A gruta é mais extensa do que a gruta

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    domingo, maio 25, 2003

    Roger e Eu / The Big One / Tiros em Columbine

    Weep not, child. Weep not, my darling. With these kisses, let me remove your tears.

    Mas eu estava conversando com um amigo sobre a identidade do homem da primeira base... Já percebeu que é só fazer papel de débil mental para ganhar um Oscar? O Dustin Hoffman em “Rain Man”, o Geoffrey Rush em “Shine”, o Russel Crowe em “Uma Mente Brilhante”... Quem fizer o papel de George W. Bush no cinema vai levar uma estatueta dourada, é barbada. Quem seria o ator ideal para a façanha?

    Falando no Oscar, e esse Michael Moore, hein? O gordinho barbudo de óculos, boné e cabelo ensebado, que lava as axilas rigorosamente uma vez por ano e depois veste a mesma roupa, já era razoavelmente conhecido por uma parte da descolândia, mas foi só ganhar o prêmio de melhor documentário por “Bowling for Columbine” (que está sendo exibido até no Cinemark! E é documentário! Documentário, um palavrão para os cartolas do cinema!) e mandar o filho bêbado do ex-vice do Reagan tomar vergonha naquela cara apatetada e orelhuda para virar um superstar. Já tem gente chamando o cara de “o Anticristo da era Bush”... Legal, legal!

    Pois foi só o figura ganhar o Oscar, e as TVs brasileiras, felizmente, não demoraram a exibir alguns dos filmes do cara. O canal do Silvio Santos, pasmem, passou “Roger and Me”, o documentário que revelou Moore (que era jornalista da imprensa alternativa), legendado, em uma madrugada... Parece pouco? Não é.

    Bom, para entender qual é, afinal de contas, a desse tal de Michael Moore, é preciso contextualizar a trajetória do mancebo (ou melhor, “man sebo”), e “Roger e Eu” (não, não é sobre um suposto “affair” tórrido com o líder do Ultraje a Rigor) é o filme ideal para apresentá-la. Tudo começa na cidade de Flint, em Michigan, a cerca de uma hora de Detroit, região célebre por ser a sede de grandes indústrias automobilísticas. Foi em Flint, narra Moore, que a General Motors nasceu. A famosa greve de 1936 é citada como fato histórico, e a presença de celebridades como Pat Boone nas festas da empresa conferia um certo glamour ao local, cuja economia girava em torno da fábrica.

    Só que, no fim dos anos 80, a empresa, cujo presidente chama-se Roger Smith, fecha 11 fábricas na região, causando a demissão de umas 30 mil pessoas. Em seu filme, Moore documenta a catástrofe que o acontecimento causou em Flint: a criminalidade aumenta assustadoramente, a população apela para subempregos (a personagem mais pitoresca do filme é justamente uma mulher que passa a criar coelhos para vender), dezenas, centenas, talvez milhares de famílias são despejadas (outro personagem de destaque é um policial cujo doloroso serviço é fazer cumprir as ordens de despejo), e os políticos empreendem tentativas patéticas e desastrosas de reavivar a economia local, como procurar transformar a cidade em ponto turístico, bóf.

    Paralelamente a isso tudo, Moore entrevista personalidades inusitadas, como a Miss Michigan (que, bem, é uma miss...), e passa três anos perseguindo Roger Smith, desejando que ele testemunhe o abandono que tomou conta de Flint, e só consegue falar com o dito cujo uma vez. Sim, uma das qualidades jornalísticas de Moore é que ele é um carrapato. E “Roger e Eu” é um documentário interessante, feito de maneira bem, digamos, “largada”, bem no estilo Michael Moore, um precursor do grunge. E que tem, como tema, a maravilhosa “Wouldn't It Be Nice”, dos Beach Boys, citada por um ex-empregado da GM, aos prantos.

    “The Big One”, exibido aqui pelo GNT, é uma espécie de continuação de “Roger and Me”. Traz, exacerbada como nunca, uma das características que mais depõem contra o cineasta: seu narcisismo, seu “jornalismo gonzo”, esta muleta na qual muita gente sem talento, mas com delírios de grandeza, se apóia. Isso causa um certo desequilíbrio em seus filmes (e, provavelmente, em seus livros), há o risco de o documentarista se tornar maior do que o documentário, e Moore parece curtir a persona de celebridade, além de saber dramatizar certas situações, o que nos dá a impressão de que ele, por vezes, é tendencioso demais, apesar de bem-intencionado.

    Então, “The Big One” (nome que Moore sugere para rebatizar os EUA em um programa de rádio, satirizando os executivos de marketing) documenta uma turnê literária _nos EUA, é bastante comum os autores de best sellers viajarem o país, dando noites de autógrafos em livrarias (aqui no Brasil isso também chega a rolar, mas em proporções infinitamente menores). São, se não me engano, 47 cidades em 50 dias, atravessando o país de costa a costa. E, no meio de algumas palhaçadas dignas de pegadinha do Mallandro (como mandar o segurança expulsar sua própria agente literária, entre outras muitas ironias, algumas divertidas), Moore, que lança um livro chamado “Downsize This!”, uma crítica aos cortes de funcionários norte-americanos em multinacionais e ao fechamento de fábricas (lógico que o drama de Flint será repisado à exaustão), visita várias empresas ao longo do país, tentando falar com os CEOs para questionar a política de empregar mão-de-obra barata em países como México, em vez de seguir alimentando a população dos EUA. Claro que ele só levará portas na cara, com uma exceção louvável: o bambambã da Nike, empresa famosa por ter aberto uma fábrica na Indonésia, aquele país que massacrou o povo do Timor Leste, pagando meia pataca para os funcionários, recebe Moore e é fustigado com perguntas como “você não tem consciência?”.

