A gruta é mais extensa do que a gruta

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    sexta-feira, fevereiro 28, 2003

    O Grande Ditador

    Ai, a bruxa vem aí. E não vem sozinha, vem na base do saci.

    Traduzindo: minha carne é de Carnaval. Meu coração é igual.

    Mas, como o tempo urge durante os cinco melhores dias do ano (especialmente quando se está na melhor cidade do mundo), nada de elucubrações esdrúxulas sobre temas impertinentes; vamos direto ao que interessa (?).

    A Segunda Guerra Mundial ocorreu justamente na época em que o cinema era, ao lado do rádio (e, em menor escala, dos gibis), o grande instrumento da indústria de comunicação e de entretenimento. Obviamente, a produção cinematográfica foi bastante afetada nesta época, em especial na Europa, onde o bicho estava pegando (Paul Virilio escreveu um ensaio bastante conhecido sobre o assunto, fica a dica para quem quiser detalhes).

    Chaplin, um dos principais nomes da sétima arte em vários sentidos (sua contribuição é artística, comercial, de formação etc. _enfim, um beatle do cinema), não ficou indiferente. Seu Vagabundo (aqui chamado de Carlitos _nunca entendi o “s” no final da nossa tradução para “Charlie”_, assim como na França ele é Charlot, por exemplo) era, entre muitas outras coisas, um personagem político: se “O Garoto”, “O Circo”, “A Corrida do Ouro” e “Luzes da Cidade”, para citar apenas os mais famosos, não são claros exemplos de denúncia social por meio de uma obra de arte, então quero ser um mico de circo mordido por macacos que comem shorts.

    Então estamos no final da década de 30, os EUA ainda estão se recuperando da ressaca causada por 1929 (“New Deal”, Roosevelt e tal), Hitler põe as manguinhas de fora e anexa a Áustria à Alemanha e Chaplin, se quiser continuar no ramo dos filmes (do qual fazia parte há mais de 25 anos _na época do lançamento de “O Grande Ditador”, o velho Charlie já tinha passado dos 50), precisa dar o braço a torcer e fazer, oh, um filme falado.

    Após “Tempos Modernos” (na minha opinião, sua obra-prima e melhor filme de todos os tempos, assim como “Funhouse”, dos Stooges, é, indiscutivelmente, o melhor disco de rock já feito), talvez o exemplo mais clássico de transição (bastante tardia) do cinema mudo para o sonoro, não havia escapatória: o Vagabundo precisaria falar. Ah, mas Chaplin sempre disse que o Vagabundo não poderia falar... Então, a solução (que ele também adotaria em “Monsieur Verdoux” e em “Luzes da Ribalta”) foi criar versões do Vagabundo que não eram exatamente o Vagabundo...

    No filme, Chaplin se divide entre dois personagens: o Barbeiro Judeu (veterano da Primeira Guerra, ferido em “combate” após salvar a vida de um figurão) e Adenoid Hynkel, o ambicioso e furibundo chanceler da Tomania. Hynkel, claro, é uma paródia de Hitler (que era uma paródia infeliz do Vagabundo?), assim como seu aliado “ma non troppo”, Benzino Napaloni (o bambambã de Bacteria), é uma alusão a Mussolini (mas, ah, não só: Napaloni é também uma sátira à típica fanfarronice norte-americana, observem). Claro que se trata de esforço de guerra (embora sem escrotice): ridicularizar para desmoralizar. A comédia é uma arma poderosa, o riso tem valor: chute a bunda de seu inimigo e prive-o de sua dignidade.

    E, apesar de todas as rupturas que “O Grande Ditador” representa na carreira do artista, Chaplin ainda está bastante preso ao estilo que o consagrou: os grandes momentos do filme são “gags” puramente visuais, altamente apoiadas em sua admirável habilidade física, como o manejo do canhão, a dança com a mulher de Napaloni, as brigas com as milícias no gueto, os discursos de Hynkel (dos quais não entendemos patavina), a cena com a moeda no pudim e o famosíssimo balé com o globo terrestre (um dos momentos de maior poesia na história das “imagens em movimento”).

