Roger e Eu / The Big One / Tiros em Columbine
Weep not, child. Weep not, my darling. With these kisses, let me remove your tears.Mas eu estava conversando com um amigo sobre a identidade do homem da primeira base... Já percebeu que é só fazer papel de débil mental para ganhar um Oscar? O Dustin Hoffman em “Rain Man”, o Geoffrey Rush em “Shine”, o Russel Crowe em “Uma Mente Brilhante”... Quem fizer o papel de George W. Bush no cinema vai levar uma estatueta dourada, é barbada. Quem seria o ator ideal para a façanha?
Falando no Oscar, e esse Michael Moore, hein? O gordinho barbudo de óculos, boné e cabelo ensebado, que lava as axilas rigorosamente uma vez por ano e depois veste a mesma roupa, já era razoavelmente conhecido por uma parte da descolândia, mas foi só ganhar o prêmio de melhor documentário por “Bowling for Columbine” (que está sendo exibido até no Cinemark! E é documentário! Documentário, um palavrão para os cartolas do cinema!) e mandar o filho bêbado do ex-vice do Reagan tomar vergonha naquela cara apatetada e orelhuda para virar um superstar. Já tem gente chamando o cara de “o Anticristo da era Bush”... Legal, legal!
Pois foi só o figura ganhar o Oscar, e as TVs brasileiras, felizmente, não demoraram a exibir alguns dos filmes do cara. O canal do Silvio Santos, pasmem, passou “Roger and Me”, o documentário que revelou Moore (que era jornalista da imprensa alternativa), legendado, em uma madrugada... Parece pouco? Não é.
Bom, para entender qual é, afinal de contas, a desse tal de Michael Moore, é preciso contextualizar a trajetória do mancebo (ou melhor, “man sebo”), e “Roger e Eu” (não, não é sobre um suposto “affair” tórrido com o líder do Ultraje a Rigor) é o filme ideal para apresentá-la. Tudo começa na cidade de Flint, em Michigan, a cerca de uma hora de Detroit, região célebre por ser a sede de grandes indústrias automobilísticas. Foi em Flint, narra Moore, que a General Motors nasceu. A famosa greve de 1936 é citada como fato histórico, e a presença de celebridades como Pat Boone nas festas da empresa conferia um certo glamour ao local, cuja economia girava em torno da fábrica.
Só que, no fim dos anos 80, a empresa, cujo presidente chama-se Roger Smith, fecha 11 fábricas na região, causando a demissão de umas 30 mil pessoas. Em seu filme, Moore documenta a catástrofe que o acontecimento causou em Flint: a criminalidade aumenta assustadoramente, a população apela para subempregos (a personagem mais pitoresca do filme é justamente uma mulher que passa a criar coelhos para vender), dezenas, centenas, talvez milhares de famílias são despejadas (outro personagem de destaque é um policial cujo doloroso serviço é fazer cumprir as ordens de despejo), e os políticos empreendem tentativas patéticas e desastrosas de reavivar a economia local, como procurar transformar a cidade em ponto turístico, bóf.
Paralelamente a isso tudo, Moore entrevista personalidades inusitadas, como a Miss Michigan (que, bem, é uma miss...), e passa três anos perseguindo Roger Smith, desejando que ele testemunhe o abandono que tomou conta de Flint, e só consegue falar com o dito cujo uma vez. Sim, uma das qualidades jornalísticas de Moore é que ele é um carrapato. E “Roger e Eu” é um documentário interessante, feito de maneira bem, digamos, “largada”, bem no estilo Michael Moore, um precursor do grunge. E que tem, como tema, a maravilhosa “Wouldn't It Be Nice”, dos Beach Boys, citada por um ex-empregado da GM, aos prantos.
“The Big One”, exibido aqui pelo GNT, é uma espécie de continuação de “Roger and Me”. Traz, exacerbada como nunca, uma das características que mais depõem contra o cineasta: seu narcisismo, seu “jornalismo gonzo”, esta muleta na qual muita gente sem talento, mas com delírios de grandeza, se apóia. Isso causa um certo desequilíbrio em seus filmes (e, provavelmente, em seus livros), há o risco de o documentarista se tornar maior do que o documentário, e Moore parece curtir a persona de celebridade, além de saber dramatizar certas situações, o que nos dá a impressão de que ele, por vezes, é tendencioso demais, apesar de bem-intencionado.