    Mas o documentarista atinge o seu auge com o oscarizado “Tiros em Columbine”: partindo do infame episódio em que dois garotos matam e ferem vários colegas e funcionários de um colégio, Moore faz uma pesquisa muito interessante sobre a cultura do medo e da violência no “Grandão”, comparando-o com outros países do dito “mundo livre”, como França, Austrália, Inglaterra e Canadá (taí, eu gostaria que o nosso Brazuca tivesse entrado na roda. Talvez o país do Tio Sam não seja tão violento assim...).

    Diz aí: você sabe que um animal acuado ataca, não? Paranóia tem potencial de gerar violência, concorda? Armas não são nem um pouco perigosas, desde que dedos dementes não carreguem os pentes e puxem os gatilhos, certo? Pois essas questões óbvias parecem absurdas para o norte-americano mediano. Moore mostra que a mentalidade deles é a de “eliminar o intermediário”. “Para que eu vou chamar a polícia, se eu posso ter armas em casa e defender minha família com elas?”, pergunta uma mulher, que atira desde criancinha. Como diria o Homer Simpson, doh!

    Então os absurdos pululam, como o banco que dá armas como brinde para quem abrir uma conta (hilário, se tamanha estupidez não fosse lamentável) e a cidade na qual todos os cidadãos são OBRIGADOS a portar armas de fogo. E, mais do que mostrar essas barbaridades, o nosso amigo Moore põe o dedo na ferida e exibe, em um clipe cuja trilha sonora é “What a Wonderful World” (a música mais triste já escrita, na opinião do indispensável Nick Cave), relatando as porcarias que a política externa dos EUA realizou no século XX. Qual o exemplo mais nocivo para a sociedade, o extremamente lúcido Marilyn Manson ou o presidente norte-americano ordenando bombardeios em outros países?

    O terror aflora nas gravações de chamadas do 911 (e depois os americanos ficam putos com o Lars von Trier por causa de “Dogville”, que perdeu para Gus Van Sant a Palma de Ouro em Cannes _vocês não acharam que ia dar “Carandiru”, né?), nas entrevistas com os jovens, com o irmão de um dos responsáveis pelo horroroso atentado que matou quase 200 pessoas em Oklahoma (e que nunca ouviu falar em Gandhi), no caso de um menino de seis anos que matou uma menina da mesma idade, num desenho animado a la “South Park” (e um dos criadores da série também dá seu testemunho) que resume a trajetória do país de Dick Cheney (e bota “dick” nisso) e no próprio Moisés, o Charlton Heston, dizendo que só arrancarão as armas de suas “mãos geladas e mortas”. Brr.

    Mas o melhor de tudo é que Moore, finalmente, conseguer fazer a diferença: vejam o que acontece quando ele leva dois garotos, baleados em Columbine, para protestar contra as vendas de balas (não as doces, claro) na maior rede de supermercados da América. É emocionante, ele mesmo não consegue acreditar.

    É, é como cantam os Beach Boys na faixa que abre o “Pet Sounds”: “maybe if we think and wish and hope and pray it might come true / baby, then there wouldn't be a single thing we couldn't do”.

    P. S. A trabalhosa apuração dos votos da importantíssima pesquisa "as notas ficam ou não" foi a seguinte: um voto a favor, dois votos contra. Portanto, os filmes não mais recebem notas duvidosas neste site. Regozijem-se!

    terça-feira, maio 20, 2003

    Chicago / Psicose

    Olha só: comprei um DVD. Fodeu.

    Então, segunda-feira, 7 de abril, e a maledetta greve de ônibus me impediu de fazer o que eu achava que tinha de fazer. O jeito foi aproveitar o dia de bobeira para ir ao cinema e tirar o atraso (não, amiguinhos, eu não fui ver filme pornô nem bolinar mocinhas inocentes nas salas; é que, ultimamente, diminuí bastante a minha freqüência nos cinemas, por mais de um motivo).

    Eu queria ver “As Horas”, mas o filme já tinha saído de cartaz no cinema mais próximo do meu cafofo nervoso, então o jeito foi conferir o "grande vencedor do Oscar da temporada de 2002", credo.

    E já vou falando na cara: eu ADORO musicais. Tem gente que torce o nariz e acha que é coisa de perobo, mas eu acho o máximo. Quando são bem feitos, claro. E, quando digo bem feitos, não estou falando apenas das canções, dos intérpretes, dos figurinos, das coreografias, da dramaturgia, dos músicos e de tudo o mais que faz parte de um espetáculo musical. Estou falando de cinema, do uso criativo de uma câmera para registrar as performances e nos transmitir, através do olhar, uma história interessante.

    E é aqui que a porca torce o rabo e faz de “Chicago” um filme bastante decepcionante. A maior parte da obra é composta de um mero show da Broadway muito bem executado, mas mal e porcamente filmado. Os números musicais são externos à trama (uma solução fácil, mas não a melhor), imaginados pela cabecinha de Roxie Hart (mais uma prova de competência da texana Reneé Zellweger), a mulher ambiciosa que mata o amante e vai pro xilindró, onde encontra uma estrela que também fez burrada (Catherine Zeta-Jones, chuchu da minha marmita), uma policial durona (Queen Latifah, que, de cantora, passa para o cinema, onde está tendo sucesso) e um advogado mutreteiro (Richard Gere, um cara bem zen, com quem eu simpatizo extremamente).

    Sim, o elenco de Chicago, completado por John C. Reilly, como o Mr. Cellophane, o marido bonzinho da loira assassina, é muito bom. O show da Broadway original, pelo que a gente pôde ver pelo filme, parece também ser de qualidade, embora as músicas sejam bem pouco marcantes, e as letras, nada demais. A obra é irônica, inteligente ao criar certas expectativas para frustrá-las logo em seguida, e é legal o modo como ela se mistura a dois outros gêneros, o dos “filmes de tribunal” e o dos “filmes de cadeias femininas” (este último, prato cheio para apreciadores de sadomasoquismo, tanto sexual quanto cinematográfico).