    A exceção espetacular, que justifica o uso do som e que dá outro golpe no chanceler nazista (já que os discursos “dele” são desprovidos de sentido), é o famoso “Último Discurso”, como acabou sendo chamado por aqui (e reproduzido em um sem fim de camisetas, guardanapos, calendários, cartões... e websites). Ainda pertinente, traduz em palavras, pela primeira vez, todo o humanismo que Chaplin transpirava intensamente em cada filme. Ali estão o apreço pela democracia, a defesa da sensibilidade, o questionamento do progresso impensado (“Não sois máquinas! Homens é que sois! Vai descendo na boquinha da garrafa!” _OK, esta última frase é só para ver se vocês ainda estão prestando atenção), enfim, a mensagem que acabou sendo confundida com comunismo e que o fez ser expulso dos EUA (uma ingratidão, injustiça estúpida contra um dos pilares de Hollywood). Ergue os olhos...

    Nota: 10/10

    P. S. Cerca de dez dias depois de ter visto este filme em companhia da querida Vanessa, fui até à bela Sala Cinemateca (conhecem? Muitos filmes importantes a um ingresso baratíssimo) ver "The Idle Class" e "The Kid". As cópias eram em 16mm e sem som, o que tirou a emoção e deixou as obras incompletas. Ainda assim, valeu muito a pena rever estas obras.

    A segunda, um clássico, dispensa (na verdade, não, mas abusemos do clichê) comentários; a primeira, um curta, novamente traz Chaplin se dividindo entre um personagem pobre (o Vagabundo, claro) e um ricaço. Este último protagoniza uma das cenas que resume o gênio de Chaplin e que exemplifica o encanto exclusivo do cinema mudo: Chaplin, de costas para nós, pega nas mãos o retrato de uma mulher; após colocá-lo de volta na mesa, começa a sacudir os ombros, como se chorasse compulsivamente a perda da amada. Mas, ao virar-se para nós, vemos que ele está preparando um drinque numa coqueteleira. Da tragédia à comédia em frações de segundo.

    domingo, fevereiro 23, 2003

    Os Cafajestes / Navalha na Carne

    Mamãe, quando eu crescer, eu vou comer a Madonna.

    Mas Jece Valadão (cujo nome verdadeiro é, ui, Gecy) é o cara, não? Ator, diretor, produtor e bon vivant. É um nome importante do nosso cinema, um exemplo a ser seguido _tá, não precisa virar evangélico depois de velho e dizer cretinices como "gay é um apanhado do diabo"...

    OK, falando sério, se a obra do cafa-mor do Brasil tivesse se limitado apenas às atuações nestes dois filmes que intitulam este texto e à do fantástico “Boca de Ouro”, de Nelson Pereira dos Santos, já valeria sua entrada na história (isso me lembrou aquela HQ do Laerte e do Angeli, que saiu na saudosa “Chiclete com Banana”, na qual a Gal Costa faz papel de astróloga).

    Então o Canal Brasil resolveu inventar, no meio de janeiro, a “Semana Cinema Novo”. Dentre os filmes exibidos, escolhi rever “Os Cafajestes” (1962), estréia de Ruy Guerra no longa-metragem, se não estou vergonhosamente errado. Um filme famoso pela cena em que a Norma Bengell (aquela atriz que, dizem, comprou um apê de R$ 1 milhão com dinheiro desviado do orçamento do seu filme “O Guarani” e que, para piorar, ganhou beijo na boca do então presidente Itamar, eca) fica pelada na praia.

    Sem rodeios: o filme de Guerra bebe descaradamente da então nascente Nouvelle Vague francesa. Valadão, dirigindo um carrão e usando óculos escuros, é igualzinho a Belmondo em “Acossado”. Bengell, andando pela cidade, é Deneuve em “Repulsa ao Sexo” (tá, este foi feito depois...). Daniel Filho (em seu papel mais conhecido como ator), com a máquina fotográfica a tiracolo, parece... não, não parece, não. Mas o final do filme, ah, este lembra demais “Os Incompreendidos”...

    O enredo mostra dois amigos chegados numa anfetamina que, para descolar um tutu (como diziam na época), resolvem fotografar (à força) uma ex-amante e a filha de um magnata, para depois chantageá-lo. Tem mais, mas isso você vai ver quando assistir ao filme.

