O Gabinete do Dr. Caligari / O Golem / Nosferatu (1922 e 1979) / Fausto
Neste mundo de tantos espantos, cheio das mágicas de Deus, o que existe de mais sobrenatural são os ateus...Há cerca de um ano, escrevi, neste site, um texto bem fraquinho (como de praxe neste espaço específico) sobre alguns filmes que passaram num festival da Cinemateca que enfocava a UFA, estatal alemã que produziu obras importantíssimas, que inspiraram cineastas do mundo inteiro e acabaram recebendo, emprestado das artes plásticas, o rótulo de expressionistas.
Considera-se o euro, quero dizer, o marco inicial deste estilo um filme de Robert Wiene, diretor que trabalhou bastante durante o início do século passado, mas que, ao contrário de Lang, Murnau, Lubistch e outros colegas, não emplacou outra obra-prima como “O Gabinete do Dr. Caligari” (1919). O filme (um média-metragem, uma hora de duração), bastante inteligente e com um final surpreendente e empolgante (seu modelo é seguido até hoje), aproveita-se de seu enredo, baseado em uma lenda do século XI, para promover uma fuga do real, usando cenários interessantíssimos, matéria de pesadelo. Como se não bastasse, as caracterizações de Caligari e do sonâmbulo sensitivo Cesare (Werner Krauss e Conrad Veidt, respectivamente) dão o tom das obras-primas posteriores _feitas durante um período terrível, já que o país havia sido derrotado na guerra e enfrentava grande crise econômica.
Por exemplo, “O Golem” (a versão que eu vi é a de 1920, a terceira levada às telas por Paul Wegener, que é também co-roteirista e intérprete do monstro _a fotografia, outro destaque, é do Karl Freund) também se apropria de uma lenda alemã (no caso, judaica) para retratar o seu país. Sintam o drama: o imperador decreta a eliminação dos direitos de todos os judeus (lembra alguma coisa?); para proteger seu povo, um mago invoca o demônio Astaroth e pede que ele lhe revele a palavra mágica que trará vida a um ser feito de argila (que se rebelará depois de um tempo, graças ao coisa-ruim). No meio desta história, um romance proibido entre uma “donzela” (as aspas estão aí por pura desconfiança de minha parte) e um conde (não o Drácula, calma).
Vejam que há uma relação entre essas obras (e a influência que elas tiveram sobre a série de filmes de terror que seria mania nos anos 30): o Golem lembra muitíssimo a história de Frankenstein, o Prometeu moderno (ser que acabou entrando para o imaginário em uma mesma categoria que os vampiros, os lobisomens, as múmias etc.). Há uma cena, na qual o monstro, já descontrolado e furioso, demonstra empatia com crianças _James Whale faria igualzinho, poucos anos depois.
O famoso “Nosferatu” (1922), de Friedrich Wilhelm Murnau (que tem como epíteto mais comum “Uma Sinfonia de Horror”), chupa, na cara dura, o “Drácula” de Bram Stoker. A história é rigorosamente a mesma (quem viu o filme do Coppola vai ter vários “déjà vus”), embora os nomes sejam trocados (em vez de Jonathan, Hutter; Drácula vira Orlok; Ellen no lugar de Mina). O que entrou para a história, aqui, é a caracterização impressionante de Max Schreck, que, por sinal, aparece bem pouco (mas o suficiente). Até hoje, trata-se de uma figura de causar medo. Claro que não é só isso; a direção de Murnau é muito inventiva, há experiências com filtros e trucagens de edição que dão ao filme uma atmosfera única.
