A gruta é mais extensa do que a gruta

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    terça-feira, dezembro 30, 2003

    Sobre Meninos e Lobos / Os Imperdoáveis / A Promessa

    A morte, surda, caminha ao meu lado, e eu não sei em que esquina ela virá me beijar.

    Se eu me lembro bem (poucas coisas são mais traiçoeiras do que a memória _em especial, a memória de um escritor), li “Crime e Castigo” quando tinha 14 anos (do homicídio deste para o suicídio em “O Idiota” e o parricídio em “Os Irmãos Karamázov”, passando pela pena de morte em “Memórias da Casa dos Mortos”, não demorou muito tempo _foi como droga aditiva). “East of Eden”, um dos maiores romances do século XX (cujas últimas das muitas páginas foram filmadas por Elia Kazan, marcando a estréia do cadáver-fetiche James Dean no cinema), foi um tempinho depois. Até o “Murder Ballads” e o Marquês de Sade acabaram entrando na história. Mas acho que tudo começou mesmo com o “Gênesis”...

    Para qualquer lado que a gente vire a cabeça, vemos assassinato. Matar parece um ato intrínseco a todos os animais, algo de nossa natureza. Todo mundo já matou, mesmo que seja um inseto. Tem gente que até mata por prazer... Mas é realmente preciso?

    O novo filme de Clint Eastwood se chama “Mystic River”. O Mystic é um rio de Boston, capital de Massachusetts, uma das áreas primeiras áreas dos EUA a ser colonizada e local de origem dos Pixies. Rios, vocês que gostam de histórias policiais devem saber muito bem, são os melhores lugares para a desova de cadáveres. Em português, ganhou um título diferente, mas bastante apropriado, que fala de meninos e lobos. A gente entende o que isso quer dizer quando assiste à obra.

    Temos aqui a história de três garotos, a princípio unidos pela amizade, depois, pela tragédia. Morte e morte. O que poderia ser uma simples trama de investigação policial se torna um grande romance sobre as vidas de Jimmy, Sean e Dave e a de suas famílias. Tem gente que até relaciona aspectos do enredo à atual situação geopolítica, mas eu não acato totalmente esse tipo de análise; creio que Eastwood lida, aqui, com arquétipos bem mais profundos. Meninos e meninas, lobos e lobas, assassinos e assassinados.

    É um belo filme, embora não tão bom quanto eu esperava (sim, eu espero muito do Clint). Eastwood (que também assina a trilha sonora), considerado um conservador em termos políticos (o homem já foi até prefeito republicano de uma cidade californiana, Estado no qual estrelas de cinema costumam se eleger), chama logo dois notórios rebeldes, Sean Penn e Tim Robbins (só faltou o Martin Sheen), para estrelar o filme. O primeiro está num papel que é a sua cara; o segundo está um tanto estranho _provavelmente, é o personagem. A grande surpresa é Kevin Bacon, fechando o trio de protagonistas, numa ótima performance _o que uma carreira de filmes meia-boca não faz com um ator... Quem também causa grande impressão é Laura Linney, com um discurso digno de Lady Macbeth, numa cena que chega a ser chocante. Não é pouco, não. Mas também não é o melhor do ano.

    “Unforgiven” (1992), por outro lado, é um dos melhores filmes da década de 90 _justamente a década em que Eastwood conquistou respeito como diretor. “Os Imperdoáveis” é sua obra-prima, dedicado singelamente a “Sergio and Don”, Sergio Leone e Don Siegel (já viram “O Estranho Que Nós Amamos”?), seus mestres, que o imortalizaram em papéis antológicos, e não apenas em faroestes.

