O Pianista / Roma, Cidade Aberta
Que o amor é um palito de fósforo riscado, abandonado numa enorme poça de mijo velho, isso todo mundo já sabe. Mas você sabia que o Danoninho de chocolate não é lá essas coisas?Pelo menos o segundo volume de “Monstro do Pântano”, de autoria do sr. Alan Moore, já está nas livrarias da plantação de inhame. Sim, mais um livro lindo, que compila oito histórias clássicas do fantástico personagem de Len Wein e Berni Wrightson. E, como se não bastasse, saiu também “Pecados Originais”, que traz as primeiras oito histórias solo de John Constantine, o Hellblazer (escritas pelo Jamie Delano _entrem no site do cara e leiam sua biografia, é de rolar de rir_, o melhor autor de toda a série até agora, na minha humilíssima opinião, e ilustradas pelo John Ridgway). O legal é que as histórias, no fundo, são sobre política. Preciso dizer que é muito bom?
Falando nisso, há pelo menos uns vinte anos o sr. Polanski não fazia um filme tão bom quanto “O Pianista”. Claro que, se compararmos com maravilhas como “Repulsa ao Sexo” (o melhor e mais assustador), “O Bebê de Rosemary”, “Macbeth” e “O Inquilino” (alguém ainda vai querer falar de “A Dança dos Vampiros”), o vencedor da Palma de Ouro de 2002 e de alguns Oscars fica para trás, mas se lembrarmos de “O Último Portal”... argh!!!
Mostrar (tentar, pelo menos), no cinema, os horrores da guerra sempre será pertinente. O holocausto judeu da Segunda Guerra ainda vai dar muito pano pra manga _quanto mais escarafunchadas forem as histórias de pessoas como Wladyslaw Szpilman, Anne Frank, Oskar Schindler etc., mais argumentos para filmes interessantes surgirão. É importante que continuem surgindo. Assim como é importante o papel social de figuras públicas como Susan Sarandon, Sean Penn, Martin Sheen e outros artistas de respeito, que ultrapassam a limitada idéia de nacionalismo para abraçar algo muito maior.
Dito isto, o filme, uma produção com recursos de quatro países diferentes, traz cenografia, figurino, trilha sonora (ah, a trilha sonora...), blablablá, de qualidade. Adrien Brody, o homem das narinas gigantescas, está excelente como o pianista polonês que, mais por ação dos outros do que dele mesmo (é impressionante a passividade do personagem, ele passa o filme todo sem fazer absolutamente nada, só é salvo porque outros se empenham para fazê-lo), consegue sobreviver ao infame Gueto de Varsóvia. O Oscar foi merecido.
Claro que o tema da Segunda Guerra me faz traçar um paralelo com “Roma, Cidade Aberta” (outro ganhador da Palma de Ouro), o filme de Rosselini que inaugurou o neo-realismo italiano. Lançado em 1945, ano em que a guerra acabou (a obra traz, no início, o aviso de que “qualquer semelhança é mera coincidência”, mas, neste caso, não era bem verdade), é um trabalho que mantém sua atualidade _não é à toa que é considerado um clássico.
Uma cena, longe de ser a mais famosa da produção, me chama a atenção: um oficial alemão, que não participa tanto das orgias de tortura promovidas pelos colegas, prevê a derrocada dos nazistas, fala em genocídio e em ódio _o que me lembra também uma cena do filme de Polanski, quando são mostrados os alemães derrotados, e os poloneses vão à forra (outra cena registrada por Rosselini que muito me lembra “O Pianista” é a seqüência de abertura de “Alemanha, Ano Zero”, de 1948: um exemplo de onde Polanski se inspirou para recriar a Varsóvia arruinada com a qual Szpilman se depara). Outros destaques são, obviamente, Anna Magnani (que brilharia mais vezes, em filmes de Rosselini e de Jean Renoir, entre outros) e a frase dita por Don Pietro, que, para mim, resume bem a mensagem da obra: “Não é difícil morrer bem; viver bem é que é difícil”.
O Pianista: 8,5/10
Roma, Cidade Aberta: 9/10
P. S. Para falar um pouco mais deste gigante cinematográfico que foi Rosselini (procurem por “Viagem à Itália”, outro clássico), leiam as seguintes palavras do Federico, um rapazola que deu uma ajudinha no roteiro de “Roma, Cidade Aberta” (os seguintes trechos foram retirados do livro “Fazer um Filme”, lançado pela coleção Oficina Interior, da editora Civilização Brasileira, o qual eu também recomendo):
“Seguindo Rosselini enquanto filmava ‘Paisà’, tudo me pareceu claro de repente, uma feliz revelação, a de que se podia fazer cinema com a mesma liberdade, a mesma leveza com a qual se desenha e se escreve, era possível realizar um filme se divertindo e sofrendo dia após dia, hora após hora, sem muita angústia com relação ao resultado final (...). Rosselini procurava, seguia o filme no meio da estrada, com os tanques dos aliados que passavam a um metro de nós (...), com toda espécie de problemas, autorizações revogadas no último momento, programas não cumpridos, misteriosos desaparecimentos de dinheiro, na ciranda rumorosa de produtores improvisados sempre mais ávidos, infantis, mentirosos, aventureiros.
...É isso, parece-me que com Rosselini aprendi (...) a possibilidade de caminhar em equilíbrio no meio das condições mais adversas, mais contrastantes e, ao mesmo tempo, a capacidade natural de usar em benefício próprio essas adversidade e esses contrastes, transformá-los num sentimento, em valores emocionais, num ponto de vista. Rosselini fazia isso, vivia a vida de um filme como uma aventura maravilhosa que deve ser vivida e contada. Seu abandono nos confrontos com a realidade, sempre atento, límpido, fervoroso, aquela sua forma de se situar com naturalidade num único ponto impalpável e inconfundível entre a indiferença do distanciamento e a falta de habilidade da adesão, permitia-lhe capturar, fixar a realidade em todos os espaços, olhar o interior e o exterior das coisas, desvendar o que a vida tem de inalcançável, de misterioso, de mágico. Por acaso o neo-realismo não é isso? Daí, quando se fala de neo-realismo, só se pode falar de Rosselini. Os outros fizeram realismo, verismo ou tentaram traduzir um talento, uma vocação, numa fórmula, numa receita.”