A gruta é mais extensa do que a gruta

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    sexta-feira, janeiro 31, 2003

    Sangue de Pantera

    “Você precisa de um homem pra chamar de seu, mesmo que esse homem seja eu.”

    Caray, o Erasmo é massa.

    Mas você já percebeu que está passando uma enxurrada (eu não devia usar esta palavra em janeiro, mas...) de filmes antigos em São Paulo? Parece que os exibidores se tocaram de que existe público (não muito grande, mas existe) para os clássicos... E já vou avisando: os próximos cinco filmes a serem cuspidos aqui foram feitos há pelo menos 25 anos... Sessão nostalgia is on the house.

    Então, antes de a lanchonética Vanessa e eu comermos o famoso (e escandalosamente caro, como quase tudo em São Paulo) bauru do Ponto Chic, fomos à sala Lima Barreto do Centro Cultural São Paulo assistir, “de grátis”, a “Sangue de Pantera”, filme que inspirou “A Marca da Pantera” (batizado no exterior de “O Beijo da Pantera”, título muito mais legal), com a ex-totosa Nastassja Kinski, filha do malucão Klaus Kinski.

    Confesso que não entendo bem porque esse filme virou cult. Lançado em 1942 pela RKO, “Cat People” traz diretor (Jacques Tourneur) e elenco (encabeçado por Simone Simon, que filmaria com o grande Robert Wise) razoavelmente desconhecidos. Trata-se de uma produção barata, embora não escancaradamente “B”, e de apenas 73 minutos de duração, ou seja, é quase um média-metragem. Mas dá para entreter, o que nos fez esquecer da péssima qualidade da cópia, do cheiro de mofo da sala (lotada, é bom dizer) e do pouco espaço entre as cadeiras.

    A história até que é simples: um americano se envolve com uma imigrante sérvia. A certo ponto da história a mocinha revela que descende de uma tribo cujas mulheres, segundo a lenda, se transformariam em panteras para assassinar seus maridos. Em vez de viúvas-negras, panteras negras, saca? Pronto, praticamente contei o filme inteiro. Mal aí.

    É que o filme é tosco mesmo. Mas também é simples e consegue contar a história sem usar efeitos especiais, abusando da estética “noir” em voga na época. E há alguns momentos primorosos de tensão, como a cena na piscina (belíssima e soturna fotografia) e a da saudação sinistra no restaurante...

    À medida em que o filme avança, Simone Simon consegue tornar-se tão apavorante quanto uma Lorena Bobbitt... Brr!! Caras que acreditam na história da vagina dentada (outra forma “poética” de expressão do pavor que certos homens sentem _mas não assumem, pois são mariquinhas_ das mulheres) e que não seguem o ensinamento máximo de Marcelo Nova (“Enquanto eu tiver língua e dedo, mulher nenhuma me mete medo”) terão pesadelos...

    Nota: 6,5/10

    P. S. Eu vi o Recife, e ele começava no oceano Atlântico.

    P. P. S. A pedidos do dono do meu único blog-filho, visitem. Mas não só.

    P. P. P. S. O macaco tá certo? Vi no no mínimo

    P. P. P. P. S. Recomendação da semana: este artigo de Celso Sabadin. Et c’est fini.

    segunda-feira, janeiro 27, 2003

    A Noite Americana

    Todo homem, no fundo, quer uma mulher que seja, ao mesmo tempo, mãe e puta. Ou seja: todo homem, no fundo (ou nem tão no fundo assim), é um filho da puta com um baita (eu não quis repetir a palavra "puta") complexo de Édipo.

    Mas deixemos a filosofia de boteco de lado por apenas um instante e falemos de uma obra-prima da tal sétima arte, ui, ui.

