A gruta é mais extensa do que a gruta

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    segunda-feira, maio 17, 2004

    Barravento / A Terra Treme / Diários de Motocicleta / 25 / Di

    You let me love you till I was a failure... Your beauty on my bruise like iodine.

    Estou gripado, entupido de coisas para fazer. Nem acredito que arranjei tempo para escrever este texto... Bom, vamos lá, sem mais delongas, porque não sou homem de ficar jogando conversa fora, acredito que a concisão é uma virtude e não me agrada nem um pouquinho de nada ficar desperdiçando o tempo das outras pessoas, é por isso que prefiro ir direto ao assunto, em vez de me limitar a encher este espaço maravilhoso e democrático de letrinhas inúteis, concordam comigo? Então, tá.

    Quando eu era um jovem mancebo de 12 anos, a TV Cultura de São Paulo (na época em sua melhor fase, presidida pelo Roberto Muylaert, pai da diretora de "Durval Discos") promoveu um ciclo com filmes de Glauber Rocha. Os mesmos de sempre: "Deus e o Diabo na Terra do Sol", "Terra em Transe", "O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro" e "Barravento". Leitor compulsivo (como era muito jovem, ainda não havia sido subjugado pela paixão pelas mulheres _ou seja, tinha muito mais tempo para outras atividades), obviamente já tinha bastante informação sobre Glauber, mas nunca tinha visto um filme do feladaputa. Pois vi os quatro e caí de quatro. Bom bragarái.

    Agora, em 2004, o Canal Brasil também inventa de fazer um ciclo Glauber Rocha e passa os mesmos quatro filmes (nada de "Câncer", "Cabezas Cortadas", "Claro", "Der Leone Have Sept Cabeças" etc.), mais "A Idade da Terra", que não consegui terminar de ver. Aproveitei para rever os dois que tinha gostado menos, "O Dragão..." e "Barravento". Muito mais crítico e menos deslumbrado do que quando tinha 12 anos, me surpreendi ao gostar ainda mais dos filmes, em especial da continuação da saga de Antônio das Mortes.

    Mas "Barravento" (1962) me chamou a atenção por que havia revisto, há pouco, os restos de "It's All True", do nosso amigo Orsie. Como o filme nunca foi finalizado, e as latas ficaram "perdidas" até a metade da década de 80, é lógico que Glauber (1938-1981) não viu o maravilhoso trabalho de Welles _fã de Griffith e de Flaherty que, talvez inconscientemente, se aproximou imensamente de uma maneira de fazer filmes que seria consagrada na Itália sob o rótulo de neo-realismo.

    Ora, muita gente considera o Cinema Novo brasileiro muito mais próximo do neo-realismo italiano do que da Nouvelle Vague francesa, por exemplo (não deixe de ler o P. S., trataremos disso por lá), e é impossível não enxergar uma relação entre "Barravento", o primeiro longa de Glauber, e "La Terra Trema: Episodio del Mare", primeira parte de uma trilogia que Lucchino Visconti (1906-1976) nunca terminou. Ambos (assim como o episódio de Welles filmado em Fortaleza) nos mostram o cotidiano de vilas de pescadores, explorados e humilhados pelas companhias que fornecem os equipamentos, ficam com a maior parte da produção e pagam uma miséria aos trabalhadores, que arriscam a vida no mar todos os dias. O tom dos discursos das personagens principais de ambas as obras (no de Glauber, temos Antônio Pitanga que, na época, ainda assinava Antônio Sampaio; no do "conde vermelho", todo o elenco é simplesmente creditado como "pescadores sicilianos") é claramente marxista.

    A diferença que mais me chamou a atenção entre esses dois filmes é que o de Visconti (com um belo e justificado uso da narração com voz over) se limita a mostrar, quase melodramaticamente, a dura e triste vida de uma família de pescadores que tenta se desvencilhar da exploração capitalista. O de Glauber concentra-se em atacar a religião, denunciando que o misticismo é usado para controlar o povo, que, por atribuir tudo ao destino divino, torna-se submisso. "Preto e pobre precisa largar a religião e partir pra luta", deixa bem claro Firmino, a personagem de Pitanga. Visconti, curiosamente, ignora completamente a religiosidade em seu filme. Ambos são ótimos, ambos devem ser vistos.