    Tá, “Chicago” nem faz muito feio, de modo geral. Dá pra se divertir, passar o tempo e tal, mas, como resultado final, ficou bastante pobre (especialmente quando a gente os compara às obras-primas que Hollywood já realizou _taí um tema para mais uma estroboscópica cuspe-enquete: qual o seu musical preferido?), e aí não me surpreende ele ter sido contemplado com o Oscar, que também já consagrou filmes do quilate de “Shakespeare Apaixonado”, bluérgh.

    Mas vamos mudar da água para o vinho e falarmos de um outro tipo de crime, baby: “Psycho”, talvez o mais famoso filme de “serial killer” da história.

    Longe de ser o meu Hitchcock preferido, “Psicose” é admirável e extremamente marcante. A famosíssima “cena do chuveiro” talvez seja a cena cinematográfica mais satirizada da história (assim como a do balcão em “Romeu e Julieta”, se formos pensar em teatro). E acho que não exagero ao dizer que a incrível trilha sonora (difícil cravar se é melhor ou pior do que a de "Vertigo") de Bernard Herrmann é um dos maiores fatores do sucesso do filme... Poucas vezes uma trilha marcou tanto uma determinada cena (só posso compara-la com a de “Tubarão”, composta por outro bambambã do métier, o John Williams).

    Também marcante é a atuação de Anthony Perkins, que está genial como o jovem Norman Bates _seu rosto, no final, é uma das mais terríveis expressões do mal já vistas, brr (e só falo isso porque todo mundo, mesmo quem não viu o filme, conhece a conclusão do enredo, uma pena). A performance de Perkins é tão antológica que o "coitado" nunca mais conseguiu se livrar do estigma e, no fim da vida, passando por apertos, teve de voltar ao personagem em seqüências heréticas, na onda de continuações de séries de terror “gore”, nos anos 80. Triste, triste. Ah, mas ele esteve em outros filmes legais, como "Ardil 22", com Alan Arkin...

    Mas o que faz mesmo de “Psicose” um filme genial é a brilhante construção de planos que o Hitch usa para costurar uma história também fantástica, assim como é fantástica a atmosfera irrealista, de pesadelo, das imagens (não vou me alongar em questões técnicas para que vocês não durmam, caros tiroleses alegres). O filme traz uma brilhante virada de enredo, justamente quando a personagem de Marion Crane (Janet Leigh), que rouba uma grande soma em dinheiro e foge pelo interior dos EUA, vai tomar sua fatídica chuveirada (que é o verdadeiro clímax da obra).

    Ah, como se não bastasse, o filme foi copiado por Gus Van Sant, numa versão simplesmente imbecil _porque se trata de uma cópia quase exata, plano a plano, mas em cores e com atores menos carismáticos. Vão tomar banho!

    Chicago: 6,5/10
    Psicose: 9,9/10

    P. S. Você, quando vê um bom filme, também participa dele, pequeno gafanhoto. Ou você fica babando na poltrona, segurando um saco enorme de pipocas gordurosas e isoporentas, engolindo tudo o que é despejado nas suas retinas tão fatigadas? Ou fica com as mãos nas têmporas, gritando, enlouquecido, “Aaaaaargh! Estou pensaaaaandooooo!”, enquanto chuta o coitado que está sentado à sua frente?

    Então, para aumentar a sua auto-estima, dá só uma lida no seguinte trecho de “Palavra e Imagem”, um dos artigos que compõem “O Sentido do Filme”, a primeira coletânea de textos de Sergei Eisenstein, um dos maiores mestres do cinema em todos os tempos (para ficar mais divertido, conte quantas vezes ele usa a palavra “individualidade”):

    “A força do método reside também no fato de que o espectador é arrastado para o ato criativo, no qual sua individualidade não está subordinada à individualidade do autor, mas se manifesta através do processo de fusão com a intenção do autor, exatamente como a individualidade de um grande ator se funde com a individualidade de um grande dramaturgo na criação de uma imagem cênica clássica. Na realidade, todo espectador, de acordo com sua individualidade, a seu próprio modo e a partir de sua própria experiência _a partir das entranhas de sua fantasia, a partir da urdidura e trama de suas associações, todas condicionadas pelas premissas de seu caráter, hábitos e condição social_, cria uma imagem de acordo com a orientação plástica sugerida pelo autor, levando-o a entender e sentir o tema do autor. É a mesma imagem concebida e criada pelo autor, mas esta imagem, ao mesmo tempo, também é criada pelo próprio espectador. (...)

    E, agora, podemos dizer que é precisamente o princípio da montagem, diferente do da representação, que obriga os próprios espectadores a criar, e o princípio da montagem, através disso, adquire o poder do estímulo criativo interior do espectador, que distingue uma obra emocionalmente empolgante de uma outra que não vai além da apresentação da informação ou do registro do acontecimento. Examinando esta diferença, descobrimos que o princípio da montagem no cinema é apenas um caso particular de aplicação do princípio da montagem geral, um princípio que, se entendido plenamente, ultrapassa em muito os limites da colagem de fragmentos de filme.”

    P. P. S. Jesus!

    quinta-feira, maio 15, 2003

    Mouchette, a Virgem Possuída / Pickpocket

    Voltei ao meu peso normal. Meu cabelo está ficando legal de novo. Sinto bem menos necessidade de álcool/drogas. O sexo oposto voltou a demonstrar o interesse de sempre. I feel good.

    Então, notaram algumas diferenças entre os textos mais recentes e os antigos deste site? Não foi nada planejado, mas acho que mudou muita coisa (nem vou me alongar sobre o assunto).

    Mas tenho certeza de que, em alguns meses, terei vergonha deste texto. Ora, quem sou eu para falar de Robert Bresson (aqui, aqui, aqui, aqui e aqui)? Quem sou eu diante da imensidão das estrelas? “Eu já ia chegar no senhor, chefinho...”

