A gruta é mais extensa do que a gruta

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    quarta-feira, novembro 26, 2003

    Taxi Driver / Maratona da Morte / Desafio no Bronx / Assassinos por Natureza

    Eu pensei que, um dia, tudo fosse mudar. Me enganei, mentira, como vou suportar? Sem você, menina, já não posso viver. Sinto falta, lembro dos momentos legais.

    “Taxi Driver” é um desses filmes que, para mim, são míticos. Porque eu ouço falar dele desde criança _ou seja, para mim, ele sempre existiu. E, realmente, seu sucesso e sua perenidade indicam uma qualidade quase imaterial, como se o filme não fosse apenas um filme.

    E olha que, quando eu o vi pela primeira vez, achei um Scorsese ainda embrionário (é o quinto longa que ele assina sozinho), menor do que muitos de seus sucessores, além de ter me incomodado com a narrativa, que então considerei um tanto frágil, não só pelo uso da voz over (crianças, não digam “narração em off”, é feio), mas também pela movimentação de câmera, e com a tosquice dos (d)efeitos especiais na famosa cena em que Travis Bickle enfrenta os exploradores de Iris (talvez porque, apesar de ser um filme de baixíssimo orçamento, ele foi feito com tanto capricho e competência técnica que não aparenta falta de recursos), a prostituta de 12 anos interpretada pela Jodie Foster aos 12 anos. Mas, após revê-lo, o filme se mostra um trabalho cuidadosíssimo de narrativa (o uso da câmera lenta é primoroso), já que o anti-herói que protagoniza algumas semanas tensas de uma primavera nova-iorquina é o filtro através do qual vemos uma história incrível se desenrolar.

    “Taxi Driver” (ganhador da Palma de Ouro em Cannes, em 76 _o Oscar foi perdido para “Rocky – Um Lutador”), se for para resumir, é um filme sobre a solidão. Travis está distante da família, não tem amigos nem namoradas. Supõe-se que ele seja um veterano do Vietnã e que retornou de lá com sérias cicatrizes psicológicas. Ele não consegue dormir e demonstra enorme desajuste social (não é à toa que ele leva Cybill Shepherd, “fria e distante, como as outras”, para ver um filme pornô). Sua busca desesperada, a princípio, se limita a preencher seus dias e noites, o que ele faz atrás do volante de um táxi, regado a bebida e pílulas. Mas, em pouco tempo, isso não basta: ele precisa fazer algo com sua vida (apesar de “estarmos todos fodidos”, como diz o Wizard de Peter Boyle _o pai da série "Everybody Loves Raymond"), precisa fazer diferença, precisa limpar todo o lixo à sua volta. Aí, ele se rebela.

    De Niro (recém-alçado ao posto de estrela _havia recebido um Oscar de coadjuvante por “O Poderoso Chefão 2”_, foi tirar licença de taxista e, entre as viagens para a Itália, onde trabalhava no “Novecento” de Bertolucci, dirigia táxis em NY) está excelente, assim como o resto do elenco principal _até o próprio Scorsa (discípulo de Roger Corman, de quem falaremos em breve), que faz uma aparição estilo Hitchcock na cena em que Betsy é introduzida (no bom sentido), manda muito bem como um passageiro com dor de corno. O roteiro de Paul Schrader (a quem Scorsa conheceu por intermédio de De Palma) virou até letra de música do Clash, mas a melhor coisa de “Taxi Driver”, para mim, ainda é a imortal trilha sonora (baseada nos sopros, e não nas cordas) de Bernard Herrmann, que morreu na véspera de Natal de 1975, logo após tê-la composto.

    Antes de passarmos para o próximo filme, duas coisinhas. Um: o moicano de De Niro é peruca. Dois: não se esqueça de que você é tão saudável quanto sente que é.