Então, “The Big One” (nome que Moore sugere para rebatizar os EUA em um programa de rádio, satirizando os executivos de marketing) documenta uma turnê literária _nos EUA, é bastante comum os autores de best sellers viajarem o país, dando noites de autógrafos em livrarias (aqui no Brasil isso também chega a rolar, mas em proporções infinitamente menores). São, se não me engano, 47 cidades em 50 dias, atravessando o país de costa a costa. E, no meio de algumas palhaçadas dignas de pegadinha do Mallandro (como mandar o segurança expulsar sua própria agente literária, entre outras muitas ironias, algumas divertidas), Moore, que lança um livro chamado “Downsize This!”, uma crítica aos cortes de funcionários norte-americanos em multinacionais e ao fechamento de fábricas (lógico que o drama de Flint será repisado à exaustão), visita várias empresas ao longo do país, tentando falar com os CEOs para questionar a política de empregar mão-de-obra barata em países como México, em vez de seguir alimentando a população dos EUA. Claro que ele só levará portas na cara, com uma exceção louvável: o bambambã da Nike, empresa famosa por ter aberto uma fábrica na Indonésia, aquele país que massacrou o povo do Timor Leste, pagando meia pataca para os funcionários, recebe Moore e é fustigado com perguntas como “você não tem consciência?”.
Mas o documentarista atinge o seu auge com o oscarizado “Tiros em Columbine”: partindo do infame episódio em que dois garotos matam e ferem vários colegas e funcionários de um colégio, Moore faz uma pesquisa muito interessante sobre a cultura do medo e da violência no “Grandão”, comparando-o com outros países do dito “mundo livre”, como França, Austrália, Inglaterra e Canadá (taí, eu gostaria que o nosso Brazuca tivesse entrado na roda. Talvez o país do Tio Sam não seja tão violento assim...).
Diz aí: você sabe que um animal acuado ataca, não? Paranóia tem potencial de gerar violência, concorda? Armas não são nem um pouco perigosas, desde que dedos dementes não carreguem os pentes e puxem os gatilhos, certo? Pois essas questões óbvias parecem absurdas para o norte-americano mediano. Moore mostra que a mentalidade deles é a de “eliminar o intermediário”. “Para que eu vou chamar a polícia, se eu posso ter armas em casa e defender minha família com elas?”, pergunta uma mulher, que atira desde criancinha. Como diria o Homer Simpson, doh!
Então os absurdos pululam, como o banco que dá armas como brinde para quem abrir uma conta (hilário, se tamanha estupidez não fosse lamentável) e a cidade na qual todos os cidadãos são OBRIGADOS a portar armas de fogo. E, mais do que mostrar essas barbaridades, o nosso amigo Moore põe o dedo na ferida e exibe, em um clipe cuja trilha sonora é “What a Wonderful World” (a música mais triste já escrita, na opinião do indispensável Nick Cave), relatando as porcarias que a política externa dos EUA realizou no século XX. Qual o exemplo mais nocivo para a sociedade, o extremamente lúcido Marilyn Manson ou o presidente norte-americano ordenando bombardeios em outros países?
O terror aflora nas gravações de chamadas do 911 (e depois os americanos ficam putos com o Lars von Trier por causa de “Dogville”, que perdeu para Gus Van Sant a Palma de Ouro em Cannes _vocês não acharam que ia dar “Carandiru”, né?), nas entrevistas com os jovens, com o irmão de um dos responsáveis pelo horroroso atentado que matou quase 200 pessoas em Oklahoma (e que nunca ouviu falar em Gandhi), no caso de um menino de seis anos que matou uma menina da mesma idade, num desenho animado a la “South Park” (e um dos criadores da série também dá seu testemunho) que resume a trajetória do país de Dick Cheney (e bota “dick” nisso) e no próprio Moisés, o Charlton Heston, dizendo que só arrancarão as armas de suas “mãos geladas e mortas”. Brr.
Mas o melhor de tudo é que Moore, finalmente, conseguer fazer a diferença: vejam o que acontece quando ele leva dois garotos, baleados em Columbine, para protestar contra as vendas de balas (não as doces, claro) na maior rede de supermercados da América. É emocionante, ele mesmo não consegue acreditar.
É, é como cantam os Beach Boys na faixa que abre o “Pet Sounds”: “maybe if we think and wish and hope and pray it might come true / baby, then there wouldn't be a single thing we couldn't do”.
P. S. A trabalhosa apuração dos votos da importantíssima pesquisa "as notas ficam ou não" foi a seguinte: um voto a favor, dois votos contra. Portanto, os filmes não mais recebem notas duvidosas neste site. Regozijem-se!