    E a homenagem está à altura. O filme é um exemplo de mestria narrativa. Não há firulas, não somos subestimados, não somos tratados como idiotas, como Hollywood e seus malditos David Finchers costumam fazer. A obra impressiona justamente por não ser sensacionalista, evita de todas as maneiras adotar um tom épico, numa cinematografia e num gênero bastante propensos ao espetáculo. Também não se priva de emocionar, embora drible o sentimentalismo barato. E não se esquiva de cenas de extrema violência, mostrada com uma crueza digna de Peckimpah. Só que nunca um western trabalhou o suspense com tanta eficiência _são inúmeras as cenas em que a gente se segura na cadeira, esperando que algum clichê prevaleça, e sempre somos pegos de surpresa. E ainda temos atuações monumentais de Gene Hackman e Richard Harris. Clint também está ótimo, cristalizado, um diamante (em mais de um sentido). Tá, temos a mediocridade-mor de Morgan Freeman para atrapalhar, mas, mesmo assim, trata-se de um filme de mestre.

    Claro que não se trata de uma obra-prima apenas pelas suas qualidades técnicas. O conteúdo de “Unforgiven” é monstruoso, no bom sentido. Dois garotos, dois fazendeiros chucros, causam tumulto num prostíbulo da cidadezinha de Big Whiskey. Uma prostituta tem a cara toda cortada a faca, e o seu cafetão aciona o xerife Little Bill, exigindo reparação pelos danos à sua propriedade. As prostitutas, indignadas, querem que eles sejam enforcados. O homem da lei demonstra não querer mais derramamento de sangue, pondera que os réus não são criminosos, apenas trabalhadores que fizeram uma besteira, e se limita a aplicar uma multa razoavelmente pesada. Os rapazes pagam a multa direitinho, e ainda oferecem um adicional à vítima, que em nenhum momento chega a demonstrar rancor semelhante ao das colegas, que desejam vingança a todo custo. E elas juntam mil dólares e põem a cabeça dos dois rancheiros a prêmio, dando bastante trabalho para o xerife (cujo máximo de vilania é ser um policial truculento) e seus asseclas, que não pegarão leve ao tentarem assegurar a lei e a ordem na localidade. Como se vê, trata-se de um primoroso (e complexo) ponto de partida.

    É aí que ficamos conhecendo William Munny, viúvo, pai de duas crianças, dono de um pequeno sítio de porcos doentes. Na juventude, Munny foi alcoólatra e assassino, matava gente a troco de nada, sem sequer poupar mulheres e crianças. Como ele mesmo diz, matou tudo o que anda e rasteja sobre a terra. Mas, felizmente, há gosto para tudo nessa vida, e Munny, vejam só, é salvo pelo amor de uma mulher. Graças e ela, ele pára de beber e de matar. Ela morre, e ele fica com dois filhos, atolado em merda de porco, no meio do nada, até que surge Schofield Kid, um menino metido a valentão, disposto a coletar a recompensa das putas de Big Whiskey com a ajuda do lendário malfeitor.

    Munny não bebia e não matava ninguém havia onze anos. Seus filhos sequer desconfiam que o pai foi um dos assassinos mais cruéis e covardes que o Oeste já conheceu. O que vemos, a princípio, é um pai que se preocupa com o futuro de suas crias. Assim, ele, alquebrado, parte para tentar ceifar mais duas vidas. O grande dilema moral se instala.

    Munny é cheio de remorso. Ele reconhece que suas vítimas não mereciam ter morrido. Afirma não se lembrar da maioria das maldades que fez por causa do uísque e crê ter mudado. Diz que agora ele é apenas mais um, que não é mais diferente dos outros _mas o próprio embate entre Munny e Kid negará tal concepção. E o ciclo dá mais uma volta, e não ficamos sabendo se tudo termina ali ou se ele continua.

    “Os Imperdoáveis” (desconfio muito do plural desta tradução) foi saudado, por características que já observei aqui, como um “faroeste maduro” (como se tivesse sido o primeiro...). Mas, para um homem com a idade e a vivência de Clint, encarar a maturidade é algo naturalíssimo, e é justamente isso o que ele faz neste e em filmes seguintes, com diferentes tons, como em “Cowboys do Espaço” e “Dívida de Sangue”. Aqui, ele esbanja (como também o faz, com menor beleza, em “Sobre Meninos e Lobos”) responsabilidade e ética, simbolizadas pela frase-chave do filme, dita por Munny a Schofield Kid: “Matar um homem é uma coisa infernal. Você tira dele tudo o que ele tem e tudo o que um dia ele viria a ter”. Um verdadeiro gol de placa.