    Também de 76, “Maratona da Morte” une novamente John Schlesinger (morto em julho deste ano) a Dustin Hoffman, que interpreta um historiador aspirante a maratonista, cuja família é marcada por tragédias. Mas o que chama a atenção, neste filme de violência crua, mas nunca sensacionalista, nem é seu enredo, em particular, mas o modo como a história é narrada (além da interpretação brilhante de Laurence Olivier). Corajosamente, o costumeiro didatismo hollywoodiano é deixado de lado, e só vamos entender como os vários personagens se relacionam com o tempo. Hoje, provavelmente, um grande estúdio forçaria o diretor a mudar tudo, deixando tudo mais mastigadinho para o público da era “Matrix”.

    Voltemos rapidinho a De Niro, que estreou na direção de longas em 1993, filmando a peça autobiográfica de Chazz Palminteri, que interpreta Sonny, o bandido gente boa. A história gira em torno do tema da paternidade: de um lado, De Niro quer que seu filho Calogero cresça sem se envolver com os gângsteres do bairro; de outro, Palminteri “adota” o garoto e o introduz no mundo da contravenção. Parece babaca, mas é um ponto de partida fantástico _e o de chegada também, já que ambos se complementam ao formar o caráter do garoto. Só que De Niro não é Scorsese (nem Leone), e o que poderia ter sido um grande filme sobre NY é apenas um bom filme (o que, convenhamos, não é pouco), cujo senso de humor deriva, em grande parte, da ótima trilha sonora, baseada nos grupos de doo-wop. Ah, e prestem atenção na cena do velório, com De Niro e Joe Pesci. Talento não-desperdiçado.

    Para acabar, avancemos um ano e vamos de Oliver Stone, um cara que labutou anos como roteirista (“O Expresso da Meia-Noite” de Parker, “Conan, o Bárbaro”, de Millius, “Scarface”, de De Palma, “O Ano do Dragão”, de Cimino etc.) para se consagrar como diretor ao encarar o Vietnã (onde, dizem, Stone serviu e até ganhou medalha) com “Platoon”, além de enfocar os presidentes JFK e Nixon em longas (sem falar naquele lixo que é “The Doors”, urgh).

    Mas polêmica mesmo ele causou com “Natural Born Killers”, baseado num argumento do então aspirante a diretor-estrela Quentin Tarantino. Eu o vi no cinema, e, realmente, o filme causava impacto, mas, principalmente após “Pulp Fiction”, o longa de Stone se mostra como uma tentativa dúbia de criticar a indústria do espetáculo (da qual o próprio Stone faz parte).

    Ainda sob uma certa influência de “The Doors” (Stone já foi preso mais de uma vez por porte de maconha e de haxixe _vou resistir à tentação de chamá-lo de Oliver Stoned), “Assassinos por Natureza” evoca um clima psicodélico de butique (ah, se fosse o Ken Russell) e descamba num psicologismo rasteiro, do tipo “papai me estuprou, então virei bandida”, ao contar a história de Mickey e Mallory, casal que mata a família e vai ao cinema. Daí temos, numa estética de desenho animado, misturado a projeções mil, cores saturadas alternadas a cenas em preto-e-branco, muitas imagens subliminares sem um pingo de sutileza, piadinhas sem graça com Charles Manson e uma arrogante depreciação da mídia arrogante, personalizada pelo personagem Wayne Gale. Até mesmo Tommy Lee Jones (que, curiosidade inútil, nasceu exatamente no mesmo dia que Stone) é desperdiçado _mas parece que foi intencional a adoção de personagens tão rasos, como se o diretor se vingasse da indústria que só faz porcaria ao fazer outra porcaria (neste caso, eu até respeito o filme um pouco mais). De bom mesmo, só a trilha sonora, em especial o meu velho amigo Leonard Cohen...

