Estranhos no Paraíso / Ghost Dog / Dirigindo no Escuro
Save your poison for a lover who is on your side.Há pouco tempo, rolou aqui em Sampa (no Cinesesc, a míseros R$ 2 por sessão _assim, sim) uma pequena mostra dedicada ao cineasta independente norte-americano Jim Jarmusch (que tem uma interessantíssima participação como ator no fraco "Sem Fôlego", de Wayne Wang e Paul Auster). Além dos dois filmes que batizam este texto, passou também "Daunbailó" (aquele com o Tom Waits e o Benigni), que eu não pude conferir _dizem que a sessão se esgotou, o que causou a volta do filme ao circuito comercial, só que num cinema longe demais das capitais.
Jarmusch foi uma espécie de queridinho da crítica durante os anos 80 _uma época que se via como o ápice do "cool", mas que já chegou a ser chamada de "a década perdida". Claro que não foi nem uma coisa nem outra _mas que rolava muita babaquice na época, isso rolava. Aliás, parece que ser babaca era chique, nos 80. Eu era criança, não entendia nada _sigo não entendendo, como o meu amigo Tremendão.
Mas, contraditoriamente, meus inexplicáveis intintos me diziam que a obra do J. J. devia ser interessante, apesar de tanta gente metida a besta babar ovo cozido para o cara. E não deu outra: 1) a mostra foi freqüentada, basicamente, por "jornalistas culturais" (urrrk!), "povinho do cinema" (bluéargh!) e "povinho MTV" (bléco!), ou seja, a mesma situação de quando eu peguei uma ponte aérea com o Enéas: só não desejei que uma bomba explodisse porque eu também estava ali; 2) os filmes eram mesmo bons, hallelujah.
Interessante, vi duas obras de épocas bem distintas: a primeira, de 1983; a segunda, de 1999. Há um abismo não somente temporal entre as duas, embora ambas compartilhem de uma grande e fundamental característica: senso de humor.
"Stranger than Paradise" (a tradução brasileira está errada, perceberam?), segundo longa de Jarmusch, é um filme de baixíssimo orçamento _chegaria a lembrar um trabalho de faculdade, se os trabalhos de estudantes de cinema não costumassem ser tão péssimos. Feito em p&b, com som mono, poucos cenários, poucos e desconhecidos atores. E é um filmaço.
John Lurie (saxofonista e líder do grupo de jazz Lounge Lizards, que também assina a trilha sonora) interpreta Willie, imigrante húngaro que vive de pequenos golpes em Nova York. Um dia, sua prima Eva (a estreante Eszter Balint, que também mexe com música), uma fanática por Screamin' Jay Hawkins (do clááássico "I Put a Spell on You", que toca no filme), chega da Hungria, para passar uns tempos com ele, antes de se dirigir à gelada Cleveland, onde morará com uma tia. Completa o trio de protagonistas Eddie (Richard Edson, que foi o primeiro baterista do Sonic Youth, mas acabou mesmo seguindo a carreira de ator, aparecendo em filmes como "Faça a Coisa Certa" e "Platoon"), parceiro de Willie em seus trambiques, que parece arrastar uma asinha pra Eva.
A ação é mínima: boa parte da platéia ria justamente da vida besta dos protagonistas, que, basicamente, ficam em casa o dia inteiro, sem fazer nada de interessante. Mas o que soa como uma cabecice insuportável dá realmente num filme divertido, delicioso de assistir. Um interessante retrato dos jovens perdedores da América, sem perspectivas ou objetivos claros.
Já "Ghost Dog: The Way of the Samurai" parece uma superprodução perto de "Estranhos no Paraíso". Traz um ator famoso (Forest Whitaker) no papel principal, uma equipe técnica muito mais experiente e profissional (em "Strangers..." foi tudo mesmo na base da brodagem, com várias pessoas acumulando funções) e uma grande estrela da música cuidando da trilha (o milionário rapper RZA, líder do Wu-Tang Clan, que não está à toa na função). Por isso mesmo, é um filme muito mais "fácil" de ver.
Ghost Dog é um cara que, como diz o título, trilha "o caminho do samurai". O filme mostra como suas ações são guiadas pelo código do samurai, cujos trechos aparecem na tela, explicando a história. Um samurai moderno, "afro-americano", que escuta rap e é vassalo de um capanga da máfia ítalo-americana, que salvou sua vida. Ou seja, nosso herói é um matador de aluguel, mas não um matador comum.
Uma idéia que a obra martela é a crítica à modernidade e a seus valores. Ghost Dog vive à moda antiga, se comunica por pombos-correio etc. Seu único amigo é Raymond, um sorveteiro francês que acha que sorvete é bom pra saúde porque contém cálcio, e tem como uma espécie de discípula a garotinha Pearline, com quem fala de livros como "Frankenstein" e "Rashomon".