    O cinema francês carregou (ainda carrega) uma certa pecha de “chato”, “pretensioso”, “intelectual” etc. Muito disso pode ser atribuído ao biquinho que a língua francesa nos obriga a fazer para falar “merci beaucoup” e que nos deixa com cara de esnobes patetas, mas às vezes tenho a impressão de que também podemos apontar, de modo inclemente, o fura-bolo de nossa mão direita para o impacto cultural da “Nouvelle Vague” nas cinematografias de diversos países (Brasil incluso). Mas essas palavras entre aspas que eu coloquei na primeira frase deste parágrafo frufru não combinam com François Truffaut, n’est-ce pas?

    Quem assistiu àquela maravilha que é “Os Incompreendidos” _vi este filme há anos, uma cópia sem legendas no velho MIS, com o meu amigo chileno Mauro Ramirez, a quem sou eternamente grato por ter me ensinado a técnica da tampinha para a adequada preservação de bolachas _pode achar que eu estou contando história. Bem, eu avisei. De um jeito meio heterodoxo, reconheço, mas avisei.

    “A Noite Americana” (que assisti no Frei Caneca com meus amigos Maurício, Aggeu e Guilherme _que encontramos lá por acaso), de 1972, é um desses formidáveis filmes que enfocam os bastidores do cinema _neste caso, ao mostrar uma equipe trabalhando sob a batuta de um diretor interpretado pelo... próprio diretor, ou seja, Truffaut. Já recomendei aqui “O Jogador”, “Crepúsculo dos Deuses” e “Cantando na Chuva”, entre outros. Adicione esta beleza à sua lista, faça-se o favor.

    A obra não apenas desmascara algumas das trucagens (com um certo didatismo, mas sem um pingo de chatice) do ato de filmar (como o uso de espuma no lugar de neve, entre outras delícias), mas também proporciona estupendas histórias que ocorrem no e fora do set, com personagens exemplares, como a velha atriz que já conheceu dias mais gloriosos (um aceno a “Sunset Boulevard”?), um famoso ex-galã que ainda mantém um certo charme, o atorzinho que leva a namorada para trabalhar no filme, a triz que se descobre grávida bem no decorrer do trabalho... Não é o caso de entrar em detalhes, até porque eu poderia escrever um livro apenas sobre este filme... Veja por si mesmo, eu insisto.

    Também não posso deixar de destacar a presença sublime de Jacqueline Bisset, no auge da beleza. Dona de uma face que deixa a de Ana Paula Arósio no chinelo, ela está deslumbrante _e Truffaut, condizente com o papel de “o homem que amava as mulheres”, filma-a com um carinho extremo, como se fosse Fellini retratando Anita Ekberg ou Chaplin enfocando Paulette Godard. Mesmo que o filme fosse um lixo, só as cenas iluminadas por Bisset já lhe valeriam um lugar reservado na posteridade... Ai, ai.

    Outro bônus divertido que o filme oferece é uma espécie de “Onde Está Wally?” cinematográfico, que poderíamos chamar de “Onde Estão as Homenagens aos Grandes Cineastas?”. Por exemplo, uma placa de rua com o nome de Jean Vigo, referências a Chaplin e Welles nos sonhos do diretor, Godard, Bresson, Lubistch, Hitchcock e outros em capas de livros e etc. etc. etc.

    Também há outros insights magníficos, como o diretor pensando “sempre que começo um filme, pretendo fazer o meu melhor; lá pela metade do projeto, penso apenas em conseguir terminá-lo” ou, após a morte de um grande ator, “uma era do cinema chega ao fim; em pouco tempo, as pessoas filmarão nas ruas e sem roteiro” ou, ao ler o jornal, “’O Poderoso Chefão’ está em todas as salas? Só este filme dá dinheiro?”... E a frase final, então? Sensacional, fecha (ou melhor, deixa bem aberta) a obra com chave de ouro.