    Mas o cinema também adora os tais serial killers. Já viram o que se faz de filmes citando (enaltecendo?) essas pessoas que matam apenas porque gostam de matar? Claro que, no meio desse lixo todo, achamos filmes dignos, de pérolas como “M, o Vampiro de Dusseldorf” a este bonzinho “A Promessa”.

    Sean Penn volta a dirigir Jack Nicholson, como já havia feito no superior “Acerto Final” (1995). Novamente, o tema é a vingança contra um assassino de garotas. Desta vez, Jack encarna o velho clichê do policial prestes a se aposentar, mas que fica obcecado por seu último caso. O interessante é que Penn evita outros clichês do gênero, dando à sua história um dos desfechos mais tristes dos últimos tempos.

    Só que Penn, como diretor, ainda tem muito o que aprender. Aprender com Clint, por exemplo, a contar uma história sem apelar tanto para os símbolos, para as alegorias, para as “imagens interessantes”. Penn é chegado numa “poesia”, no mau sentido. É um caminho perigoso, que às vezes até funciona (como no curta que integra o filme do 11 de setembro), mas que, no caso deste longa, o compromete consideravelmente. Um pouquinho mais de foco não mata ninguém.

    P. S. Espero que 2004 seja um ano cheio de vida para todos. Afinal, não é a esperança que morre por último?

    domingo, dezembro 14, 2003

    Uma Rua Chamada Pecado / Dois na Gangorra / Meu Amigo Harvey / Viagem a Roma

    Na entrada do meu mundo tem um letreiro de luz. Meu mundo não é uma esfera, tem o formato de cruz.

    Este ano não acaba, hein? Mal vejo a hora de sair de São Paulo e ver minha família, apesar de estar adorando ralar como roteirista e diretor em projetos de curta-metragem (dinheiro que é bom, nada, mas a atividade é uma delícia).

    Mas muita gente reclama de 2003 por inúmeros motivos; eu, em vez de reclamar, quero agora lembrar que foi o ano em que perdemos vários cineastas, entre eles o Elia Kazan (1909-2003), que causou polêmica num Oscar, há alguns anos, e que, no próximo, certamente vai aparecer de novo, naquela parte em que são lembrados os falecidos durante o ano. Será que vai rolar a mesma celeuma? Acho que não, costuma-se perdoar os mortos...

    Bom, eu gosto bastante dos filmes do Kazan, embora ele não esteja entre os meus grandes preferidos. Infelizmente, assisti à maioria de suas obras há muitos anos, o que me impede de falar do cinema do homem com mais propriedade _"Viva Zapata!", "O Último Magnata" e este "Uma Rua Chamada Pecado" são os que vi recentemente, todos pela primeira vez, e não figuram entre os meus prediletos.

    Este último, de 1951, é o seu primeiro grande clássico, uma adaptação da célebre peça "Um Bonde Chamado Desejo" (por que a mudança no título?), de Tennessee Williams (um dos grandes fornecedores de obras adaptadas pelo cinema), sem a qual Almodóvar nunca teria feito o seu premiado "Tudo Sobre Minha Mãe". Temos Marlon Brando, o ator favorito de Kazan, no auge da beleza, e Vivien Leigh (a eterna Scarlett O'Hara de "...E o Vento Levou", embora tenha encarnado outros grandes personagens, como Cleópatra e Anna Karênina), não tão bela como a srta. O'Hara, mas novamente no papel de uma mulher do sul dos EUA _embora a atriz fosse britânica, nascida na Índia. E não é que é ela quem rouba o filme, apesar de todo o magnetismo de Brando?