    A fotografia é linda, não-naturalista, e quase tudo se passa na praia _há poucas informações urbanas, e é evidenciada uma relação bastante tradicional no cinema brasileiro, a do homem com o oceano. Também há, como bônus, a música (pouco aproveitada) de Luiz Bonfá (em outra cena, toca “Dindi”, de Jobim, no rádio, o que ajuda a associar o filme à bossa nova), e a personagem Vilma (intertrepada por Lucy de Carvalho), que é muito mais gostosa do que a Leda de Bengell... É, trata-se de um filme em tanto difícil para quem não curte uma vanguarda. Mas é bom.

    Outro filme bonzaço estrelado (e, neste caso, também produzido) pelo cafa-Jece é “Navalha na Carne” (1969), baseado na peça de Plínio Marcos (a quem eu visitei numa quitinete do Copan, numa nublada tarde de setembro, em 1995, poucas horas antes de eu ir entrevistar o José “Zé do Caixão” Mojica Marins. Ele recebeu a mim e a umas amigas muito mal, mandou a gente tomar no cu e tudo, mas acabamos batendo um papo legal, ele contou várias histórias engraçadíssimas. Qualquer dia conto mais pra vocês, em algum bar da vida). Vi o filme também no Canal Brasil, em 19 de fevereiro.

    Dirigido por Braz Chediak, que também adaptaria Nelson Rodrigues, traz no elenco dois outros atores maravilhosos: o grande e subaproveitado Emiliano Queiroz (que, aqui, também é co-roteirista) e a incrível Glauce Rocha. Não é fraco, não.

    A parte “cinematográfica”, digamos, é o início (um tanto longo) do filme: vemos cenas do cotidiano dos três personagens principais, sem o som de suas falas, mas ouvindo seus passos e outros ruídos. Depois, a parte mais “teatral”, em apenas um cenário (o quarto do cafetão Vado, personagem encarnado por Valadão), onde toda a história se desenrola, em planos longos.

    E a história é a seguinte: ao chegar de um dia duro (bota duro nisso) de trabalho (ou seja, dar para o Carlos Kroeber, aquele gordão alemão que fez o papel do milionário escroto em “Bonitinha, Mas Ordinária, outro filme do Chediak), a prostituta Neusa Sueli leva a maior bifa do seu cafifa. O cara está puto porque a puta não deixou nenhum dinheiro para ele comprar maconha, forçando-o a ficar em casa coçando o saco o dia inteiro. Depois de apanhar, ela conta que deixou o dinheiro no criado-mudo, o que os faz suspeitar de Veludo, rapaz alegre que trabalha e mora na pensão em que vivem. Tem mais, mas...

    Algumas coisas que estes filmes têm em comum, além da presença de Valadão: ambos são extremamente politicamente incorretos, o que me deixa um tanto chateado, não com os filmes, mas com a tremenda caretice do mundo atual. Hoje em dia é bem mais difícil ver filmes que vão tão fundo na crueldade dos homens (“O Invasor”, “Cidade de Deus” e “Madame Satã”, por exemplo, não chegam nem perto, e olha que em nenhum dos dois filmes abordados neste texto contêm cenas de morte).

    Outro aspecto marcante é a presença da... cafajestagem, do machismo deslavado. Em “Navalha na Carne”, a coisa é ainda pior do que em “Os Cafajestes”. Vado abusa de Neusa Sueli não apenas fisicamente (e não se trata apenas das porradas, mas também da falta de esporradas), mas psicologicamente: ele deixa bem claro que está com ela apenas pela grana e que a acha velha, feia, chata, burra etc. E Glauce Rocha consegue assustar bem mais do que a menina de “O Exorcista” na cena final, usando apenas sua expressão facial. Impressionante.

    Os Cafajestes: 9/10
    Navalha na Carne: 9/10

    P. S. Vi, semana passada, “O Americano Tranqüilo”, filme que deu mais uma indicação ao Oscar para Michael Caine. O filme é quadradíssimo, meia-boca, portanto não vai ganhar um texto só para si. E olha que o filme prometia, pois, além de Caine, traz outro ator de respeito, Brendan Fraser (versatilíssimo, está em filmes “de arte” como “Deuses e Monstros”, em leves comédias como “Bedazzled” e em besteiras como “George of the Jungle”). O cenário, a Saigon de 1952, é o que há de mais interessante, ao lado da extrema beleza da estreante Do Thi Hai Yen, que interpreta Phuong. Além de uma história que mistura política e romance, temos um retrato um tanto diferente do Vietnã que costumamos ver nos filmes americanos: quem está em guerra com os comunistas vietnamitas são os colonialistas franceses, que perderão a guerra, o que dará início à intervenção ianque no país. O resto é história...