    Em suma, “A Noite Americana” (descubra o porquê do título vendo o filme, ora) é um brilhante “crossover” da vida com o cinema. É lindo. E tem uma trilha sonora exemplar, apesar de presente em breves intervenções. E é dedicado a Lilian e Dorothy Gish, grandes pioneiras do cinema norte-americano e atrizes de obras de D. W. Griffith. E... espera aí, ainda não acabei...

    Nota: 9,5/10

    P. S. Falando naquele país onde se faz muito boquinho e onde Jerry Lewis era rei, recomendo a leitura deste artigo de um dos melhores jornalistas com quem já trabalhei, o graaande Alcino Leite Neto (que, como bônus, traz a lista dos melhores filmes de 2002, segundo o “Cahiers du Cinéma” e a “Les Inrockuptibles” _revistas francófonas dirigidas a públicos bem diferentes, mas que publicaram listas com vários nomes em comum). Será que Votuporanga um dia será assim? (Menos, Marcelo, menos...)

    quarta-feira, janeiro 22, 2003

    Ônibus 174

    “Isso aqui não é filme de ação, não. Vocês não esquentaram a chapa lá em Vigário, lá na Candelária? Eu tava . Eu fiquei na 26. Pergunta pra tia Yvone.”

    Essas são apenas algumas das frases que as TVs captaram da boca de Sandro do Nascimento, que ficou mais conhecido como “o assassino do ônibus”. No Dia dos Namorados do ano 2000, o rapaz, aos 23 anos (“a mesma idade do Guga”, disseram os jornais à época), assaltou um ônibus, foi cercado e fez reféns. Graças a uma ação desastrada das autoridades, acabou matando uma jovem professora, em frente às câmeras de TV. Preso, foi asfixiado e morreu no camburão. No final do ano passado, os policiais acusados de o terem liqüidado foram absolvidos.

    O final da história, todo mundo já sabia. Faltava luz na trajetória do criminoso, faltava mostrar por que o rapaz chegou àquele extremo, o que o levou a fazer o que fez. O documentário “Ônibus 174”, dirigido por José Padilha (visto por mim e pela serelepe Vanessa na sala _pequena, assim como a tela_ 3 do Cineclube DirecTV, no dia 9 de dezembro passado), tenta mostrar o que muita gente prefere não ver.

    O trabalho de pesquisa no filme foi excelente. Parentes, amigos, meninos de rua, policiais, vítimas, um assaltante (que explica as manhas da profissão), um ex-secretário de segurança pública (que insiste numa tese da “invisibilidade social”), a assistente social que tentou ajudá-lo (a tal da “tia Yvone”), a “mãe” que ele adotou e com a qual morou e até um ex-professor de capoeira (!!!) de Sandro são ouvidos.

    Ficamos sabendo do grande trauma da sua vida, o assassinato da mãe, que ele teria presenciado, aos seis anos. Seus amigos, que o apelidavam de “Mancha”, o descrevem como um cara tímido, que usava drogas _em especial, cola e cocaína. Era um dos meninos que sobreviveu à infame chacina da Candelária. Passou pela Febem e pela cadeia _um carcereiro da 26ª D. P. do Rio mostra as celas e descreve o lugar de modo certeiro com apenas uma palavra: medieval. Nunca havia matado ninguém.

    Não pretendo bancar o advogado. Apenas quero sublinhar que filmes como este são importantíssimos, por motivos óbvios (ironia: vi este filme um dia após assistir ao “Blame in on Lisa”, o famigerado _e excelente_ episódio em que os Simpsons visitam o Brasil). E, além de pertinente, o filme, de 2h15min de duração, te prende na cadeira _os estrangeiros, que não conheciam o fato, acompanham o documentário como se fosse um thriller. Mas o ingresso já valeria a pena apenas pelo maravilhoso passeio que a câmera faz de helicóptero sobre a Cidade Maravilhosa, revelando as características únicas da geografia da capital carioca...