Com muito mais ação e uma narrativa interessantíssima, que usa de desenhos animados como "Pica-Pau", "Gato Félix" e "Comichão e Coçadinha", o filme te faz pensar e te faz rir ao usar de certa atmosfera à David Lynch. É pouco?
Ainda no ramo da comédia e ainda em Nova York, o nome que vem à cabeça é Woody Allen. Seu filme mais recente a estrear no Brasil (já tem um novo, chamado "Anything Else", estrando em Veneza _que sorte a do Allen, poder filmar tanto, hein?), "Hollywood Ending", vem endorsado pela Dreamworks, do nosso amigo Spielby, e traz todo o egocentrismo do artista, além de Téa Leoni, Debra Messing (a Grace de "Will & Grace") no notório papel da vulgarzinha aspirante a atriz, e aquela gostosa (Tiffani Thiessen, uh) que era a malvada em "Barrados no Baile" (será que a Globo pagou royalties ao Eduardo Dusek?), no papel de atriz gostosa _que ela sabe interpretar muito bem.
"Dirigindo no Escuro" (título imbecil, me faz pensar numa auto-escola que só funciona à noite) pode e vai ser visto por um monte de gente como uma comedinha besta, mas é um dos melhores Allen dos últimos anos, não tão sério e artístico como "Memórias", mas é igualmente autobiográfico. A seguir, reproduzo um trecho de um e-mail onde eu discutia o filme com uns amigos:
"Neste mesmo filme, Allen se assume como egocêntrico, portanto, não é de espantar que ele repita uma série de 'clichês', vistos em várias de suas obras _isto se chama estilo. É impossível negar a personalidade do autor _é uma questão de se identificar ou não com ela.
O que mais me chamou a atenção em 'Hollywood Ending' foi a frase 'Graças a Deus existem os franceses!'. O que parece uma crítica aos europeus (certamente, esta será a interpretação dos conterrâneos de Allen, que amam odiar os franceses) é, na verdade, uma crítica aos norte-americanos, que, em geral, não absorvem bem o humor do diretor (caso semelhante é o de Jerry Lewis, subestimado nos EUA e endeusado na França _é, os franceses amam discordar dos americanos...). O próprio Allen já disse em entrevistas não entender o porquê desta realidade, já que ele se considera um americano típico, 'amante de baseball, de jazz e de loiras peitudas'.
Quem não conhece bem a obra de Allen e deseja se aprofundar, recomendo em especial 'Memórias' (sua obra-prima), 'Manhattan', 'Annie Hall' (traduzido no Brasil como 'Noivo Neurótico, Noiva Nervosa') e 'Maridos e Esposas'. Todos bastante autobiográficos." É isso aê.
P. S. Finalmente vi "Catch Me if You Can". Que bom que o Spielby e o Tom Hanks deixaram de lado (pelo menos um pouco) o politicamente correto _é uma delícia ouvir o ex-comediante gritando "fuck you!". E o filme me fez pensar em como os malandros brasileiros são mais interessantes do que os americanos... Ah, mas quem rouba o filme é mesmo Christopher Walken: ele está brilhante e, quando aparece, domina _não sobra pra ninguém. Ele é o cara!
P. P. S. Uma coisinha que o David Mamet falou sobre o ofício da direção cinematográfica já havia sido dita pelo grande Orson Welles (de quem falaremos bastante em breve), em entrevista ao também cineasta Peter Bogdanovich. Aí vai um trecho:
"OW: (...) E agora, você tem o quê, aí? Mais uma citação explanatória?
PB (lendo): 'Os escritores deveriam ter a primeira e última palavra num filme. E a única alternativa melhor é o escritor-diretor, com ênfase na primeira palavra.'
OW: E mantenho. Dirigir, pura e simplesmente, é a tarefa mais fácil do mundo.
PB: Essa vai precisar de uma explicação!
OW: Peter, não existe outro ofício no mundo em que um homem consiga atravessar tranqüilamente trinta anos de carreira sem que ninguém descubra que ele é incompetente. Dê-lhe um bom roteiro, um bom elenco e um bom montador _ou só um desses elementos todos_, e tudo o que ele tem para fazer é dizer 'Ação' e 'Corta', e o filme se faz sozinho. Falo sério, Peter... Dirigir um filme é o refúgio perfeito do medíocre. Mas, quando um bom diretor faz um mau filme, o universo inteiro sabe quem é o responsável."
P. P. P. S. Esta mensagem vale para sexta-feira, 29 de agosto: feliz aniversário para Luana Piovani, Michael Jackson, Edu Lobo e outros virginianos. Para este desempregado/endividado/desesperado que vos fala, não vai ser grande coisa. Abraços!