    P. P. S. Crianças, aprendam como se faz. Divirtam-se. E durmam com os anjinhos.

    sábado, fevereiro 15, 2003

    Os Palhaços / A Estrada da Vida

    Aaaaah, eu até queria ir ao show do Bryan Ferry, mas a minha atual e desesperadora situação desempregatícia não permite nem uma cervejinha... Ninguém aí está sabendo de um trampo jornalístico/literário/audiovisual? Nem consultoria de RH está funcionando...

    Pelo menos o meu atual bico de tradutor acabou de me trazer uma boa notícia: terei a honra e o prazer de verter para o português a obra-prima do fantástico escritor britânico Warren Ellis (que tem blog), a série “Transmetropolitan”, que está sendo publicada no Brasil pela editora Brainstore.

    “Transmet”, como é apelidada, conta a história de Spider Jerusalem, um jornalista/escritor que vive nos EUA, em um futuro distante, mas que, na verdade, se refere à nossa época. Não é apenas uma obra de ficção científica, mas também um libelo político de primeira qualidade _durante boa parte da saga, o anti-herói, “jornalista fora-da-lei”, cobre as eleições presidenciais norte-americanas. Entre os fãs de "Transmet" estão o cineasta Darren Aronofsky e o ator Patrick Stewart, que, dizem, queria interpretar Jerusalem no cinema. Não se atreva a perder.

    Falando nisso, a terceira parte de “Filho do Homem”, a melhor história que Garth Ennis já escreveu para o personagem John Constantine, está nas lojas. “Hellblazer” é diversão garantida. Tá, sei que pega mal ficar fazendo propaganda, mas é que o negócio é legal mesmo. Se fosse uma merda, eu não recomendaria.

    Mas vamos falar um pouco daquele rapaz que inspirou o nome da banda preferida do Rodney. Talvez o mais paparicado dos diretores italianos, Federico Fellini anda em alta nas salas de São Paulo. “Amarcord”, filme que evoca sua Rimini dos tempos da infância, está em cartaz, e os dois filmes cujos títulos você já leu acima também deram o ar de sua graça na capital paulista.

    “I Clowns” foi visto por mim e pela maionésica Vanessa no dia 14 de janeiro, na sala 2 do DirecTV. O tema do filme, feito originalmente para a TV, é, obviamente, o circo, esta instituição cuja decadência o Fellinão já constatava há mais de trinta anos.

    Bem na época em que fomos vê-lo, foi anunciado o fechamento do Circo Garcia, um dos mais tradicionais do Brasil. Quando eu era criança pequena lá em Votupa, no terreno onde hoje há um supermercado, em frente à antiga rodoviária (sim, tudo mudou), sempre um circo revezava com um parque de diversões, coisas que não existem mais _assim como a maioria das salas de cinema.

    Lembro de ter ido ao Circo Vostok, ao Orfei, ao Circo Espacial (na época em que o Marcos Frota fazia o papel de um trapezista numa novela das sete _foi a primeira “celebridade” que vi ao vivo, argh) e, o que mais me entusiasmou, um circo da Lécio Pneus que trouxe os Trapalhões (menos o Renato Aragão) à cidade. Assim como eu vi os Ramones ao vivo quando eu tinha 17 anos, eu vi Dedé, Mussum e Zacarias quando tinha uns 9. Esses tesouros ninguém tira de mim, uh-yeah.

    Na TV, também pululavam os palhaços: no “Bambalalão” apareciam o Tic-Tac e o Picolino. Alguns anos depois, era a vez dos chatíssimos Atchim e Espirro. Antes deles, Carequinha e Arrelia fizeram história. Sem falar nos já citados Trapalhões, espécie de palhaços sem máscara que só começaram a ser levados um pouco mais a sério (no bom sentido) após Carlos Drummond de Andrade se declarar fã. Acho que dá pra botar o Chaves e sua trupe nessa roda, também...