A refilmagem/homenagem de Werner Herzog (“Nosferatu, o Fantasma da Noite”), de 1979, parece aproximar-se mais do livro de Stoker, mas apenas parece (por causa da adoção dos nomes normais dos personagens _apenas há uma curiosa troca entre Mina e Lucy). Herzog, que sempre afirmou que seus filmes vêm da dor, nunca do prazer, convida o espectador a uma viagem por planos de longa duração, com uma trilha sonora poderosa. As cenas fantásticas são muitas, como a de Lucy e Drácula perante o espelho e a dos caixões das vítimas da peste sendo carregados pela praça, além da engraçadíssima libertação de Jonathan (Bruno Ganz) pela empregada. A caracterização de Klaus Kinski como o bichão não é tão marcanta quanto a de Schreck (ou mesmo a de Willem Dafoe em “A Sombra do Vampiro”), mas é claro que não é ruim; mas quem rouba a cena mesmo é Isabelle Adjani, bela e alvíssima, sexy até em alemão. Vai bem com salsichão.
Voltando a Murnau, “Fausto” (1926) é seu último filme feito na Alemanha (pouco depois ele foi a Hollywood, onde rodou sua obra-prima “Aurora”, que ainda não consegui ver), e lembra bastante “O Golem” em alguns aspectos. A produção é bem mais acabada do que em “Nosferatu” ou no maravilhoso “A Última Gargalhada” (meu Murnau preferido, disparado), trata-se de um filme extremamente bem-feito, com trucagens bastante refinadas. O destaque óbvio é o Emil Jannings como Mephisto (irônico como ele acabaria se unindo aos nazistas), com uma caracterização bem caricatural, com aquela pena enorme no chapéu e a espada fazendo vez de rabinho... O problema é que, depois de um início fenomenal, a história fica meio arrastada (o filme é longo, duas horas), e o resultado final fica a desejar, principalmente se o compararmos com o grande épico do Fritz Lang, “Os Nibelungos” _ou mesmo com a grande peça de Goethe, que o inspira.
P. S. Chegamos aos tempos de hoje, tempo de “Adeus, Lênin!”. Um filme que não se resolve: não se decide entre comédia de erros, drama familiar ou filme político. Enfim, bonitinho, não mais. Mesmo a tão propalada cena da estátua ficou aquém do que eu esperava...
P. P. S. O livro clássico sobre o expressionismo alemão, “De Caligari a Hitler” (1947), foi escrito por Siegfried Kracauer (outro que saiu por aqui, bem mais recente, foi “A Tela Demoníaca”, de Lotte Eisner), ironicamente, um teórico ligado ao realismo cinematográfico. A seguir, um trecho do ótimo “As Principais Teorias do Cinema”, de J. Dudley Andrew, que indica algumas diferenças entre as idéias dele e as do mais conceituado teórico realista, André Bazin:
“Kracauer assume que o cinema deve registrar as ocorrências cotidianas da vida por causa de sua afinidade com a realidade empírica. Bazin, por outro lado, tem um ponto de vista muto mais complexo sobre a realidade, concebendo-a como multinivelada. Para ele, a realidade empírica contém correspondência e inter-relacionamentos que a câmera pode achar. Além disso, o homem criou um mundo político e artístico acima da ‘realidade natural’, e isso também está à disposição da câmera. Assim, embora Bazin criticasse as composições abstratas e pictóricas em filmes, apoiava totalmente os documentários sobre pinturas e pintores. De modo semelhante, apesar de sua teoria, como a de Kracauer, não ter lugar para o expressionismo alemão, Bazin defendeu um filme tcheco sobre um campo de concentração que tinha a aparência exata do expresionismo alemão, porque seu terrível cenário, esse ‘mundo de Kafka ou, mais curiosamente, de Sade’, tinha uma fidelidade interna que o transformava claramente não no desejo de um artista, mas em um resultado da lógica de uma máquina política. O expressionismo, nesse caso, existe não no cinema, mas na história. O cinema apenas o registra.”
P. P. P. S. A minha época preferida do ano, o Carnaval, chegou, e eu, é claro, me vou. Desta vez, para a praia, onde estou certo de encontrar muita luxúria, depravação e bicho geográfico. Sei lá quando volto, eu quero é rosetar. Feliz Carnaval!