    P. S. Mais De Niro: meio a contragosto, vi “A Máfia Volta ao Divã”, sem ter visto o primeiro filme da série. É uma droga _só não é completa porque De Niro sabe ser um ótimo ator cômico. Os primeiros 30 minutos do filme valem só por causa dele. Depois, nem o homem salva.

    P. P. S. Se ninguém quis comentar sobre “Noite Vazia”, no texto aí debaixo, nem vou me alongar ao falar de “As Amorosas” (1967). Aqui, Khouri já encontra o caminho que trilharia por boa parte do resto de sua carreira: o graaande Paulo José interpreta o famoso personagem Marcelo, que tem Lilian Lemmertz como irmã (a pequena Júlia aparece). Quem também participa são os Mutantes, ainda adolescentes, executando a trilha sonora de Rogério Duprat. A cópia em DVD está ruim, os problemas técnicos abundam, mas o filme vale muito a pena. E até entendo que os cinemanovistas tenham considerado o Khouri um cineasta pequeno burguês, mas as questões que ele levanta continuam atuais _e eu até acho arrogância dizer que tais questões são pequeno burguesas, embora elas possam esperar mais do que a fome...

    P. P. S. Não percam “Narradores de Javé”, quando estrear. O filme da simpaticíssima Eliane Caffé, que venceu o Festival do Rio, é cinema popular e digno. Vale muito a pena conferir a atuação de José Dumont como Antonio Biá. Voltaremos a ele em breve.

    terça-feira, novembro 18, 2003

    De Olhos Bem Fechados / Noite Vazia / Luxúria

    Ah, se maldade vendesse na farmácia... Que bela fortuna você faria com esta cobaia que eu sempre fui nas suas mãos, oh, mulher!

    Então, em março de 2000, eu fiz uma entrevista com o Hector Babenco, que estava voltando a dirigir teatro e trabalhava numa das primeiras versões do roteiro de “Carandiru”. E um dos nomes que surgiram na nossa relativamente longa conversa (qualquer dia eu publico a versão integral) foi o do escritor austríaco Arthur Schnitzler (1862-1931), autor de “Traumnovelle”, obra que Kuby adaptou em seu último filme, “De Olhos Bem Fechados” (outro foi o de Bergman, lembrado, em particular, por causa de “Cenas de um Casamento” _mas isto fica para outro texto), então recém-lançado.

    A primeira vez em que vi o terceiro filme de Kuby em vinte anos (absurdo, não?), eu simplesmente amei, envolvido por todo o clima de mistério (inverossímil, mas é notório que o velho barbudo desprezava a verossimilhança, inclusive nas atuações) e de putaria classuda e asséptica (sem falar nas músicas de Shostakovich, Chris Isaak e György Ligeti, além da Nicole Kidman pelada). Gostei tanto que revi o filme no dia seguinte. Agora, vendo-o mais uma vez, alguns anos depois, o impacto não é mais o mesmo _o que é ótimo, quando se quer pensar sobre o filme.

    E como muitas cabeças pensam mais (melhor?) do que uma, eu os convido a se perguntarem: a história do filme parece envelhecida, no contexto pós-revolução sexual e pós-aids, ou a “pequena” crise vivida pelo casal Harford (Kidman e Cruise ainda eram casados, quando participaram do filme...) é atemporal? Freud explica mesmo? Eu costumo fechar mais com Darwin...

    Claro que há muitas outras questões dentro da obra de despedida de Kuby (por exemplo, o Alan Cumming não está genial? E que o capeta me livre da pedofilia, mas o que é aquela Leelee Sobieski, hein?), a começar pelo título _cuja tradução mais literal seria “Olhos Escancaradamente Fechados”_, e é sempre bom quando um filme dá pano pra manga. Então, não seja tímido(a) e colabore com a proposta deste site, que é a de ser um fórum de discussão _ou seja, entre pra suruba.

