A gruta é mais extensa do que a gruta

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    terça-feira, janeiro 27, 2004

    Simplesmente Amor / Narradores de Javé

    Eu cheguei em frente ao portão. Meu cachorro me sorriu, latindo.

    Bem que eu gosto de bancar o misantropo (sim, eu li Cioran...), mas a verdade é que eu gosto mesmo de gente (bem mais do que se imagina). Sempre disse que me apego às pessoas, e não aos lugares, mas, voltando do Cine Votuporanga (agora, para sair dele, é preciso passar por um corredor que também é o depósito de lixo...), pisando nos paralelepípedos da calçada da rua Amazonas, percebo que também amo toda aquela cidade (bem mais do que imaginava). É impressionante saber que os lugares também guardam histórias e abrigam raízes.

    Mas como eu sou muito jovem para ser tão nostálgico, é possível que o acontecido também se deva ao fato de eu ter acabado de assistir a “Love Actually”, filme pelo qual eu não dava a mínima (apesar de seu marketing dizer que se trata dos mesmos produtores de “Um Lugar Chamado Notting Hill”, outra obra belíssima), visto apenas por total falta de opção (sinceramente, “Abracadabra” e “Acquária” não estavam nos meus planos, apesar de este último ter recebido resenhas positivas).

    E querem saber? “Simplesmente Amor” é um filme próximo da perfeição. Poucas vezes eu vi uma “comédia romântica” que ilustrasse tão bem seu rótulo. Porque ele faz rir e emociona, sem ser desonesto ou apelativo, como muitos dos filmes “engana-trouxa” que abundam por aí (e até arrebanham prêmios importantes). Um filme que não tem medo de clichês ou de obviedades (toca até “God Only Knows”) e que, mesmo assim, impressiona e faz bonito. É muito difícil fazer um filme desses.

    E daí que o drama do menino apaixonado lembre demais a história de “Um Grande Garoto”? E que o inglês e a portuguesa dialoguem como o sorveteiro e o samurai de “Ghost Dog”? Que o político se apaixone pela secretária (dando uma flambadinha nos EUA), que o marido se incrimine com um presente de Natal, que uma dupla de astros de filmes pornô apenas queira romance, que uma mulher precise sacrificar seu amor por causa de um parente doente, que o astro de rock dê o devido valor ao seu empresário, que a paixão de um rapaz fique com seu melhor amigo? Esses plots são como as letras dos Beatles ou do Roberto Carlos, coisas que acontecem com absolutamente todo mundo (bem, aquela história do inglês que vai para os cafundós dos EUA não acontece mesmo). Não é à toa que o filme comece e termine com pessoas desconhecidas, recepcionando os entes queridos num terminal de viagens. Um filme para todos.

    Para todos também é “Narradores de Javé”, uma das melhores películas nacionais que eu vi em 2003. Trata-se de uma obra verdadeiramente popular, embora não seja simplória como as produções mais recentes de Renato Aragão. Eliane Caffé (de “Kenoma”) conseguiu ilustrar o contraste entre modernidade e rusticidade que impera no Brasil, além das tradições orais dos analfabetos, com a ajuda do povo de Gameleiras e do grande ator que é José Dumont. Sua performance como Antônio Biá é ótima, com direito a kung fu e tudo. Há problemas, claro, como nas cenas de imaginário, mas há momentos simplesmente adoráveis, como uma transição sonora do virar das páginas de um livro para o barulho das águas. E a presença do palhaço Picolino, interpretando o Outro (irmão gêmeo do Gêmeo), trazendo mais nostalgia da infância.

    Mas o grande problema é o seguinte: o povo não vai ver “Narradores de Javé”. Porque, vocês sabem, existem pouquíssimas salas de cinema no Brasil, e os ingressos são caros. Então temos um filme digníssimo, realmente feito para o povo (sem aquelas babaquices de “olhar sociologizante” ou de criar um projeto que mostre o povo como animais de um zoológico freqüentado pela classe média ou qualquer outra demonstração de arrogância), um povo que não terá a chance de vê-lo. É muito triste, é isso que precisa ser combatido. Ah, também faltou mulher gostosa no filme, mas ninguém é perfeito.