    Pois teve uma mostra (gratuita, como tudo que é realmente bom na vida) do célebre cineasta francês no Centro Cultural São Paulo, costumeiro refúgio de punks e jogadores de Reeducação de Postura Global. Sim, deixei de jogar o quase tradicional basquetinho de sábado (pasmem, eu joguei basquete por um bom tempo, apesar de não ter mais de 2m de altura e deixar as unhas das mãos compridas _era pivô, inclusive) e fui conferir duas sessões lotadas, na seqüência _infelizmente, não deu para ver “O Processo de Joana D’Arc”, o que eu mais queria (falando nisso, já viram o impressionante filme do Dreyer? A minha amiga Cat Power (aqui, aqui, aqui, aqui e aqui) me disse, em uma das duas longas conversas que tivemos até hoje, que também gosta).

    Sem mais delongas: Mouchette é uma menina que não se dá bem com os colegas de escola (uma de suas diversões é jogar terra nas patricinhas; ela também foge do assédio dos moleques mais velhos), tem a mãe doente em casa, apanha do pai grosseiro (o irmão mais velho não fala nada) e cuida do mais novo, bebê. Fala pouco, mas se expressa bem. Tem seus momentos felizes, como a deliciosa cena dos carrinhos tromba-tromba (amostra da perícia de Bresson, assim como nas cenas de roubo em “Pickpocket”), mas isso é raro. Trata-se de uma dessas personagens trágicas, miseráveis, pungentes, desgraçadas, belas e o caralho a quatro.

    A história da guriazinha acaba se misturando com a de um guarda e de um caçador, que se digladiam sobre uma mulher e sobre a caça (há cenas cruéis de pássaros e coelhinhos sendo mortos, causou certo nojo na platéia). Após uma briga, que, tudo indica, acaba em homicídio, o caçador encontra Mouchette e a leva para sua cabana, onde passam a noite e... bem, há quem diga que a menina foi estuprada, outros acham que ela “deu gostoso”, para usarmos de um vocabulário mais condizente com o nível de sofisticação e requinte desta página eletrônica. E aí...

    Em resumo, é um desses filmes que, apesar de mostrarem tudo (com clareza e beleza assustadoras), sugerem bastante, deliciando e, às vezes, confundindo seus espectadores, sem, no entanto, menosprezá-los em momento algum. E a cena final é primorosa, sublime, lindíssima, emocionante. Vale o filme.

    Já “Pickpocket” (que já foi batizado aqui no Brasil como “O Batedor de Carteiras” e “Como Roubar com Inteligência”, urgh), outro clássico do diretor, é livremente inspirado em “Crime e Castigo”, simplesmente um dos livros que mudaram a minha vida _se você ainda não leu, não sabe o que está perdendo. Vá caçá-lo já na biblioteca mais próxima e devore-o!

    O protagonista, um jovem estudante e aspirante a escritor (que diz “não crer em nada”, justamente a parte do filme que mais me fez lembrar da obra-prima de Dostoievski), especializa-se em bater carteiras e vive de golpes. Ele fica absolutamente viciado na adrenalina dos crimes (como já falei anteriormente, as cenas dos furtos são incrivelmente engenhosas, ágeis, divertidas _a platéia ria, deliciada) e não consegue abandoná-los, dando-nos a impressão de que seu destino será fatídico. Para completar, ele também tem a mãe doente e se relaciona com uma vizinha, que cuida da velha... Ah, mais uma vez, Bresson mostra que sabe caprichar nos desfechos: o de “Pickpocket” também é tocante. Au revoir!

    Mouchette, a Virgem Possuída: 9/10
    Pickpocket: 8,5/10

    P. S. Esta recomendação é para todos, mas é especial para as mulheres: assistam “Desmundo”, de Alain Fresnot, baseado no romance de Ana Miranda. Já vou avisando: teve gente que achou chato. Eu achei bom. Não ótimo, mas bom. Gostei, me envolvi, me emocionei. Espero que vocês gostem, também.

    P. P. S. Aí vai mais um trechinho de “Sobre Direção de Cinema”, livraço (não em extensão, porque é curtíssimo e muito simples) do meu amigo David Mamet. Este aqui refere-se à direção de atores:

    Humphrey Bogart contava a seguinte história: estavam rodando ‘Casablanca’ e, na hora em que alguém chega para ele e diz ‘Eles querem tocar a Marselhesa, o que a gente faz? Os nazistas estão aqui, e a gente não devia tocar a Marselhesa...’, Humphrey Bogart simplesmente acena com a cabeça para a orquestra, nós cortamos para a orquestra, e eles começam a tocar ‘tá-rá-tá-rá’.

    Quando alguém perguntava o que ele fizera para que aquela linda cena funcionasse, ele explicava: Michael Curtiz, o diretor, disse ‘fica parado naquela varanda ali, e quando eu disser ação, conta um e acena com a cabeça’, e foi o que ele fez. Isso é que é uma grande atuação. Por quê? O que mais ele poderia ter feito? Pediram que ele acenasse com a cabeça; ele acenou com a cabeça. É isso aí. A platéia fica incrivelmente comovida pela simples contenção numa situação emocional... e essa é a essência do bom teatro: o bom teatro é ter gente executando tarefas extraordinariamente comoventes da maneira mais simples possível. A dramaturgia, filmografia e atuação contemporâneas tendem a nos oferecer o inverso: gente executando ações prosaicas e previsíveis de maneira exagerada. O bom ator executa suas tarefas da maneira mais simples e menos emocional possível. Isso permite à platéia ‘entender a idéia’, assim como a justaposição de imagens não-infletidas a serviço de uma terceira idéia cria a peça na mente da platéia.

    Aprendam isso, e vão lá fazer o filme.”

    sábado, maio 10, 2003

    Durval Discos / 2 Perdidos numa Noite Suja

    I know that you’ll feel better when you send us in your letter and tell us the name of your... your favorite vegetable.