    Mas, antes de partir pra suruba, vamos dar uma passada pela São Paulo do início dos anos 60, mostrada em “Noite Vazia” (1964), o filme mais célebre de Walter Hugo Khouri _um cineasta menosprezado por muitos, mas que, para mim, merece ser chamado de artista. Pois temos aqui pitadas de sordidez e romantismo, filosofia existencialista e chauvinismo, luta de classes e guerra dos sexos, tédio e rock’n’roll, arte e chuva, comida japonesa e cinema.

    E daí que a fotografia, especialmente nas externas noturnas, deixa a desejar, e que o tom dos diálogos, hoje, soe sem naturalidade? Temos Odete Lara (um dos maiores exemplos de mulher “pra frente”, talvez ainda mais do que Leila Diniz) embelezadíssima pela câmera e atuando maravilhosamente; Norma Bengell, menos brilhante e menos bonita do que em “Os Cafajestes”, mas, ainda assim, nada desprezível (apesar do ar de “prima donna”); Mário Benvenutti (que acabou virando comediante de pornochanchada _ah, os caminhos do cinema no Brasil), para quem o filme foi escrito, também está sordidamente ótimo, assim como a música do futuro tropicalista Rogério Duprat (executada maravilhosamente pelo Zimbo Trio). Claro que não é um retrato da burguesia paulistana tão complexo quanto o mostrado no genial “São Paulo S/A” (falando nisso, o Person diz, numa entrevista à Joana Fomm reproduzida no documentário de sua filha Marina, que considera "O Caso dos Irmãos Naves", recentemente abordado por aqui, superior ao filme estrelado pelo Walmor Chagas), mas também está longe de ser pouco. E vocês, gostam mais de “As Amorosas” ou de “Corpo Ardente”?

    Falando em corpos ardentes, chegou a vez do dito “gênio do erotismo”, o velho Tinto Brass _cujo “Calígula”, pouco visto e muito comentado, é ainda mais famoso. De certa forma, creio que este “Luxúria” (“Senso ‘45”, de 2002) também toca na questão da transgressão x conservadorismo, como os outros filmes deste texto: até que ponto o sexo é alienante, em vez de libertário? Existe uma falta de foco, aqui? O filme deixa de abordar questões que seriam ainda mais interessantes? Há exagero? Isso é bom ou ruim?

    Seja como for, Brass é, reconhecidamente, um autor cinematográfico (assina roteiro, direção e montagem de seus filmes), e “Luxúria” (o título original está longe de ser tão apelativo) não é, de forma alguma, um mero filminho típico de “Cine Privê” (ainda existe isso?). A começar pela escalação de Anna Galiena (uma mulher de mais de 40 anos, e não uma moçoila turbinada) como a protagonista, uma aristocrata italiana que se apaixona loucamente por um tenente alemão e canalha. E, apesar de mostrar algumas taras (facilmente observáveis em nós mesmos e em nossos semelhantes, se deixarmos a hipocrisia e a vergonha de lado) e da cena de orgia, com direito a closes de órgãos genitais, Brass (que já filmou com nomes do calibre de Peter O’Toole, Alberto Sordi, Vanessa Redgrave, Silvana Mangano, Adolfo Celi e Franco Nero, entre outros), no fundo, realiza um filme sobre a paixão. Claro que seu retrato da Itália sob ocupação alemã não chega nem perto das obras-primas de Rossellini _mas também não era essa a sua intenção. Chega de politicamente correto!

    P. S. Sempre ouvi falar bem de “Férias de Amor” (“Picnic”, 1955), de Joshua Logan, com William Holden e a então ruiva Kim Novak. Mas, decepção: trata-se de um filme bastante antiquado, com atuações pouco naturalistas, que não servem a nenhum tipo interessante de alegoria... Perde feio para “Clamor do Sexo”.

    P. P. S. "Veludo Azul" ia entrar neste texto, mas como meu irmão emprestou o DVD antes que eu o revisse, fica para outra vez...

    quarta-feira, novembro 12, 2003

    The Matrix Revolutions / The Animatrix

    Mr. Anderson, would you like to dance?