    Nota: 8,5/10

    P. S. Apesar de eu me interessar bastante por cinema, eu simplesmente não consigo encarar as premiações como uma Copa do Mundo. E daí que “Cidade de Deus”não ganhou a bosta do Globo de Ouro (não, não é aquele programa da Globo no qual o Kadu Moliterno apresentava nomes ilustres como RPM e Kiko Zambianchi)? E daí que não vai ganhar a merda do Oscar (não, não é o nosso cestinha malufista)? Esses prêmios servem apenas a propósitos marqueteiros e só interessam a quem investiu no filme. O povo, esse não ganha nada. Como sempre.

    P.P. S. Coldplay é uma bosta. (Desculpem a mudança brusca de assunto, mas eu precisava dizer isso.)

    sexta-feira, janeiro 17, 2003

    O Filho da Noiva

    Em 2002, dois grandes amigos meus (um deles meu primo Leonardo, irmão gêmeo do... Leandro _é sério) contraíram o casamento. Em 2003, pelo menos mais dois (embora, provavelmente, o número será maior) seguirão a mesma trilha.

    E no dia 6 de janeiro passado, meus pais comemoraram 30 anos de casados. É, bodas de pérola. Impressionante.

    Falando em casamento, “O Filho da Noiva”, mais um exemplar do cinema argentino atual (que, apesar da crise, ganhou destaque de uns tempos pra cá), obviamente toca no assunto, como o título indica.

    O filme, bastante deprê a princípio, conta a história de um homem (Ricardo Darín, que também atuou em “Nove Rainhas”) cheio de problemas: é divorciado, sua relação com a ex-mulher não é das melhores, portanto ele não consegue ver sua filha o tanto quanto gostaria; o restaurante do qual é proprietário atravessa maus momentos; sua mãe, que sofre do terrível mal de Alzheimer, vive em um asilo; ele também enfrenta problemas de saúde e com um amigo de infância, com seu pai e com a namorada etc. etc. etc.

    Mas a coisa, dirigida por Juan José Campanella e que foi indicada ao Oscar de melhor filme estrangeiro em 2002, não é tão ruim quanto parece. Não vou comentar o enredo em profundidade (e nem explicar o título) para não estragar as surpresas; o que interessa é que o filme é bonito (em certos trechos, emocionante) e merece ser visto.

    Mais interessante ainda é como a questão da crise econômica no país está sendo enfocada por sua produção cinematográfica. Filmes, mesmo os de ficção, são importantes documentos de época, e “O Filho da Noiva” tem tudo para se tornar um pequeno clássico regional.

    Ah, um dos personagens comenta que não vê filmes argentinos... Não parece coisa do cinema nacional?

    Nota: 7,5/10

    P. S. Falando em datas especiais, hoje é o aniversário da praieira Vanessa (cujo site está de endereço novo, atualizem), que viu este filme comigo numa sala cheirando a mofo do Cinearte e que já me contou que ganhou uma baratona de plástico e uma espiga de milho de pelúcia que toca “Dorme Filhinho do Coração”. Parabéns, baybeh.

    sexta-feira, janeiro 10, 2003

    A Missão

    Li em algum lugar, não faz muito tempo, que certos títulos para videogame já estão faturando mais do que filmes. Não é de estranhar, porque os jogos eletrônicos nunca foram mera coisa de criança.

    Tenho jogado videogame há quase vinte anos, desde a época em que o padrão Atari se popularizou. Mas esses cartuchos antigos, por serem extremamente simples e de produção barata, muitos criados por apenas um programador (o que permitia produções bem politicamente incorretas, como os jogos pornográficos da Mystique _que sempre vinham em duas versões, uma para homens e outras para mulheres, cool), não tinham nada a ver com “arte”.

    Com o desenvolvimento de consoles mais potentes, os videogames começaram a ser levados mais a sério _e a ser comparados com o cinema. Gráficos deslumbrantes, roteiros bem-elaborados e produtores que se tornam praticamente estrelas (o caso mais exemplar é o de Hironobu Sakaguchi, criador da série “Final Fantasy”, que, não por acaso, virou filme) ajudam a sustentar a idéia.