    Oba, oba, eu estava louco de vontade de escrever sobre “Durval Discos”, justamente porque o longa de estréia de Anna Muylaert (filha do seu Roberto, ex-presidente da Fundação Padre Anchieta e responsável pela melhor fase da TV Cultura, na virada dos anos 80 para os 90) parece ser uma dessas obras capazes de gerar amor e ódio: o filme papou os principais prêmios em Gramado (inclusive o de escolha popular, consagração total) e fez sucesso entre a grande maioria dos críticos, mas também causou ojeriza em um monte de gente... Legal, legal!

    Eu confesso que fui ver o filme com os dois pés atrás, porque a Van já tinha me falado muito mal dele, e a Teca (que faz aniversário quarta-feira, parabéns para a manceba) tinha dito que era bom. E, para piorar tudo, eu havia presenciado a leitura do roteiro em um evento na Folha, há alguns anos. Ou seja, eu já conhecia, de antemão, todas as surpresas do filme. E isso estragou todo o impacto da obra. Mas me permitiu analisar friamente outros aspectos.

    E, vendo as diferentes reações das pessoas (isso é o mais interessante de tudo), é fácil constatar que “Durval Discos” é mesmo um filme impactante _o que é bom. E não o considero apelativo, abusivo ou qualquer outra coisa do tipo. Mas arrojo não é prerrogativa de qualidade: infelizmente, a película tem uma série de problemas.

    Um dos mais gritantes é a atuação decepcionante de Ary França, um homem de teatro, que ganhou certa fama nos anos 80, junto com o Ornitorrinco, companhia teatral encabeçada pelo sr. Cacá Rosset. França é, acima de tudo, um comediante (mais ligado ao humor físico), e “Durval Discos” não é uma mera comédia _o personagem principal não dá muita chance para o ator brilhar.

    Só que foi justamente esta a escolha da diretora: fazer um filme repleto de ruídos. “Durval Discos” é como um vinil velho, todo riscado, cheio de chiados, que fica pulando a toda hora. Tem um lado A, mais bobinho, e um lado B, mais soturno. E, se essa sacada poderia ter dado em algo muito legal, no caso de “Durval Discos” foi como um tiro no pé, porque, aqui, o que interessa mais é o ato de virar o disco, e não de “escutá-lo”. Trata-se de mais uma dessas obras onde a forma ofusca o conteúdo (percebam que nem vou comentar o enredo neste texto).

    Por isso, o filme torna-se absolutamente irritante (e até mesmo inconseqüente) em certos trechos dispensáveis do “lado A”: pura encheção de lingüiça, como as participações especiais de Rita Lee e do ex-marido da diretora, André Abujamra (encarnando Fat Marley, que até já lançou disco _é sério). Nessas partes, é ruim mesmo. Já em outros, é gracioso, especialmente na cena em que Durval e sua mãe (Etty Fraser, maravilhosa, dona da melhor atuação) jantam, naquela em que eles, mascarados, dançam com a menina (Isabela Guasco, uma figurinha), na do passeio de charrete por São Paulo, ao som de “Besta É Tu”, dos Novos Baianos _não por acaso, o momento mais leve e alegre da obra_, e no melhor plano de todos, sensacional, que rola lá pelo final, mas que não posso descrever aqui, sob pena de entregar algumas surpresas do enredo.

    E é interessantíssimo observar que o filme, de orçamento relativamente baixo (cerca de R$ 1,8 mi), feito totalmente em locação, subverte a cartilha cinematográfica ao usar uma bitola larga (Super 35, considerada por muitos como superior ao Cinemascope) e lentes grande-angulares para filmar em interiores, em espaços pequenos. Neste sentido bastante específico, “Durval Discos” é legal pra caralho.

    Só que, como eu disse antes, tais ousadias não bastam para gerar um bom filme. Mas são suficientes para fazer dele, para o bem ou para o mal, uma obra interessante, que merece ser vista e discutida. É por isso que, apesar de não considerá-lo maravilhoso, eu recomendei e continuo recomendando “Durval Discos”. Agora, sejamos francos: o final é uma merda!

    Do outro lado da moeda temos “2 Perdidos numa Noite Suja” (escreve-se assim mesmo, com o “2”), uma película baseada em um texto (primoroso, diga-se) teatral _o que, em geral, acaba restringindo a maneira de o diretor contar a história. Obviamente, filmes ótimos podem ser feitos a partir de peças teatrais (os exemplos são inúmeros, e alguns deles já foram comentados aqui), mas o perigo de assistirmos a uma narrativa cinematográfica frouxa (como é o caso do decepcionante “Chicago”, que comentaremos em breve) sempre existe.

    Neste sentido, o filme mais recente de José Joffily (veterano produtor e roteirista carioca, que também dirigiu “A Maldição de Sampaku” e “Quem Matou Pixote?”, entre outros) até que é bem-sucedido. Apesar de tornar o título da peça sem sentido, ele consegue ser razoavelmente fiel ao âmago da obra de Plínio Marcos (embora exista uma diferença fundamental entre o enredo deste filme e o texto original que, por razões óbvias, não poderei comentar aqui), mesmo com a transposição temporal e geográfica que os personagens Paco e Tonho sofreram.

    Quem, por acaso, torceu o nariz ao saber que os pobretões miseráveis (que, na peça, brigam por um par de sapatos) viraram imigrantes brasileiros na Nova York pré e pós 11 de setembro (há um certo descompasso por causa disso, mas é só um detalhe, não sejamos tão cri-cri assim), pode endireitar a napa: bordar mais este problema da “modernidade” foi uma idéia feliz do diretor. Assim como a mudança de sexo do agressivo Paco, aqui vivido razoavelmente bem pela gatinha Débora Falabella (sim, ela aparece pelada; sim, ela é uma delícia, smurfs).