    Pois sua Blanche Dubois (a "branca do bosque"), uma dessas grandes personagens femininas trágicas da dramaturgia, passa pelo calvário da morte dos familiares, das perdas financeiras, das paixões não-correspondidas, do aviltamento da moral e do próprio abalo da sanidade, ao mesmo tempo digna de pena e estranhamente fascinante. Todos os conflitos que vive ao se hospedar na casa da irmã, grávida do jovem e truculento marido de origem polonesa, são mostrados por Kazan com eficiência, apesar de a época não permitir bastante clareza em relação às questões sexuais _por sinal, os EUA de Bush parecem viver uma nova era de mccarthismo, com cineastas como Brian de Palma e Paul Verhoeven sendo compelidos a "pegar mais leve" quando o assunto é foda.

    E é justamente toda essa carga de repressão que dá vazão a alguns dos momentos mais poéticos do filme, como a cena em que o espelho se quebra e a do esguicho de champanhe de Brando _uma das maiores metáforas sexuais do cinema, como o famosíssimo plano final de "Intriga Internacional", do velho Hitch. Driblando todos esses problemas, Kazan conseguiu fazer considerável justiça ao texto do dramaturgo.

    Ainda na seara de adaptações do teatro para o cinema, temos este "Dois na Gangorra" ("Two for the Seesaw", 1962), belíssimo filme do grande Robert Wise, que está vivo (2003 não o vitimou _ainda) e, apesar de ter dirigido filmaços como "Punhos de Campeão" (além de ser o montador de Orson Welles), é mais conhecido pelos musicais "Amor, Sublime Amor" e "A Noviça Rebelde".

    Tá, "West Side Story" e "The Sound of Music" são bons, mas eu prefiro muito mais este aqui, uma produção de orçamento bem menor, baseada na peça de William Gibson (não confundir com o escritor de "Neuromancer") que enfoca o romance entre um um advogado recém-divorciado (um contido Robert Mitchum) e uma bailarina (Shirley McLane, simplesmente brilhante). Mais uma vez, quem rouba a cena é a atriz, que repete o papel de garota espevitada e pouco glamourosa de filmes como "Artistas e Modelos" (do Tashlin, com Martin e Lewis), só que, aqui, com muitíssimo mais charme e profundidade. Mitchum está muito bem, embora não tão sensacional quanto McLane _também, seu confuso personagem é bem menos atraente à primeira vista.

    Se a dramaturgia, como é de se esperar em filmes baseados em peças, é de primeira, alguns aspectos técnicos incomodam, como a edição (há muitos problemas com os planos e contra-planos). Mas isso fica em segundo plano diante da primorosa fotografia e da impressionante cenografia que une os apartamentos de McLane e Mitchum. Pode ir atrás, que vale a pena.

    Mais um grande filme, baseado numa grande peça (é o último deste texto, prometo), é "Harvey" (1950), dirigido pelo alemão Henry Koster e estrelado por James Stewart (a MGM quer fazer um remake, andaram sondando o John Travolta...). Mais uma vez, o enredo é de primeira, e não de espantar que Mary Chase tenha ganhado o Pulitzer com a peça.

    O mais brilhante é que tudo começa como uma mera comédia de erros, na qual Elwood P. Dowd, um milionário chegado numa cachaça (na verdade, em martínis), vive apresentando para os outros o seu amigo Harvey. Só que há dois probleminhas: 1) Harvey, a princípio, é um desses amigos imaginários e invisíveis, que a gente costuma ter na infância; 2) Harvey é um coelho de 1,90 m de altura.

    Parece hilário (e é _são raros os filmes que me fizeram gargalhar, e este é um deles), mas o filme dá uma reviravolta impressionante e se torna absolutamente comovente _e sem ser babaca ou sentimentalóide, o que é o melhor. Os vários personagens são introduzidos lentamente, e a gente desconfia de que a história vai ficar desamarrada, mas tudo vai se encaixando de modo encantador, o que atesta o talento dramatúrgico de Mary Chase, que criou uma verdadeira obra-prima sobre a realidade e a alienação social, sobre o amor e a amizade.