    Não sei se já comentei aqui, mas meu pai é dono, há pouco mais de dez anos, de uma pequena locadora de videogames. Portanto, involuntariamente, acabei acompanhando de perto o desenvolvimento desses jogos. Nestas férias, conferi alguns títulos do bem-sucedido Playstation 2, outra bola dentro da Sony. Jogos como o “Grand Theft Auto” (tanto o “III” quanto o “Vice City” _hilária sátira ao seriado policial oitentista e canastrão “Miami Vice”), o décimo episódio de “Final Fantasy” e, principalmente, o “Metal Gear Solid 2” são quase-filmes, mas com um grande bônus: o grau de interatividade é tamanho que uma jogada nunca é igual à outra. É como se você, ao jogar, completasse o staff dos criadores do produto. É legal pra cacete. E a coisa vai crescer muito mais, porque, mesmo com a pirataria galopante, a seara dos games está dando muito dinheiro. E olha que nem falei de “Everquest”, “Neverwinter Nights”, “Counter Strike” comendo solto em LAN houses etc.

    Agora vamos sair do presente e voltar ao passado. Vi “A Missão” na época em que ele foi lançado, em 1986 _eu era criança, mas já adorava história. E o revi há pouco tempo, para realizar uma pesquisa antropológica cultural _nada a ver com o tal “do-in antropológico” do nosso ministro Gegê.

    O filme, dirigido pelo britânico Roland Joffé, com trilha de Enio Morricone e alguns prêmios no currículo, é riquíssimo. Como o nome indica, enfoca o trabalho de jesuítas na América Latina (mais especificamente, onde hoje é o Paraguai), na época do tratado de Madri (que redefiniu as fronteiras entre as colônias espanholas e a portuguesa, vão estudar, vão).

    Um filme que pouco lembra o padrão Hollywood de “sucesso”, “A Missão” marca talvez a última grande interpretação de Robert De Niro _o cara, de uns anos pra cá, está que nem o Marlon Brando e o Al Pacino: mal interpreta, só exibe seus tiques nos filmes. Ele é um violento caçador de índios que, após assassinar o irmão (Aidan Quinn, um galãzinho da época, lembram?) por causa de, é óbvio, mulé, é corroído pelo remorso e torna-se um jesuíta na missão (preciso explicar o que é missão, o que é jesuíta, o que foi a Contra-Reforma etc.? Não, né?) liderada por Jeremy Irons.

    Além de todo o fundo histórico que a obra proporciona, ela também trata de questões muito legais, como o processo de aculturamento dos guaranis (filmes que mostram o outro lado da moeda e que são legais _e nacionais_, “Como Era Gostoso o Meu Francês” e “Hans Staden”, por exemplo, são recomendáveis), a relação entre Igreja e Estado e o ponto central da coisa toda: o dilema entre a cruz e a espada. O filme envereda por trilhas muito interessantes (prestem atenção no personagem de Liam Neeson, no papel da música, no soldado que hesita em atirar em índios tornados cristãos etc. _acima de tudo, deslumbrem-se com a emocionante cena em que De Niro se redime), confira. Tchau, curumins.

    Nota: 8/10

    domingo, janeiro 05, 2003

    Full Frontal

    Um domingo de novembro, 23h30, linha azul do metrô paulistano. Num dos bancos paralelos à parede do vagão, duas meninas lindíssimas entrelaçam os dedos das mãos. Olham-se nos olhos. Sorriem. Uma delas apoia a cabeça no ombro da outra. Não demora muito, começam a se beijar. De língua.

    A cena é bela, mas as outras mulheres daquele canto do vagão olham torto. Os homens, bando de punheteiros, babam e sorriem com malícia, provavelmente pensando em comer as duas _como se isso fosse mesmo rolar, coitados.