    Mas o destaque do filme é mesmo Roberto Bomtempo, um ator muito bom, que encarnou com dignidade imensa o choroso Tonho, também o personagem mais interessante da peça. Outra coisa legal do filme é, pasmem, “2 Perdidos”, canção do ex-titã e atual tripudialista Arnaldo Antunes em parceria com Dadi (um cara que tocou com todo mundo, vocês sabem, não?): ficou muito bonita, pena que o AA tenha insistido em cantá-la... teria ficado bem melhor se uma mulher (ou qualquer um mais afinado) a tivesse interpretado. E por hoje é só, folks!

    Durval Discos: 6,5/10
    2 Perdidos numa Noite Suja: 7,5/10

    P. S. Mais uma liçãozinha a respeito da sétima arte, desta vez transmitida por David Mamet, que aprendeu tudo com Eisenstein (trata-se de trechos do livro “Sobre Direção de Cinema”, publicado aqui pela Civilização Brasileira):

    “Você sempre quer contar a história por meio dos cortes. (...) Deixem que o corte conte a história. Porque de outra forma não se terá ação dramática, e sim narração. (...) Isso é filmar, é justapor imagens. (...) Os documentários captam imagens basicamente desconexas e as justapõem para dar ao espectador a idéia que o realizador quer transmitir. Pegam imagens de pássaros quebrando um graveto. Pegam a imagem de um veado erguendo a cabeça. Os dois planos não têm nada a ver um com o outro. Foram filmados em dias ou anos diferentes, separados por quilômetros. E o realizador justapõe essas imagens para dar ao espectador a idéia de alerta total. Esses planos não têm nada a ver um com o outro. Não são um registro do que o protagonista fez. Não são um registro de como o veado reagiu ao pássaro. São imagens basicamente não-infletidas. Mas, quando são justapostas, dão ao espectador a idéia de alerta ao perigo. Isso é filmar bem.”

    P. P. S. Sacanagem, o Dadi é esse aqui, ó.

    terça-feira, maio 06, 2003

    São Paulo Sociedade Anônima / Copacabana me Engana

    É, o Waly Salomão pegou aquele velho navio. Será que ele já encontrou a Dr. Nina?

    Então, macabeu, enquanto você espera a sua vez de carpir o gato por toda a eternidade, recomendo que você preencha parte de seu precioso tempinho com um dos melhores filmes brasileiros de todos os tempos _talvez o melhor de todos: “São Paulo Sociedade Anônima”, mais conhecido pela abreviação de seu título, “São Paulo S/A”.

    A película, de 1964, é a obra-prima de seu diretor, Luiz Sérgio Person (1936-1976), figura importantíssima do cinema nacional (trabalhou com um monte de gente legal, inclusive o velho Mojica) que vai ganhar um documentário em longa-metragem dirigido por sua filha mais velha, Marina, que também é cineasta, mas é mais conhecida por ser a “menina veneno” da MTV.

    “São Paulo S/A” é o melhor retrato da maior metrópole do Brasil já feito. É também a melhor interpretação do período Juscelino _vocês sabem, Juscelino Kubitschek, o JK, o “presidente bossa nova”, aquele construiu Brasília, o cara da antiga nota de cem mil cruzados etc. Aborda os anos de 1957 a 1961 e mostra os reflexos do “50 anos em 5”, o plano de aceleração da industrialização do país, que teve no êxodo rural um de seus principais efeitos colaterais.

    Então não é à toa que o protagonista, brilhantemente vivido pelo grande (e meio sumido, atualmente) Walmor Chagas (ainda sem os famosos cabelos grisalhos), trabalha na indústria automobilística. O filme mostra como cerca de 2.000 fábricas de autopeças “surgiram de um dia pro outro” na região de São Paulo/ABC e discute não apenas economia e política, mas, principalmente, as transformações na sociedade brasileira.

    E não se trata apenas de denúncias de corrupção generalizada, como o desrespeito aos direitos trabalhistas e a sonegação de impostos, e de críticas ao capitalismo e ao “jeitinho brasileiro” _que, como sabemos, não é somente “privilégio” do Brasil, mas um fenômeno universal (ou melhor, humano)_, representado em boa parte pelo personagem Arturo (Otelo Zeloni), o arquétipo do imigrante (tinha de ser italiano) que se deu bem por aqui. Conhecem aquela peça de Martins Pena na qual um português reclama que está há anos no Brasil e “ainda” não ficou rico? Pois é...

    Mas o mais legal do filme, além de seu aspecto histórico (vemos, por exemplo, o edifício Itália em construção, além das antigas praças da República e da Sé), é o retrato das relações entre homens e mulheres. Eva Wilma (grande atriz, pena que foi banalizada pela Globo _sabiam que ela chegou a fazer teste para um filme de Hitchcock?), aqui lindíssima, personifica a garota de classe média que vai estudar inglês (as cenas das aulas são engraçadíssimas, irônicas, fantásticas) e datilografia para “arranjar um bom trabalho”, mas que, no fundo, deseja ser uma “boa esposa”, assim como sua mãe. Darlene Glória, gostooosa, faz o papel da vagaba, da mulher-máquina, garota-propaganda, engrenagem-vedete que usa e abusa do corpo e da sensualidade para “subir” na vida. E a personagem de Ana Esmeralda, a mais pungente, que começa sustentada por amantes ricos, mas encontra um grande amor e torna-se heroína trágica... E, mesmo assim, todas essas mulheres, cada uma maravilhosa à sua maneira, ainda vivem em função dos homens, ainda perpetuam as mesmas relações econômicas (sim, econômicas) que pautam as nossas vidas limitadas...

    “São Paulo S/A” é o “Tempos Modernos” brasileiro, é o “Dom Casmurro” cinematográfico, é o filme que abre a nossa cidade e nos mostra uma engrenagem perdida, que quer se libertar, desesperadamente, mas não consegue quebrar o aparentemente incansável ciclo de produção. É o retrato vertiginoso da velocidade crescente, em uma montagem impecável (“Pulp Fiction” perde), ao mesmo tempo revolucionária e cristalina, com um afastamento narrativo que chega a ser cruel, uma épica simbiose brasileira de nouvelle vague com neo-realismo (Person estudou na Itália por um bom tempo), emoldurada pela excelente música de Cláudio Petraglia. Um tesouro, uma glória, um filme para ver vinte, cinqüenta, mil vezes, e se emocionar em todas elas. Ao final da sessão em que eu estive, o público aplaudiu, e de pé, espontaneamente. Person e sua equipe fizeram por merecer.