    Por que o Agente Smith nunca disse esta frase? Hein? Hein?

    Então, já expliquei aqui que passei ao largo de toda a comoção que “The Matrix” causou em 1999. Vi o filme apenas neste ano, poucos dias antes de ver o “Reloaded”. Talvez seja este um dos motivos de eu não considerar a obra dos Wachowski “uma revolução da ficção científica”, como andaram falando por aí. “Star Wars”, uma série da qual eu nem sou um grande fã, revolucionou bem mais _e olha que nem falei de “2001 – Uma Odisséia no Espaço” ou de “Metropolis”...

    Também já falei que, contrariamente a muitos dos fãs da série (mas não todos), gostei mais do “Reloaded” do que do primeiro. Mas, agora, após ter visto “Revolutions” (o ingresso, caríssimo, aumentou em 10%, grrr!), fico em dúvida (seria bom ter revisto “Reloaded” em DVD, antes de conferir a conclusão da série). Porque, como já sabíamos, “Reloaded” e “Revolutions” são um mesmo filme dividido em dois (como “Kill Bill”, que, ao contrário do filme estrelado pelas máquinas, vai demorar pra chegar por aqui).

    O primeiro “Matrix” causa impacto porque é o filme que “desvenda a verdade”: ficamos sabendo que o mundo em que vivemos é ilusório, e que não passamos de pilhas humanas _como Morpheus explica numa das seqüências mais lembradas da obra. Também aturamos todo aquele blábláblá messiânico chato e as filosofices de biscoitos da sorte, além de engolir numerosas e pouco sutis referências à literatura, ao cinema etc. Tem gente que leva a sério, mas eu não consigo deixar de considerar o filme uma FC fuleirona, entretenimento com ares de pretensão, trash com verniz hollywoodiano.

    “Reloaded” me animou por causa da aparente complicação da trama: novos personagens, novos ambientes, novos símbolos, seqüências de ação espetaculares e barulhentas e a Monica Bellucci (e também o jogo “Enter the Matrix”, um porre, só agüentei jogar duas fases). “Reloaded”, apesar de se sustentar sozinho como espetáculo, é obviamente inconclusivo, mas parecia levar a um destino interessante. Mas “Revolutions” configura-se como um grande anticlímax. Não só porque as cenas de ação não chegam aos pés de seu antecessor (na verdade, o roteiro nem pedia isso), mas porque o desenvolvimento de certos personagens, como o Arquiteto e o Merovingian (e até a própria Oráculo), deixou a desejar (o que não ocorre com Morpheus, que já tinha cumprido seu papel e não tem muito mais a contribuir). Também incomoda a falta de mais cenas na Matrix, muito mais interessante do que o "mundo real". E o final acaba sendo extremamente simplório, talvez daí venha toda a decepção.

    E, talvez para o pasmo de alguns, confesso que cheguei a sentir tédio com um “T” bem grande durante a cena da guerra no hangar de Sião (ou Zion). Não havia sentido isso em “Reloaded” (apenas um desejo desesperador de que o filme acabasse logo), mas aqui me incomodou toda aquela glorificação do espírito guerreiro e militarista, que alguns relacionam à tal de “doutrina Bush”. Bem, eu acho que estou ficando cansado de violência. É só eu assistir a um Leone, Scorsese, Hitchcock ou Peckimpah, que passa...

    Ah, Hugo Weaving continua genial como o Agente Smith, mas a cena do confronto entre o vilão e Neo é a mais chata de toda a série. Mas o espetáculo é todo dele. Keanu Reeves é impressionante como nulidade dramática; seu Neo é muito chato e inexpressivo. Até a garotinha indiana atua melhor. Mas o decote da Persephone é um espetáculo... Agora, é hora de esperar por mais jogos, DVDs com extras e produtos mil. Nada contra.