    P. S. Como diz aquele sábio adesivo criado pelo Forrest Gump, “shit happens”. Como fiquei sem acesso a e-mails durante mais de um mês, minha conta foi desativada. Agora, ela está funcionando novamente, mas eu perdi todas as mensagens mandadas nas últimas cinco semanas. Uma pena, porque eu adoro responder às mensagens de Natal. Então, se alguém me mandou algo durante este período, por favor, reenvie, para que eu possa ler e responder. Abraços e beijos a todos.

    P. P. S. Shit happens 2: é apenas aqui ou vocês também não conseguem mais ver a figura do site? Os links ainda estão lá, mas nada de a simpática claquetinha sangrenta aparecer... Shit.

    P. P. P. S. Shit happens 3: os arquivos deste site estão com problemas. Muitos problemas. Não gostam de sopa de legumes, por exemplo. Gostaria muito de consertá-los, mas não sei como. Alguém pode dar dicas? Valeu.

    domingo, janeiro 11, 2004

    O Mensageiro Trapalhão / Mocinho Encrenqueiro

    Seria bão ser bão nisso de ficar quieto, de não dar na vista quando quebro os ossos dos dedos da minha mão, quando soco as paredes.

    E aí, como vão vocês? Não sei se perceberam, mas, desde antes do Natal, estou completamente incomunicável. Sabe-se lá por quê (creio que a causa de tudo é o fato de este computador não executar os tais “javascripts”, seja lá o que isso for), estou sem acesso a e-mails (tive de usar o do meu irmão para mandar os votos da liga _por sinal, já discordo de quase todas as minhas escolhas) e aos comentários de todo e qualquer site, incluindo este (também não posso linkar, o que é uma pena, pois este texto teria um monte de links legais para vocês se divertirem). O que o inutiliza quase completamente, já que uma de suas primordiais razões de existir é justamente a comunicação com vocês, que dedicam um pouco do seu preciosíssimo tempo passando os olhos por cima destas letrinhas vagabundas. O correto seria eu nem atualizá-lo mais, até a volta a São Paulo (que pode ocorrer a qualquer momento, caso surja trabalho), mas, como eu sei que tem gente que reclama e pede por textos novos com mais freqüência (o que, claro, é bom sinal), este e o penúltimo texto foram publicados, mesmo com a consciência de que os meus pronunciamentos teriam de esperar. Então, é o seguinte: podem ir comentando, discutindo, xingando, elogiando etc., que, quando eu voltar, eu leio tudo, e a gente conversa mais. É issaí.

    Quem acompanha este site há algum tempo sabe que já falei do Michael Moore, um cara que já estava em certa evidência, estimulando ódio, admiração, desconfiança etc., até aparecer ainda mais por causa do Oscar. E ele continua aparecendo, até porque o SBT reprisa seu “Roger and Me” a cada três meses, sempre nas madrugadas. E este seu filme, em especial, seria muito cômico se não fosse tão trágico: as peripécias dos governantes da cidade de Flint para reerguê-la após a GM fechar sua fábrica são tão estapafúrdias que mal parece se tratar dos EUA, o país do “time is money”. A esculhambação é tanta (por exemplo, o célebre programa jornalístico “Nightline” ia fazer uma transmissão ao vivo de Flint, cancelada porque o caminhão-link foi roubado) que até parece o Brasil.

    Mas foi Jerry Lewis o artista que melhor retratou os podres da “certinha” sociedade norte-americana. Claro que estamos falando dos seus filmes de autor, aqueles que ele produz, dirige e roteiriza _Lewis sempre foi um grande cômico, mas, manipulado por alheios, não raro se limitava a reproduzir o moralismozinho do sistema hollywoodiano. E foi no início dos anos 60, como (grande) autor, que o artista teve o seu período áureo, produzindo obras-primas como “O Professor Aloprado” e “O Terror das Mulheres”, do qual já tratamos aqui.