    Mas vamos pisar no freio um pouquinho e ir para um lugar mais relax, o Rio de Janeiro, superfície maravilhosa. Estamos em 1969, o país está sob o jugo da ditadura militar, e Antonio Carlos Fontoura (o mesmo de “Rainha Diaba”) dirige, roteiriza e produz (com fotografia de Afonso Beato e câmera de Jorge Bodansky _o pai da Laís, que dirigiu “Bicho de Sete Cabeças”) “Copacabana me Engana”, filme que, apesar do nome, não chega a ser “intelectualice tropicalista” (graças a deus), como o insuportável “Meteorango Kid”, glacê metálico no bolo espacial.

    Tá, a música tema é “Baby”, ouvimos muito Mutantes e Gilberto Gil, o Chacrinha (“vai lá fora e chama ele”) aparece na TV. É um filme “jovem”, “ousado”, traz uma família desestruturada, o “respeitável” pai é adúltero, a mãe é uma neurótica que apanha do filho, os irmãos dividem mulher _uma cena antológica ao som de “Try a Little Tenderness”, com o meu velho amigo Otis Redding e tal.

    É, basicamente, um painel da juventude carioca no final dos anos 60, sem entrar em política, como era de se esperar, devido à dureza dos tempos _tá, há uma seqüência em uma reunião de sindicato, que é ridicularizada pelos playbas, mas o que pega mesmo são as questões sociais/sexuais, uma espécie de “Porky’s” muito mais irônico, maduro, bonito e engraçado. Os diálogos são supimpas.

    Os destaques óbvios são Paulo Gracindo, sempre excelente, e Odete Lara, esta mulher fantástica que, recentemente, ganhou cinebiografia _alguém viu? O Cláudio Marzo também aparece, mas nem fede nem cheira _quem rouba a cena mesmo é o hilário Joel Barcellos (novinho, mas já feio), que mais tarde estrelaria o quase-pornô “Rio Babilônia”, de Neville D’Almeida, com a Christiane Torloni.

    Mas o legal deste filme é a imagem diferente que ele traz da mulher. Odete Lara (que fica ali-ali com Leila Diniz e Norma Bengell) traz um discurso de independência e de liberdade sexual que foi e é necessário _um dos maiores avanços da humanidade. E assim a gente segue, recomeçando, recomeçando, recomeçando.

    São Paulo S/A: 10/10

    Copacabana me Engana: 7,5/10

    P. S. Leiam este trecho do livro “Making Movies”, do grande Sidney Lumet, no qual ele comenta o primoroso “Doze Homens e uma Sentença” (justamente seu primeiro filme, que já ganhou texto aqui), e percebam como um autor cinematográfico pensa o filme não apenas em termos de conteúdo, de ação dramática, de luz, cenografia e figurino. É pena que, muitas vezes, mesmo os analistas mais sagazes (entre os quais eu não me incluo, lógico) não conseguem pegar essas sutilezas...

    “Nunca me ocorreu que rodar um filme inteiro numa única sala fosse um problema. Na verdade, eu achava que poderia tirar vantagem disso. Um dos mais importantes elementos dramáticos para mim era a sensação de aprisionamento que aqueles homens deveriam sentir naquela sala. Imediatamente me ocorreu um ‘enredo de lentes’. À medida que o filme se desenrolava, eu queria que a sala fosse parecendo cada vez menor. Isso queria dizer que eu iria, aos poucos, passar a usar lentes mais longas com o decorrer do filme. Começando com a faixa normal (28mm a 40mm), passamos para lentes de 50mm, 75mm e 100mm. Além disso, rodei o primeiro terço do filme acima do nível do olho e, depois, abaixando a câmera, rodei o segundo terço ao nível do olho e o último terço abaixo do nível do olho. Desse modo, já no final, o teto começava a aparecer. Não apenas as paredes se fechavam; o teto também. A sensação de aparente claustrofobia ajudou muito a elevar a tensão da última parte do filme. Na tomada final, uma externa que mostrava os jurados saindo do tribunal, usei uma lente grande-angular, mais larga do que qualquer lente que tivesse sido usada em todo o filme. Também levantei a câmera para a posição mais elevada acima do nível do olho. A intenção era, literalmente, nos dar todo o ar, deixar-nos finalmente respirar, depois de duas horas cada vez mais confinados.”

    P. P. S. We like tha moon.

    sexta-feira, maio 02, 2003

    Os Nibelungos / A Última Gargalhada

    Eu avisei, mas vocês, tubérculos ruminantes, não me ouviram. Eu falei pra vocês não perderem a mostra de filmes da UFA, que rolou durante o mês de março, na agradabilíssima Cinemateca de São Paulo, um lugar básico para quem gosta dessa tal de sétima arte.

    Entonces, a UFA não era a Unidade dos Filmes Anormais nem União dos Fodedores Anônimos nem qualquer outra dessas coisas pornográficas e amorais nas quais você pensou, Joãozinho. Era uma produtora alemã que começou a funcionar logo após a Primeira Guerra Mundial _ou seja, o país do chucrute, derrotado, estava arrasado não apenas economicamente (hiperinflação e tal), mas moralmente as well.

    Daí a idéia de produzir filmes (a indústria cinematográfica cresceu horrores na segunda década do século XX, em especial nos EUA, tendo em D. W. Griffith, o diretor de superproduções como “O Nascimento de uma Nação” e de “Intolerância”, o principal formador de um estilo realmente narrativo nos EUA) que aumentassem a auto-estima dos alemães, retratando-os como um povo corajoso, destemido, estóico até.