    E, além do roteiro, também são destaques James Stewart (apesar de "Janela Indiscreta" e "Um Corpo Que Cai" figurarem entre meus filmes favoritos, é em "Harvey" que Stewart realiza a sua maior atuação _sério, é a melhor performance dele que já vi, de longe) e a belíssima Peggy Dow, que abandonou a carreira ao se casar com um ricaço. Também não consigo me esquecer das palavras de Dowd, encarado como louco pela maioria: "Na vida, ou você é muito esperto ou muito agradável. Eu recomendo a segunda opção".

    Voltando a mais um filme sobre um casal em crise, temos o clássico "Viaggio in Italia" (1953), filme da fase em que Roberto Rossellini ("um santo", como dizia Glauber Rocha) era o esposo da sueca Ingrid Bergman (belíssima, apesar de estar beirando os 40), e cujo clássico é "Stromboli", no dizer da maioria. Ingrid contracena com George Sanders (que, a exemplo da atriz, também foi dirigido por Hitchcock), que impressiona pela frieza britânica (sim, o filme é em inglês, apesar do título italiano). E, se o filme (em especial, a cena final) tem o potencial de emocionar, é justamente por sua falta de apelo fácil ao sentimentalismo, como ocorre em todos os filmes discutidos neste texto.

    Outro grande destaque do filme é justamente que ele ilustra o seu título: boa parte dele é "turístico", o que representa, ao mesmo tempo, sua maior força e maior fraqueza. Fraqueza da dramaturgia, que realmente deixa a desejar (embora existam alguns momentos primorosos, como o modo que Rossellini passa o desejo de a mulher ter filhos), e força das imagens, impressionantes, especialmente para estrangeiros, que entram em contato com a região de Nápoles há cinco décadas (os destaques são as cenas no museu e em Pompéia, aos pés do Vesúvio). Mesmo assim, "Viagem à Itália" é, no geral, decepcionante, principalmente se você já viu as obras-primas do diretor, mas está longe de ser descartável. Uma pena que a edição do DVD da Versátil seja tão indigente e lamentável. Arrivederci, baby!

    P. S. Tá, mais unzinho: "O Mercador de Almas" ("The Long Hot Summer", 1958) é dirigido por Martin Ritt (de "Hombre"), baseado em dois contos de William Faulkner (sim, mais uma vez, o sul dos EUA e aquele delicioso sotaque caipira) e traz no elenco Joanne Woodward (ótima), Lee Remick (belíssima!), Paul Newman (...Paul Newman, né?) e Orson Welles, que dá um caldo em todos eles. Sério, o Will Varner de Welles é uma caracterização brilhante, e suas cenas com o Ben Quick de Newman são imperdíveis. Dá gosto ver dois grandes atores assim juntos...

    quarta-feira, dezembro 03, 2003

    As Invasões Bárbaras / Os Reencarnados

    I'm a humble guy with healthy desires. Don't give me no shit, because I've been tired.

    Não sei se não sei bem o porquê, mas, assim como eu detesto competição, eu gosto de divergências. Sinto especial comichão em ver filmes que dividem opiniões, como este "As Invasões Bárbaras". Várias pessoas adoraram (um até chegou a me dizer que "este é o filme que eu queria fazer"), várias detestaram (o termo mais usado foi "medíocre" _um termo que, necessariamente, não constitui ofensa, embora muita gente não o perceba), o que acho ótimo. Pena (pena?) que, quando o vi, ainda não tinha entrado em contato com tais opiniões.

