do filme do Clint. E aí temos os temas caros ao melodrama: filhos, fé, saúde, perdas, aproximação. E um final muito, muito ruim. Uma pena.

    Ainda no tom de melodrama, mas com muito mais peso e sobriedade, voltemos a 1978, ano em que Woody Allen lançou “Interiors”, talvez o seu filme mais maldito. Não é nada desprezível ter a coragem (ou a pretensão) de mexer em time que está ganhando: Allen, comediante experiente, tinha acabado de ser consagrado com o Oscar por seu longa mais conhecido, “Annie Hall”, e lança uma obra sem uma piada, uma gag, um sorriso que seja. “Interiores” é pesado e emula Bergman, por quem o cineasta declarava imensa admiração à época (“Manhattan” e “Stardust Memories”, seus filmes seguintes _e cada vez melhores_, também deixavam isto bem claro).

    Também contando com um elenco excelente, com grande cuidado com a cenografia e o som, Allen apresenta uma dramaturgia sólida, sem pontas soltas, mas um tanto previsível demais. Incomoda a pretensão e a afetação durante todo o filme, que se intensifica no final. Allen é melhor quando é leve, mesmo quando está em crise. Mas é admirável que o artista consiga transformar sua crise (que não deveria ser pequena, dado os filmes que fez nesta época) em obras bonitas e pessoais como esta. Taí um filme que, apesar das pequenas falhas, precisava ser redescoberto.

    P. S. Falando em “Dawson’s Creek”, vi, semana passada, “Regras da Atração”, do Roger Avary, mais conhecido como co-autor de “Pulp Fiction”. Até que o James van der Beek fica legal num outro personagem, e o início, com aquelas brincadeiras de inversão de tempo, é bom cinema. Já o final...

    P. P. S. E falando em regras da atração, sonhei que estava num ménage a trois com a Kelly Key e a Tati Quebra-Barraco. Oh, the humanity.

    domingo, fevereiro 01, 2004

    Dogville / Era uma Vez na América

    O meu egoísmo é tão egoísta que o auge do meu egoísmo é querer ajudar.

    Este verso de Raul Seixas (um grande cara, apesar de ter fãs muito chatos, desses que ficam gritando “toca Raul!”), que sempre julguei servir em mim como uma luva (episódios recentes ocorridos aqui mesmo corroboram o fato), veio à minha mente enquanto eu via o filme do Lars von Trier. Quem já assistiu deve entender o porquê.

    Ao sair do Cinesesc, já sabia que precisava ver o filme de novo, antes de formar uma opinião mais sólida. Mesmo com todo o falatório em cima de “Dogville” (no dia em que fui vê-lo, Contardo Calligaris, que me dava uma dor de cabeça enorme quando eu corrigia seus textos na Ilustrada, escrevia que o filme era medíocre e desonesto _em geral, ele costuma falar bem das obras que aborda), é difícil escolher um lado (embora eu não seja nada maniqueísta).

    Quem lê este site com freqüência sabe que não sou muito afeito a análises que buscam “desvendar os símbolos” de uma obra (embora, como autor, eu use bastante das entrelinhas); no caso de filmes, gosto mais de analisar o que vi, não o que “achei que vi”. E o que a gente vê, em “Dogville”? Uma história contada em tom de romance clássico (são nove capítulos e um prólogo, cujos títulos adiantam o que está por vir), que fala de poder e de liberdade, de misericórdia e de arrogância, de capitalismo e de vingança.

    Trier, já famoso por sua antipatia (e, dizem, pela mitomania _mas qual é o artista que não embeleza a verdade?), pisou na bola ao querer deixar bem claro, seja nas entrevistas ou no final do filme (eu amo aquela música), que “Dogville” é uma crítica aos EUA. Se é só isso, então o filme não é mesmo grande coisa, como muitos andam dizendo. Até por que certas piadas que ele usa (como chamar a rua principal do vilarejo de Elm Street e batizar personagens como Jason e Chuck) não soam tão inteligentes. Já o tom de contos de fadas (evidenciado pela trilha sonora) funciona em parte _a voz over do narrador não atrapalha tanto quanto poderia, mas causa um problema: muitas das cenas parecem apenas encheção de lingüiça, parecem estar ali apenas para dar o tempo de o texto terminar. E a idéia de situar a ação num ambiente teatral (embora o filme não o seja) parece genial apenas no quesito econômico e logístico _o recurso de poder observar todos os personagens, mesmo quando eles não estão no centro da ação, não é bem usado.