    Meia dúzia de adolescentes, góticos e barulhentos, entram no vagão pela porta do meio. Depois de observarem as amantes, duas das meninas de preto deitam-se no chão e começam a se roçar, gemendo e gargalhando alto, claramente tirando um sarro do jovem casal. Mas as pombinhas não se incomodam com as freqüentadoras de túmulos; riem bastante, divertidas. E se beijam, apaixonadamente, de novo.

    Algumas horas antes, Rodrigo, 12 anos, pele escura, vendedor de balas que pega seis ônibus diferentes por dia para trabalhar e que apanha da mãe se a jornada não for boa, vai ao cinema pela primeira vez na vida. Amigos meus tinham conhecido o garoto no dia anterior. Ele gosta de cantar. E canta bem, até.

    O filme é o segundo exemplar da série “Harry Potter”, que havia acabado de estrear. O garoto se deslumbra com a sala do Arteplex, as cadeiras, a tela, o som, a pipoca e o McLanche Feliz que ganhou. Depois da sessão, abraçou a todos nós. E foi embora na chuva. Não sabíamos, mas nos encontraríamos de novo.

    Só que eu não fui ver “Harry Potter”. Era dublado, e eu não vejo filmes dublados nem na TV (só quando eu tiver um bebê), quanto mais no cinema. A opção era ver, então, “Full Frontal”, novo filme de Steven Soderbergh, diretor do interessante (mas afetado) “sexo, mentiras e videotape”, de “Erin Brockovich” e de “Traffic”, entre outros (o próximo projeto dele é a refilmagem de “Solaris”, do diretor russo Andrei Tarkovsky _que, por sua vez, baseou-se no romance de Stanislaw Lem).

    Após conquistar uma posição confortável em Hollywood, dirigindo astros de “blockbusters” como Michael Douglas e George Clooney, o Soder resolveu voltar ao esquema independente, criticando de maneira ferrenha o próprio meio que lhe deu fama e dinheiro.

    Só o fato de megaestrelas como Julia Roberts e Brad Pitt não terem as mordomias de praxe (os atores não tinham os tradicionais trailers, além de bancarem sua condução até as locações e seus figurinos e maquiagens e adereços etc.) já é um troço legal pra cacete. E o de fazer estes mesmos atores atuarem em um filme dentro de um filme (e é aí que a ironia não muito fina come solta _parece que ele quis ser bem explícito, didático até), também. A seqüência em que Pitt e o “ator-ainda-desconhecido” filmam dezenas de tomadas de uma cena medícocre é engraçadíssima.

    Para contrapor a “vida real” do glamour de porcelana falsificada do cinema hollywoodiano, Soder nos mostra as cenas do “filme” com a fotografia e cenografia padrão dos produtos da grande indústria (o que é aquela peruca da Julia Roberts?), além de todos os clichês idiotas e idiotizantes que atolam essas pataquadas. Já a maior parte da obra é em digital podrão mesmo, com uma imagem ainda mais granulada do que a de “O Invasor”.

    Em resumo: o filme é beeem legal (mais complexo do que parece; não tenho como me alongar a respeito aqui, assista e tire suas próprias conclusões), mas poderia ser bem melhor. É um filme mais de idéias do que de imagens _nesse quesito, perde até para o fenomenal “A Bruxa de Blair”. Também é um daqueles filmes que ou você ama ou odeia (o amigo que me acompanhava, por exemplo, odiou, achou “cabeça” e saiu no meio para comprar pipoca). Mas voltaremos a comentar essa história de “filme dentro do filme” talvez ainda neste mês, quando colocarei na roda uma obra-prima, que, de lambujem, traz uma das mulheres mais L.I.N.D.A.S. da história do cinema. Já sabem de qual filme estou falando? Até lá, feliz 2003.

    Nota: 7,5/10

    Na platéia