    Mas o texto já ficou gigante e eu nem falei do filme ainda: “Os Palhaços” já traz Fellini cristalizado, com seu estilo (“não-convencional”, nas palavras da Van, que nunca havia visto um filme do diretor) plenamente desenvolvido: uma beleza plástica arrebatadora (ui), cores em profusão, figuras esdrúxulas (e aí os diferentes tipos de palhaços, com suas indumentárias absurdas, caem como uma luva) a granel... Enfim, uma festa, enfeitada pela presença um tanto forçada, mas nem por isso desprezível, da ex-musa Anita Ekberg (já viram “Hollywood or Bust”, com Martin e Lewis? No Brasil chamou-se “Ou Vai ou Racha”... Vejam, vejam).

    O legal é que o filme não é deprimente, não apela para sentimentalismo barato nem explora o clichê do “lado triste do palhaço”... É estranho que uma pérola como esta seja encarada pela “crítica especializada” como um “Fellini menor”... Tsc, tsc.

    Já “La Strada”, considerada pela mesma “crítica especializada” como a primeira obra-prima do diretor, também aborda o mundo do circo, mas de um jeito bem diferente. O clássico, de 1954, visto por nós no dia 30 de janeiro, no mofado Cinearte, contrapõe duas figuras marcantes: o bruto, violento, egoísta, chauvinista e covarde Zampanò (Anthony Quinn, um gigante) e a pobre ingênua, melancólica e um tanto abilolada Gelsomina (Giulietta Masina, a esposa do diretor). Esta é uma das mais famosas personagens do universo felliniano (você sabe que um artista é bom quando seu nome vira adjetivo?) e também é, provavelmente, a mais acabada versão feminina do Vagabundo de Charles Chaplin. Troque a bengalinha de Carlitos por um trompete e voila: temos Gelsomina.

    O filme é um dramalhão (a música de Nino Rota, compositor do famoso tema de “O Poderoso Chefão”, evidencia isso), e seu final, triste e devastador. Apesar de um filme extraordinário e antológico, “A Estrada da Vida” ainda é Fellini em estado embrionário, aquém do nível que alcançaria em produções futuras. Tá, um monte de gente vai discordar de mim, vão me xingar (?) de Paulo Francis de novo e tal... Deixa estar, vou lá tentar o número da corrente.

    Os Palhaços: 9/10
    A Estrada da Vida: 8,5/10

    P. S. Quem achou “Limite” uma chatice deve passar longe de “Arca Russa”. O filme é belíssimo. Um espetáculo.

    P. P. S. Dolly (o clone mais famoso do mundo, depois do Murilo Benício) morreu. Antes ela do que eu...

    terça-feira, fevereiro 11, 2003

    Let It Be

    O corpo é um organismo delicado. Quando estiver com febre, preste bastante atenção: algo está muito errado dentro de você. É ruim. Mas é bom.

    E febre me lembra os Beatles.

    Andou circulando por estes dias a notícia de que uma nova versão de "Let It Be" (trilha sonora do quarto e último longa protagonizado pelo grupo) será lançada este ano. A diferença é pouca: em três músicas ("Across the Universe", de Lennon, "I Me Mine", de Harrison, e "The Long and Winding Road", de McCartney), se não estou enganado, os arranjos de coro e orquestra adicionados pelo produtor e talvez homicida Phil Spector (é importante lembrar que o disco foi gravado no início de 69, antes do derradeiro "Abbey Road", mas só foi lançado cerca de um ano e meio depois, quando a banda já havia se separado e McCartney e Ringo já haviam lançado seus discos solo), colocados à revelia do grupo, serão retirados. Em outras palavras: ouviremos as músicas tal qual estão no filme.

    Mas não assisti a "Let It Be" por causa desta notícia. Estava eu, simplesmente, naquela delícia de cidade ardente que é Votuporanga, ainda no ano da desgraça de 2002, curtindo (na pele) férias involuntárias. Depois de ir, também involuntariamente, a um baile funk promovido por uma rádio local (tinha uma banda mato-grossense com dois sanfoneiros e tal), eu precisava limpar os ouvidos, e peguei a fita emprestada de um amigo, professor de história e beatlemaníaco desde a mais tenra idade, baby.