    Antes de mais nada, é bom eu esclarecer que, infelizmente, não vi a preqüela (fiquei curioso), "O Declínio do Império Americano", datada do longínqüo 1986. Isso atrapalha muito um princípio de análise deste novo filme de Denys Arcand (de quem apenas vi o também mediano "Jesus de Montréal"). Pois há várias maneiras de pensar sobre um filme, vários são os critérios (uns melhores do que outros) que podemos adotar. Eu não costumo considerar um filme ruim apenas por ele apresentar idéias ou posições éticas diferentes das minhas (apesar de considerar essencial a responsabilidade, sou totalmente contra o moralismo reacionário), embora o conteúdo nunca seja desprezível... Mas, fechando este parêntese irritante, assim como vi o filme ser contaminado por opiniões alheias, minha opinião segue sem ser manchada pelo filme que o antecedeu.

    Não me incomoda, especificamente, o conteúdo de "As Invasões Bárbaras". Não me incomoda a demonstração do poder do dinheiro sobre a ética (apesar de o Canadá ser, há muitos anos, o campeão do índice de desenvolvimento humano, não é de espantar que lá também existam mazelas), não me incomoda o uso de drogas, não me incomoda o adultério, o homossexualismo ou o casamento entre cônjuges de idades muito diferentes, não me incomoda a idéia de que as ideologias vigentes durante parte do século XX sejam (sabiamente?) ridicularizadas diante da proximidade da morte. Nada disso me incomoda (deveria?).

    O que me incomoda, em "As Invasões Bárbaras" (filme inquestionavelmente bem-feito), é justamente o fato de ele ser "agradável". Não agradável no sentido de nos fazer bem, de nos fazer mais felizes ou nos tornar pessoas melhores ("Embriagado de Amor", o melhor filme do ano, é abrasivo, nos incomoda, nos faz até sofrer, mas acaba nos transformando, e saímos leves como uma pluma do cinema), mas no de nos anestesiar diante de assuntos vitais (e mortais). É um filme calculado para emocionar (nem é esse o problema), mas ele não nos transforma, sequer chega perto disso. Trata-se de um filme inofensivo, sem pungência alguma, previsível, "bonitinho", quase anódino e facilmente esquecível. No máximo, suscita algumas reflexões sobre a morte (mas passa longe de obras-primas como "Gritos e Sussurros"), mas é pouco, embora seja um tantinho acima da média dos terríveis filmes hollywoodianos "feitos para a família". A melhor imagem de "As Invasões Bárbaras", justamente, não foi filmada por Arcand: trata-se do avião chocando-se contra o World Trade Center, quando o título do filme é explicado. É muito pouco, seu Arcand. Será que um dia ele chega lá ou é caso perdido?

    Já este "Os Reencarnados" ("The Undead", de 1957), de um dos papas do cinema de baixo orçamento, Roger Corman (mestre do Scorsese aí de baixo), cuja importância ainda não foi bem mensurada, é um desses filmes adoráveis, que nos tornam melhores. Um filme que transpira princípios éticos, que combate de frente a idéia de egoísmo, de cinismo, e promove a do sacrifício para o bem maior _e, importantíssimo, sem ser um tiquinho chato ou reaça por causa disso.

    Apesar do que o título (e o nome do diretor) indica, não se trata de um filme de terror _embora o próprio diabo (apenas um patético barbudinho segurando um tridente tosco) e bruxas estejam entre os vilões. Trata-se de uma ficção científica de viagem no tempo (precursora direta da deliciosa trilogia "De Volta para o Futuro"), na qual o imaginário da Idade Média é aproveitado de modo absolutamente eficiente e encantador. É uma história contada de uma maneira leve e graciosa, um verdadeiro deleite narrativo. Mas quem é que vai levar a sério um filme de tão baixo orçamento, no qual os atores se transformam em morceguinhos de papelão puxados por fios? Não, a imensa maioria vai dizer, sem pensar, que "As Invasões Bárbaras" é melhor, embora este "Os Reencarnados" seja infinitamente mais emocionante... Ah, a humanidade! Hahahahaha!

    P. S. Alguém aí vai ao Resfest? Têm coisas muito legais rolando...

    Na platéia