    “The Bellboy” (1960) e “The Errand Boy” (1961) são outros dois grandes filmes, dignos de figurar entre as maiores comédias feitas em Hollywood (e na história). São filmes “sem moral”, que vão de encontro à obsessão americana pela perfeição que o capitalismo fabril e desumano gostaria de atingir. Lewis é a encarnação da incompetência num mundo que exige rapidez e precisão _ou seja, Lewis é a encarnação da humanidade num mundo que gostaria de ser governado por máquinas de fazer dinheiro. São filmes morais, com “M”, e, neste sentido bastante específico, se coadunam aos filmes de Chaplin, outro imenso autor (como é de praxe entre os grandes comediantes).

    Outra característica comum a estes filmes é a quase ausência de enredo, observada também em “The Ladies Man”. Mas é em “O Mensageiro Trapalhão”, o filme mais radical que Lewis já fez, que esta característica atinge o paroxismo: o próprio filme verbaliza, genialmente, a falta de história, apenas para criar uma “moral da história” _moral estapafúrdia, é claro. São grandes sucessões de gags (em especial as visuais _a personagem do bellboy simplesmente não fala, o que leva o cinema à sua pureza antiga, da época da pantomima, e sequer damos pela falta das palavras), de piadas, de situações absurdas, de exageros, de clipes de humor físico (Lewis é absolutamente genial neste aspecto _não é à toa que Jim Carrey é visto como seu discípulo, embora este ainda não tenha se firmado como autor) e momentos de pura poesia, além de claras demonstrações de pleno domínio da narrativa cinematográfica, com direito a malabarismos inventivos e impressionantes (Lewis até interpreta a si mesmo, junto com Milton Berle, em seqüências de tirar o chapéu, se a gente ainda usasse chapéus). São filmes de gênio, grandes declarações de amor ao cinema. Só vendo, mesmo.

    P. S. Estudar faz com que você veja seu objeto de pesquisa com novos olhos. O exercício do jornalismo também me fez perceber o mundo de um modo bem mais amplo (percepção esta que, felizmente, só vem crescendo, o que também aumenta cada vez mais a qualidade de meu trabalho _só falta permitirem que eu pratique mais). A princípio, tal transformação não é apenas boa ou ruim, mas é sempre interessante saber dar valor tanto ao intelecto quanto aos instintos e às emoções. Vejam só este trecho de “Ensaio sobre a Análise Fílmica”, de autoria de dois pesquisadores franceses (o livro é bem fraquinho, mas este parágrafo é legal):

    “Propomos que o analista se instale (...) diante do filme ou do fragmento sem tentar fazer um esforço intelectual particular; sugerimos a ele que solte as rédeas, que se permita nada buscar, que deixe o filme estabelecer sua lei. Assim, ele volta a encontrar uma espécie de disponibilidade e outorga-se a possibilidade de deixar-se surpreender agradavelmente e de conseguir acolher elementos novos que se situam fora de suas projeções e de suas preocupações particulares. (...) É claro que o conselho não pontifica parar por completo qualquer atividade intelectual. Propõe modificar e flexibilizar uma metodologia que a angústia tende a tornar rígida. Sugere simplesmente proceder a um afrouxamento intelectual que permita uma recepção mais sutil, mais refinada do filme, de um certo modo mais ‘terna’ e que pode se revelar muito produtiva. Voltar a ser o espectador ‘normal’ por alguns momentos, deixar o filme falar, procurar sem buscar: contemplar sem olhar freneticamente, prestar atenção sem aguçar os ouvidos, estar alerta sem violência. O trabalho opera-se através de uma série de vaivéns. O analista diz coisas sobre o filme, o filme também diz coisas. Podem ser estabelecidos um diálogo, uma respiração, que evitam a saturação, a estagnação.”

    P. P. S. Falando em instinto, o meu não costuma falhar (quando se trata de arte, pelo menos): considerando certos comentários alheios, bem que eu estava desconfiado de que o tal de “Donnie Darko” fosse meia-bomba. Pois é. Na verdade, chega a ser uma porcaria revoltante em certos momentos, mas o finalzinho até que o redime. Enfim, este foi mais um episódio da série “Eu Já Sabia”. Filma nóis, Galvão!

    Na platéia