    Falando em produtos mil, quem diria que “The Matrix” seria suplantado por uma coleção de animes (e olha que, desde Osamu Tezuka, os desenhos japoneses vêm criando gerações de crianças por todo o mundo)? “The Animatrix” me fez respeitar muito mais a obra dos Wachowski, ao mesmo tempo em que deixa claro que o universo criado por Atchim & Espirro pode dar vazão a histórias interessantíssimas, que não precisam se colar aos personagens apresentados nos filmes.

    E é justamente aí onde estão os melhores momentos do conjunto de nove curta-metragens animados. Se peças como “O Vôo Final de Osíris” (feito pelos animadores da Square Software, que faz jogos como “Final Fantasy”) e “O Segundo Renascer” são ruins, histórias como “Era uma Vez um Garoto” e “O Recorde Mundial” são interessantíssimas, ao mostrar como certos seres humanos conseguem, por si mesmos, ultrapassar o véu da Matrix. Outros aspectos deste universo são desdobrados de modo bem satisfatório em “Além da Realidade” e em “Uma História de Detetive”. E até os extras do DVD são melhores do que os do filme original...

    P. S. Já falei e vou repetir, porque se trata de algo importante: quem estiver em São Paulo e não for ver nenhum filme da mostra do Rossellini merece engolir os próprios dentes durante uma crise de hemorróidas. Não percam!

    sábado, novembro 01, 2003

    Noites de Cabíria / O Caso dos Irmãos Naves / Crônicas de um Amor Louco

    Nem vem com garfo, que hoje é dia de sopa.

    Há pouco tempo, disse aqui que achei o “Amélie Poulain” uma porcaria, e a declaração gerou muito mais polêmica do que eu imaginava _não sabia que o filme bobo do Jeunet tinha tantos fãs. Mas o que me impressionou é que, nos extras do filme, não há nenhuma menção a Giulietta Masina, em quem Audrey Tautou com certeza se baseou (mesmo que inconscientemente) para a caracterização de sua Amélie Poulain. E se a Emily Watson tivesse interpretado o personagem, criado para ela, não seria ainda mais a cara da Giuli?

    Também é impressionante como essa pecha de atriz “clown” colou na mulher de Fellini, por causa de sua Gelsomina. Após a consagração, Masina não se cansaria de repetir que nunca havia feito papel parecido, antes... E, se Masina também não chega a se consagrar exatamente como uma atriz explosivamente dramática, como a Anna Magnani (para ficarmos no mesmo país e época), sua também marcante interpretação como a pobre (porém romântica e otimista) prostituta Cabíria ajuda a dar uma amostra do potencial da senhôura, que até ganhou canção do Caê, afe!

    Mas eu já falei mais de uma vez que eu prefiro o Fellini dos anos 60 e 70 (já viram “Cidade das Mulheres”? Excelente!), e o episódico “Le Notte de Cabiria” (1957), ganhador do Oscar de melhor filme estrangeiro (Masina ganhou o de melhor atriz em Cannes _realmente, ela está excelente), apesar de um grande filme, merecedor da pecha de clássico, é ainda inferior a “La Strada”, que nem me marcou tanto assim... Engraçado como os filmes de Fellini dos anos 50 (pelo menos, os mais famosos) não conservam o frescor de algumas obras de Rossellini ou Visconti (diretores de quem já falamos, mas de quem voltaremos a falar muitas vezes, é claro)... Mas, além da famosíssima (e brilhante) cena final, vale a pena conferir o desempenho de Masina na também fantástica cena da hipnose... Depois, venha me contar o que você achou.