    Uma das coisas mais legais a respeito de "Let It Be" é a seguinte: não se trata de um documentário ortodoxo, desses em que os personagens ficam dando depoimentos, intercalados por cenas que meramente ilustram o texto em off. Naaada disso, Babalu. O filme simplesmente mostra os Beatles ensaiando em Abbey Road e em um outro estúdio (de cinema), com uns enquadramentos esquisitos. Ninguém explica nada. O que ajuda a explicar muita coisa.

    "Let It Be", que, a princípio, se chamaria "Get Back", é, basicamente, um projeto de Paul McCartney, que, àquela altura, era o indiscutível líder do grupo _um dos motivos da separação é o fato de ele insistir para que seu sogro fosse o novo empresário da banda, o que cristalizaria ainda mais sua posição de "superior"...

    Paul é o único que demonstra estar cônscio da presença das câmeras. É o único que interage com elas, esforçando-se para aparecer bem na fita. Não é à toa que ele se destaca, assim como suas canções (em especial, "Let It Be", "The Long and Winding Road" e "Get Back", esta última tocada duas vezes). George, que não queria fazer o filme, só leva bronca do Macca, e John Lennon está simplesmente defecando e dançando valsa com a Yoko Ono, que deve ser a melhor mulher do mundo em todos os tempos. O Ringo? Ah, ele tá lá e tal...

    Por não ser um documentário explicitamente didático, dá para assistir várias vezes, sem se cansar, como se estivéssemos apreciando um show. Além das canções que saíram no "Let It Be", também aparecem algumas de "Abbey Road" e uns rocks antigos, como "Besame Mucho", "Rip It Up", "Shake, Rattle and Roll" e a fantástica "You Really Got a Hold on Me", tudo em climão de ensaio, inclusive com troca de instrumentos (Ringo e George tocam piano, Lennon vai para a bateria, Paul pega o violão, George manda ver no baixo etc.).

    No final, temos a íntegra do famoso e inusitado show no teto do estúdio. Os fabs conseguiram tocar meia dúzia de canções, antes que a polícia subisse até lá e os ameaçasse de prisão _Paul ironiza a respeito durante a última execução de "Get Back", completada com um gracejo de John. Não é um show antológico apenas por ser a última apresentação pública da maior banda de rock e fábrica de dinheiro da indústria fonográfica da história, mas porque é um concerto excelente, com os Beatles no auge da forma (já ouvi mais de um rockstar declarar que aprendeu a tocar guitarra observando o George neste filme). Sim, os Beatles se separaram no melhor momento criativo de suas carreiras. Por um lado é triste, mas, pelo outro, é a melhor coisa que poderia ter acontecido. Basta olhar para os Rolling Stones...

    Nota: 8/10

    P.S. Falando nos cabeludos e tal, li, recentemente, pelo menos dois textos (um na Salon e outro no no.mínimo) que afirmam o que sempre foi muito óbvio: Paul McCartney era o melhor músico/compositor/performer na banda. Duh, redescobriram a América.

    Meu preferido (todo fã dos Beatles tem o seu) é e sempre será o George, mas é preciso reconhecer que o grupo não seria nada se não fosse o velho Macca, seu baixo Rickenbaker, sua voz mutante, suas canções mezzo singelas, mezzo vanguardistas e sua carinha de baby Johnson. Lennon também era um gênio e tinha uma personalidade explosiva, o que lhe garantia maior atenção da mídia (muitíssimo ironicamente, acabou transformado em uma espécie de Cristo moderno, após seu assassinato) e tal, mas seu talento não tinha a abrangência do seu parceiro mais jovem. It's true, it's true.

    P. P. S. Vi hoje "Adaptação", segundo filme do Spike Jonze. Beeem melhor do que "Quero Ser John Malkovich", mas, a exemplo deste, também se perde um pouco no final. Falaremos mais no futuro, aguardem. E assistam.

    P. P. P. S. Coyotes, olhem para a Lua e uivem para José Lewgoy, que poderia ter sido um Anthony Quinn, não tivesse nascido aqui no cafezal. Depois, aplaudam.

    segunda-feira, fevereiro 03, 2003

    O Pai do Povo

    Apesar de eu escrever umas sandices sobre cinema neste minifúndio improdutivo e de ter escrito muitas outras sobre música em uns jornais e revistas aí, a minha especialidade mesmo é literatura, manja?

