O Grande Ditador
Ai, a bruxa vem aí. E não vem sozinha, vem na base do saci.Traduzindo: minha carne é de Carnaval. Meu coração é igual.
Mas, como o tempo urge durante os cinco melhores dias do ano (especialmente quando se está na melhor cidade do mundo), nada de elucubrações esdrúxulas sobre temas impertinentes; vamos direto ao que interessa (?).
A Segunda Guerra Mundial ocorreu justamente na época em que o cinema era, ao lado do rádio (e, em menor escala, dos gibis), o grande instrumento da indústria de comunicação e de entretenimento. Obviamente, a produção cinematográfica foi bastante afetada nesta época, em especial na Europa, onde o bicho estava pegando (Paul Virilio escreveu um ensaio bastante conhecido sobre o assunto, fica a dica para quem quiser detalhes).
Chaplin, um dos principais nomes da sétima arte em vários sentidos (sua contribuição é artística, comercial, de formação etc. _enfim, um beatle do cinema), não ficou indiferente. Seu Vagabundo (aqui chamado de Carlitos _nunca entendi o “s” no final da nossa tradução para “Charlie”_, assim como na França ele é Charlot, por exemplo) era, entre muitas outras coisas, um personagem político: se “O Garoto”, “O Circo”, “A Corrida do Ouro” e “Luzes da Cidade”, para citar apenas os mais famosos, não são claros exemplos de denúncia social por meio de uma obra de arte, então quero ser um mico de circo mordido por macacos que comem shorts.
Então estamos no final da década de 30, os EUA ainda estão se recuperando da ressaca causada por 1929 (“New Deal”, Roosevelt e tal), Hitler põe as manguinhas de fora e anexa a Áustria à Alemanha e Chaplin, se quiser continuar no ramo dos filmes (do qual fazia parte há mais de 25 anos _na época do lançamento de “O Grande Ditador”, o velho Charlie já tinha passado dos 50), precisa dar o braço a torcer e fazer, oh, um filme falado.
Após “Tempos Modernos” (na minha opinião, sua obra-prima e melhor filme de todos os tempos, assim como “Funhouse”, dos Stooges, é, indiscutivelmente, o melhor disco de rock já feito), talvez o exemplo mais clássico de transição (bastante tardia) do cinema mudo para o sonoro, não havia escapatória: o Vagabundo precisaria falar. Ah, mas Chaplin sempre disse que o Vagabundo não poderia falar... Então, a solução (que ele também adotaria em “Monsieur Verdoux” e em “Luzes da Ribalta”) foi criar versões do Vagabundo que não eram exatamente o Vagabundo...
No filme, Chaplin se divide entre dois personagens: o Barbeiro Judeu (veterano da Primeira Guerra, ferido em “combate” após salvar a vida de um figurão) e Adenoid Hynkel, o ambicioso e furibundo chanceler da Tomania. Hynkel, claro, é uma paródia de Hitler (que era uma paródia infeliz do Vagabundo?), assim como seu aliado “ma non troppo”, Benzino Napaloni (o bambambã de Bacteria), é uma alusão a Mussolini (mas, ah, não só: Napaloni é também uma sátira à típica fanfarronice norte-americana, observem). Claro que se trata de esforço de guerra (embora sem escrotice): ridicularizar para desmoralizar. A comédia é uma arma poderosa, o riso tem valor: chute a bunda de seu inimigo e prive-o de sua dignidade.
E, apesar de todas as rupturas que “O Grande Ditador” representa na carreira do artista, Chaplin ainda está bastante preso ao estilo que o consagrou: os grandes momentos do filme são “gags” puramente visuais, altamente apoiadas em sua admirável habilidade física, como o manejo do canhão, a dança com a mulher de Napaloni, as brigas com as milícias no gueto, os discursos de Hynkel (dos quais não entendemos patavina), a cena com a moeda no pudim e o famosíssimo balé com o globo terrestre (um dos momentos de maior poesia na história das “imagens em movimento”).
A exceção espetacular, que justifica o uso do som e que dá outro golpe no chanceler nazista (já que os discursos “dele” são desprovidos de sentido), é o famoso “Último Discurso”, como acabou sendo chamado por aqui (e reproduzido em um sem fim de camisetas, guardanapos, calendários, cartões... e websites). Ainda pertinente, traduz em palavras, pela primeira vez, todo o humanismo que Chaplin transpirava intensamente em cada filme. Ali estão o apreço pela democracia, a defesa da sensibilidade, o questionamento do progresso impensado (“Não sois máquinas! Homens é que sois! Vai descendo na boquinha da garrafa!” _OK, esta última frase é só para ver se vocês ainda estão prestando atenção), enfim, a mensagem que acabou sendo confundida com comunismo e que o fez ser expulso dos EUA (uma ingratidão, injustiça estúpida contra um dos pilares de Hollywood). Ergue os olhos...
Nota: 10/10
P. S. Cerca de dez dias depois de ter visto este filme em companhia da querida Vanessa, fui até à bela Sala Cinemateca (conhecem? Muitos filmes importantes a um ingresso baratíssimo) ver "The Idle Class" e "The Kid". As cópias eram em 16mm e sem som, o que tirou a emoção e deixou as obras incompletas. Ainda assim, valeu muito a pena rever estas obras.
A segunda, um clássico, dispensa (na verdade, não, mas abusemos do clichê) comentários; a primeira, um curta, novamente traz Chaplin se dividindo entre um personagem pobre (o Vagabundo, claro) e um ricaço. Este último protagoniza uma das cenas que resume o gênio de Chaplin e que exemplifica o encanto exclusivo do cinema mudo: Chaplin, de costas para nós, pega nas mãos o retrato de uma mulher; após colocá-lo de volta na mesa, começa a sacudir os ombros, como se chorasse compulsivamente a perda da amada. Mas, ao virar-se para nós, vemos que ele está preparando um drinque numa coqueteleira. Da tragédia à comédia em frações de segundo.