    Os personagens não demonstram grande profundidade, mas isto não chega a ser um problema; todos parecem cumprir o seu papel na história, e isto não é pouco. A duração, três horas, é quase plenamente justificada, e o filme, que tem um bom ritmo, não cansa. O tom de frieza não chega a ser desagradável, embora a história adentre por caminhos terríveis; o fato de o filme não nos manipular emocionalmente (como ocorria em “Dançando no Escuro”) é um ponto a favor.

    Mas a delícia mesmo de “Dogville” é assisti-lo sem ter lido muita coisa sobre ele. O elenco guarda surpresas agradabilíssimas (e irônicas), as quais, óbvio, não revelarei. Só chamo a atenção para a frase-chave do filme, que rende muito pano pra manga: “Quero fazer do mundo um lugar melhor, e o mundo será melhor sem Dogville”. É mesmo arrogância perdoar?

    “Era uma Vez na América” (1983) é outra película na qual um diretor europeu olha para os EUA, na época da Lei Seca e da grande depressão econômica. Outro filme longo, mas cuja duração (3h45min) se justifica. Outra obra cinematográfica na qual a câmera se move bastante, carregando a assinatura clara de seu diretor. Outro conjunto de imagens em movimento com som sincronizado lançado durante o governo de um presidente republicano, às voltas com o Oriente Médio.

    Ah, mas quanta diferença: se o filme de Trier é bastante previsível, o de Sergio Leone (mais conhecido como o rei do “bang-bang à italiana”) é surpreendente do começo ao fim. O início é absolutamente impressionante: pouquíssimos diálogos são travados durante a primeira meia-hora, na qual mal somos apresentados às personagens. Tudo é mostrado e narrado como deve ser, no cinema: as imagens (e o som incidental de um telefone tocando insistentemente) falando muito mais alto do que as palavras.

    E a quantidade de cenas absolutamente antológicas? Robert De Niro fumando ópio num teatro chinês; Jennifer Connely, menina, dançando num depósito, observada por um buraco na parede; um garotinho de olhos azuis tendo que escolher se vai matar a fome do adulto ou da criança; um outro menino, que tropeça; um carro que mergulha; um mamilo feminino acariciado pelo cano de um revólver; um policial pego com as calças na mão; uma maternidade vista do alto; uma jovem defunta que volta à vida; um restaurante para dois; o funeral festivo da Lei Seca; e muitas outras. Sem falar na música, que tem papel importantíssimo (até “Yesterday” está aqui, mas o destaque é mesmo o tema tocado pela flautinha de Cockeye).

    Na verdade, “Era uma Vez na América” pode ser visto como uma história muito simples: uma história de uma grande amizade, que marca para sempre as vidas dos envolvidos. Também pode ser uma dessas “histórias de formação” (seja a de seus personagens ou a de um país). Uma história ao mesmo tempo simples e complexa, narrada de uma maneira incrível, com sutis idas e vindas no tempo, transições fantásticas. Apesar de o conjunto ser extasiante, é nos detalhes que “Era uma Vez na América” exibe o seu grande valor. Um monumento em forma de filme. Uma amostra da outra face do perdão.

    P. S. Gosto muito de caminhar, adoro ser um pedestre. Não desejo ter carro novamente (dirigir, só filmes) e evito ao máximo o transporte coletivo. Então fui e voltei a pé do Cinesesc, apesar de eu morar no centro. Outra coisa que gosto é de conversar, nem que seja com estranhos. Em Votuporanga (ou a caminho dela), é comum bater papo com totais desconhecidos em qualquer fila, ou mesmo en passant; em São Paulo, é raríssimo. Daí que, quando a moça sorridente (até achei que ela me conhecesse) me perguntou se a noite estava bonita (estava), enquanto esperávamos para atravessar a Consolação, foi muito estranho, apesar de não dever ser. Assim como esta minha mensagem em homenagem à cidade de 450 anos.

    Na platéia