    Antes de falarmos de outro italiano, vamos voltar a um brasileiro que estudou na Itália na virada dos 50 para os 60 e que certamente foi influenciado pelo neo-realismo e tal: o nosso velho amigo Luiz Sérgio Person, diretor de um dos melhores (se não o melhor) filmes brazucas de todos os tempos, “São Paulo S/A”, devidamente lambido aqui. Logo após sua obra-prima, lançada em 1965, o pai da Marina e da Domingas (será que foi inspirada na do Babulina?) foi buscar no jornalismo policial o tema para seu longa seguinte, “O Caso dos Irmãos Naves” (1967).

    A história, ocorrida na época do Estado Novo (ou seja, outra ditadura, como a que o Brasil vivia em 1967 _parece que Person já antevia os excessos dos ditos “anos de chumbo”), é revoltante: dois irmãos (Raul Cortez e Juca de Oliveira) são acusados de um crime que não cometeram. A polícia (representada pelo personagem de Anselmo Duarte, antigo galã do cinema nacional e autor de filmes maravilhosos como “O Pagador de Promessas” e o injustamente esquecido “Vereda da Salvação”, também com Cortez) não só os prende e os tortura, mas faz o mesmo com a mãe deles, uma senhora sexagenária... O caso, ocorrido na cidade mineira de Araguari (onde o filme foi feito, com a participação de vários de seus habitantes _lembra o Rossellini, não?), chamou a atenção de um advogado (uma grande atuação do importante, porém injustamente menosprezado, John Herbert _ele rouba o filme), que enfrenta a coação da polícia (que não perdoa nem juiz) para defender os Naves.

    Cinematograficamente, “O Caso dos Irmãos Naves” é infinitamente inferior a “São Paulo S/A”, mas, historicamente, é uma obra importantíssima, precursora dos “Pra Frente, Brasil” e congêneres_ ainda mais se considerarmos a época em que esta veemente denúncia da arbitrariedade das autoridades policiais foi produzida e comercializada. Cadê as palmas para o Person? Melhor ainda, por que seus filmes não são restaurados e relançados no cinema? Cadê os DVDs? Tsc, tsc, tsc.

    Bom, vamos pegar mais uns italianos e levá-los para os EUA, lar do escritor-fetiche Charles Bukowski, tão amado quanto execrado _será que pelo menos é lido? Pois, em 1981, o malucão Marco Ferreri (do maravilhoso “A Comilança”) escalou outro ator meio maldito (Ben Gazzara, de “Anatomia de um Crime”) para encarnar um alter ego do velho Hank, autor de belíssimos poemas _apesar disso, Ferreri não deixa que seu longa se limite ao texto.

    Agora, imagem com I, é preciso dizer, é a da bunda da Ornella Muti _linda, pena que aparece pouco (a atriz, não apenas a sua bunda). Assim como “Cabíria”, o filme chega perto de ser episódico, centrando-se o tempo todo no escritor e em suas diversas conquistas amorosas/sexuais, entre muita bebida (Gazzara sempre está com um uísque na mão) e outras coisitas más. Ah, e as cenas na praia... embalagem perfeita para o belíssimo poema do final, um dos grandes responsáveis por ajudar a guardar na lembrança este filme, que está longe de ser grande, mas que também não é de se jogar fora. E é bem menos depressivo do que “Barfly”...

    P. S. Complementando um pouco o texto anterior sobre filmes de terror (eu acho o filme sobre os Naves muito mais assustador do que qualquer “Exorcista” ou “Iluminado”), mais uma citação do nosso simpaticíssimo Jean-Luc:

    “Eu diria, antes de tudo, que os verdadeiros filmes de monstros são os que não provocam medo, mas que, depois, nos tornam monstruosos. Enquanto os outros, os que dão um pouco de medo, só fazem liberar-nos um pouco.”

    P. P. S. Este site foi citado numa matéria, assinada por Cátia C. Simões e publicada em uma página portuguesa que trata de cinema. Cátia diz que meus comentários são “extensos” (sério? Eu acho que são absurdamente sucintos...) e que eu tenho um “estilo muito pessoal”... Ah, ‘brigado.

    Na platéia