    E o maior de todos estes filmes (botem aí nesse saco de gatos obras-primas como “O Gabinete do Dr. Caligari”, de Robert Wiene, “Nosferatu” e “Fausto”, de F. W. Murnau, “Metropolis”, de Fritz Lang etc.) é, na minha irrelevante opinião, o díptico “Os Nibelungos”, do sr. Lang (que pode ser visto atualmente em São Paulo no filme “O Desprezo”, de Jean-Luc Godard, como ator _tem também a Brigitte Bardot, ulalá).

    Dividido em duas partes, “A Morte de Siegfried” (sim, o título entrega o final, uma lástima) e “A Vingança de Kriemhild”, o épico de 1923-1924 é uma das maiores realizações do cinema. A primeira é bastante mítica e folclórica, centrada no personagem Siegfried, um loirão-fortão-estilo-Capitão-Guapo que pode ser considerado a encarnação da pureza da tal “raça ariana”, evocada por Hitler para justificar o extermínio dos judeus. E, apesar de ser um dos filmes preferidos do Zé Bigodinho, a obra nada tem de nazista _embora sua roteirista, Thea von Harbou (esposa e parceira constante de Lang em sua fase alemã), tenha ficado na Alemanha hitlerista em vez de seguir seu marido rumo aos EUA.

    Mas não vou ficar contando o enredo (que é riquíssimo), senão o texto fica gigantesco. Basta dizer que Siegfried, personagem também de uma ópera de Wagner, acaba se casando com Kriemhild, a irmã de um rei, e, como o título já entrega, morre no final, após enfrentar dragões, bruxas e outros bichos, em cenários fantásticos (os figurinos e a caracterização das personagens também são extasiantes e inesquecíveis).

    A partir daí começa a segunda parte (cada uma tem cerca de duas horas), dividida, como a primeira, em cantos (como um poema épico). Ao contrário de sua antecessora, que se passava em vários lugares e mostrava várias aventuras, “A Vingança de Kriemhild” limita-se justamente a mostrar o que seu título indica. Kriemhild, a loira das tranças rapunzelescas (desempenho espetacular da atriz Margarethe Schön, em atuação contida, baseada na expressão facial, tipo Lilian Gish, Clara Bow etc.), de luto, torna-se obcecada pela vingança e, plena de ódio, não mede esforços para matar o assassino do marido _chega até a casar-se com o tétrico Átila, o rei dos hunos, para conquistar seu objetivo. É lindo. É sério, o ódio da Kriemhild é lindo. Não deixe de assistir, o filme é maravilhoso demais, uma glória.

    Só que “Os Nibelungos”, de tão caro, quase quebrou a UFA. Em vista disso, o nosso amigo Carl Mayer (roteirista de “Dr. Caligari”, "Aurora" e de outras obras-primas) inventou uma espécie de Dogma 95 do dito cinema expressionista alemão, que acabou sendo chamado de Kammerspiel. Ou seja, em vez de épicos, filmes que abordassem temas do cotidiano, com poucas locações, atores e figurinos.

    E o maior representante desta nova e despojada estética é outro filme interessantíssimo, de 1924: “A Última Gargalhada” (também chamado de “O Último Homem”), dirigido por F. W. Murnau, encarnado por John Malkovich naquele filme que prometia, mas não cumpriu.

    Estrelado por Emil Jannings (que fez Mephisto em “Fausto” e o professor no excessivamente moralista “O Anjo Azul”), conta a história de um porteiro de hotel que, por causa da idade avançada, é rebaixado ao cargo de faxineiro do banheiro. Com isso, ele perde seu portentoso uniforme (lembra uma farda militar de luxo) e, junto com ele, o respeito dos moradores do subúrbio onde mora. Este pequeno drama mundano, que desnuda alguns aspectos sociais da época (de imensa crise), é um bom exemplo de que um bom argumento não precisa ser necessariamente “grandioso”, como o de “Os Nibelungos”.

    Mas, além do conteúdo, é muito legal comparar o estilo narrativo de ambos os diretores: Lang é sóbrio, mantém a câmera imóvel durante o tempo todo, delineia os enquadramentos com cuidado ímpar _cada tomada é como um quadro. Murnau tem um estilo muito mais moderno e dinâmico, abusa do zoom, do travelling, da panorâmica e, no final de “A Última Gargalhada”, realiza um dos planos seqüência mais impressionantes (imaginem rodar um plano complicado desses com a câmera primitiva da época, à base de manivela) da história. Ufa!

    Os Nibelungos – A Morte de Siegfried: 9,5/10
    Os Nibelungos – A Vingança de Kriemhild: 10/10
    A Última Gargalhada: 9/10

    P. S. Vi outros dois filmes do Lang na mostra da UFA (que também trazia uma exposição muito legal de cartazes dos filmes da época _os de “Metropolis” são esplêndidos): o raríssimo “Os Espiões”, que ficou perdido durante décadas e é uma espécie de embrião da série 007, e “A Mulher na Lua”, uma comédia de ficção científica na qual um grupo de pessoas viaja ao nosso satélite em busca de ouro. As maquetes usadas na produção são impagáveis, assim como a espetacular “transformação” do vilão...

    P. P. S. Pra quem não se ligou, o “Joãozinho” do segundo parágrafo foi uma pequena homenagem ao David Drew Zingg, figuraça que morreu quando eu trabalhava na Ilustrada _o desgramado me fez madrugar e ir correndo pro jornal fechar a página de seu necrológio... Bom, mas ele merecia. Ah, e um amigo meu era o maior fã do Tio Dave e vivia deixando recados na secretária eletrônica do velhinho. O cara simplesmente delirou de felicidade quando o amigo das Jennifers escreveu uma crônica sobre um chato que vivia telefonando para sua casa...

    P. P. P. S. Tá, o "tubérculos ruminantes" foi brincadeira...

    Na platéia