    E, dentre as leituras que mais me dão prazerrr, por sua complexidade e capacidade de gerar fascínio intelectual, emotivo e, por que não?, erótico, estão os rótulos de shampoo (dá licença, “xampu” é feia demais). “Modo de usar: Aplique nos cabelos molhados, massageando até formar espuma. Enxágüe. Repita a operação, se preferir.” Uau. Delírio. Cadê o Nobel? O Jabuti?

    O problema é que, por causa dos malditos rótulos da frente, mais padronizados do que textos jornalísticos medíocres, eu vivo comprando condicionador (que não uso. Se pelo menos desse pra beber...) por engano. E os textos dos rótulos de condicionador não têm o mesmo charme. Ora, bolas.

    Mas, então. De graça, até injeção no olho, certo?

    Não, leitores (ó o toque machadiano aqui, ó), os condicionadores não vêm de graça. Cinema em São Paulo, sim. “É só entrar”, disse a bilheteira do Cinesesc, uma das salas mais charmosas da capital imunda, durante um dos dias da mostra Únicos Pecados, que, no final de 2002, exibiu filmes de diretores com apenas um longa no currículo.

    Calhou que a inflamada Vanessa e eu acabamos indo à sala justamente quando estava passando “O Pai do Povo”, curiosidade desimportante dirigida em meados dos anos 70 por Jô Soares, humorista que apareceu no cinema ainda nos anos 50 (participou de uma chanchada de Carlos Manga, a famosa “O Homem do Sputnik”, que tentou fazer de Norma Bengell a Brigitte Bardot brazuca) e, à época de sua aventura na direção de um longa, participava de programas humorísticos da rede Globo, sendo o mais lembrado deles “Satiricon” (lembra o nome de um filme de Fellini), uma espécie de precursor do “TV Pirata”.

    Eu me lembro de quando era criança e assistia ao “Viva o Gordo”, programa que Jô protagonizava às segundas-feiras (quinta-feira era o dia de “Chico Anysio Show”, e o resto da semana exibia séries estrangeiras e outros programas, sob alcunhas como “Terça Nobre” e “Sexta Super”. Ai, meu reumatismo). Até que eu gostava _especialmente do figuraça Paulo Silvino. Mas, hoje, quando o Jô reprisa trechos desse programa no quadro “No Fundo da Caneca”, a gente vê o quanto o gordo era sem graça.

    Em “O Pai do Povo”, é como disse a Van: “ele fez o papel de quem ele gostaria de ser”. Tal papel é o do “magnífico” Contreras, o todo-poderoso de uma ilhota chamada Silvestria, que, pasmem, tem a forma do rosto de Jô Soares... Ah, há estátuas do personagem espalhadas por toda a parte, durante todo o filme. Ego? Ora, o que é isso...

    E Jô é um péssimo ator. O que ele se limita a fazer durante todo o filme é dar risadas canalhas e ostentar o “V” da vitória com os dedos de sua mão direita _a outra segura o indefectível charuto.

    O ponto de partida até que não é mau (e me lembra “O Dorminhoco”, filme meia-boca que o Woody Allen havia feito pouco antes): depois da explosão simultânea de três bombas atômicas, todos os homens do mundo se tornam estéreis, menos um silvestrense, que trabalhava num encanamento de chumbo. Sendo o único homem fértil do mundo, o humilde indivíduo torna-se peça-chave para o futuro da raça humana. E Contreras, esperto, transforma-o no “pai do povo”, cobrando US$ 500 milhões de cada país que quiser enviar uma mulher para ser fecundada pelo feioso.

    Em suma: é uma pornochanchada típica da época, com direito a peitos (ainda sem silicone) e humoristas de meia-tigela, como o Agildo Ribeiro (cadê o Costinha?). Tá, há momentos engraçados, mas outros são simplesmente vexaminosos... ou seja, sintetiza bem o nosso cinema em meados dos anos 70. Agora, com licença. Vou lá lavar a minha juba...

    Nota: 5,5/10

    P. S. Em contrapartida ao artigo do Sabadin, vá de Matt Groening e sua cáustica "Life in Hell". Desculpem, não lembro onde vi isto...

    Na platéia