Fale com Ela
Almodóvar mudou muito. Assim como a Espanha.Quando lembro de “Matador”, “A Lei do Desejo”, “Ata-me”, “De Salto Alto”, “Kika” etc., estão ali, de maneira bastante explícita, o “underground”, as drogas, o sexo, o crime, em uma Espanha ultracatólica (e, portanto, homofóbica, machista e intolerante em diversos aspectos _o divórcio, como no Brasil, era ilegal, por exemplo) que, após passar por quase quarenta anos de ditadura, encabeçada pelo “generalíssimo” Franco, lentamente foi encontrando espaço para respirar. E Almodóvar respirou fundo.
Com “Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos”, as coisas começaram a mudar. O diretor mergulha um pouco mais fundo no melodrama, mas ainda há ali uma certa histeria, que provavelmente afastou um público avesso à provocação.
Tema semelhante aparece em “A Flor do Meu Segredo” (o filme dele que menos gosto), ao mesmo tempo em que “Carne Trêmula” retrocede um pouco ao Almodóvar mais, digamos, “mundo cão”.
Mundo cão que aparece também em “Tudo Sobre Minha Mãe”, ainda o meu preferido. Mas ali, o submundo do homossexualismo, representado em grande parte pelo travesti Agrado (grande interpretação de Antonia San Juan), perde bastante espaço para o melodrama, para a novelona mexicana que permeia todo o enredo. Almodóvar, talentoso como poucos, consegue manter o equilíbrio e passa uma absurda verossimilhança à história.
“Fale com Ela” (seu 14º filme), apesar de menos impressionante, dá alguns passos adiante. Não vemos, explicitamente, o mundo das drogas, das ditas “perversões” sexuais, da violência (a não ser da violência contra os touros) etc. O “submundo”, desta vez, é ainda mais profundo, aterrador e misterioso: é o coma. E quem entra em coma são as mulheres, tradicionais protagonistas dos filmes do espanhol _não por acaso, são elas que aparecem no pôster do filme.
O enredo: Benigno (Javier Cámara), um rapaz tímido que vive a cuidar da mãe doente, encanta-se por Alicia (Leonor Watling), uma menina que faz aulas de dança em frente à sua casa. Quando ela entra em coma, ele se apresenta como enfermeiro, e passa a cuidar dela com dedicação ímpar. Marco (Darío Grandinetti) é um escritor/jornalista que se envolve com Lydia (Rosario Flores _existe nome mais espanhol do que este?), uma famosa toureira (uma estocada no machismo), que também entra em coma após levar uma chifrada (de um touro, não do Marco). Alguém aí lembrou dos Silvas?
Bom, as personagens femininas principais do filme estão paralisadas e em silêncio. Isso fez muita gente afirmar que Almodóvar desta vez resolveu focalizar mais o universo masculino, mas não sei se posso concordar com isso. Mesmo que os homens assumam quase toda a ação na obra, é justamente em função das mulheres que a história se desenrola. “O cérebro das mulheres é um mistério. Ainda mais neste estado”, diz Benigno a Marco, tentando fazer com que o seu novo amigo tenha uma relação melhor com sua namorada enferma.
Ainda falando nas atrizes do filme, vale a pena ressaltar a participação especial de Geraldine Chaplin (a filha do homem) e de Elena Anaya (Ángela, primeira paixão de Marco) e Paz Vega (a “mulher gigante” do curta em preto-e-branco que surge no meio da obra), que encheram os nossos olhos em “Lucía e o Sexo”.
Mas “Hable con Ella” é também um filme sobre a música _e, especialmente, a dança. Começa com uma coreografia de Pina Bausch, passa pelas lições de dança de Alicia, pelos passos de Lydia na arena de touros e pelo ritual de Benigno ao banhar Alicia. E além.
A música, como já se falou muito, é também brasileira: em uma das cenas mais belas da obra, Lydia toureia ao som de Elis Regina interpretando Tom Jobim (que é citado por Marco em outra cena). Em outra, bem mais forçada, em tom de homenagem, de carinho mesmo, Caetano Veloso reinterpreta a tristonha “Cucurrucucú Paloma”.
Enfim, se Almodóvar está mais “maduro” ou “contido”, é ainda cedo para afirmar. Mas o homem, além de filmar bem para cassete e de escrever romances fantásticos (não distorçam minhas palavras), consegue, fora de Hollywood (Oscar? E ele lá precisa disso?), lotar uma sala de cinema do bananal às 18h de uma quarta-feira...
Nota: 9/10