    Não me lembro de Walter Salles ter se pronunciado sobre o neo-realismo ou o Cinema Novo em alguma entrevista ou texto (o Fernando Meirelles, pelo que ouvi dizer, não gosta muito deles), mas é célebre o engajamento do homem com o gênero documentário. Em seu recente "Diários de Motocicleta", Salles se inspirou nos trabalhos de um fotógrafo peruano (não consigo me lembrar de seu nome e não consegui encontrá-lo no Gúgou), deixando isto bem claro ao inserir várias imagens em preto-e-branco em seu longa, tentando reproduzir tais trabalhos. Nos créditos finais, desta vez por meio de fotografias e da aparição do homem que inspira o companheiro do protagonista, também faz questão de mostrar que a história que narrou é uma reconstituição de fatos, registrados em dois livros de memórias.

    Assisti a este filme (após entrar na sala errada e ver o final de "Scooby-Doo 2"... _só havia um garoto na sala, uma sessão particular em pleno shopping Higienópolis!!!) acompanhado de meu amigo Julito, filho de argentino, que não só é fã do Salles como conhece boa parte das regiões mostradas no filme. Como se isto não bastasse, seu avô foi mineiro em Potosí _e o encontro do jovem Guevara com os mineiros marxistas o emocionou bastante. Mas eu, confesso (mas sem aquela culpa cristã), não cheguei nem perto de me emocionar tanto com o filme, embora algumas passagens sejam realmente impactantes, como a comparação entre a Machu Picchu dos incas e a Lima dos "incapazes"...

    Também confesso que não achei o melhor filme do Salles, ao contrário do que muita gente anda dizendo por aí. Tanto "Central do Brasil" como "Abril Despedaçado" (este último pede por uma revisão) me parecem melhores, mais bem-construídos e poderosos _não vi "O Primeiro Dia", e "Terra Estrangeira", que muita gente defende, me obrigou a abandoná-lo no meio, estava insuportável, horrível mesmo). Mas os atores estão muito bem (em especial De La Serna), algumas canções da trilha são deliciosas e, mais do que tudo, o filme tem sua razão de existir pelos problemas que relata. Não se trata necessariamente de uma defesa de Che (pelo menos, espero que não), considerado um herói quase santo por uns, um facínora diabólico por outros; uma das coisas que mais me agradou, no filme, foi justamente ele ter sido encarado como um ser humano normal, repleto de fraquezas, embora irredutível em sua honestidade. E aquela cena no Amazonas, o que vocês acharam? É piegas ou não?

    Aconteceu que, um dia após eu ter visto o longa do Salles (que ficou pequeeeno, em comparação), finalmente consegui assistir a um filme que há muito tempo eu queria ver: "25" (1977), documentário ético, poético e revolucionário em mais de um sentido, dirigido por Celso Luccas (que estava presente na sessão) e por José Celso Martinez Corrêa _mais conhecido por seu brilhante trabalho no Teatro Oficina, atualmente administrado pela minha também brilhante amiga Paulitcha, a mãe do Tomás e do Léo (trata-se do segundo filme da dupla, que, anteriormente, havia feito "O Parto", documentário sobre a Revolução dos Cravos, marco final do regime salazarista _aliás, amigos portugueses que porventura passarem os olhos por aqui podem nos informar melhor a respeito).

    O número do título é a data da independência de Moçambique, país que virou música de Bob Dylan e que se separou de Portugal em junho de 1975, após dez anos de guerrilha. A primeira parte do filme é simplesmente genial, ao apostar num cinema mais poético do que narrativo (ao contrário de muita gente metida a entendedor de cinema por aí _uma corja de chatos, ignorantes e arrogantes, para usar expressões eufemísticas e gentis_, não acho que um seja necessariamente melhor do que outro) para narrar a história recente dos dois países, fazendo uma sutil ponte com a história do nosso Brasil, também ex-colônia portuguesa, que também ansiava, novamente, por liberdade. Minha amiga Lili (a embaixadora do hip hop cubano), a quem reencontrei por lá, só começou a curtir o filme em seus dois terços finais, quando a narrativa se torna contínua e, usando de farto material de arquivo aliado à captação das imagens quentes da época, documenta o evento. Um filme indispensável, que deveria ter maior circulação, ser passado nas escolas etc. Saí do cinema gostando ainda mais do Zé Celso... Ah, e antes de "25", pudemos assistir a "Aruanda", do Linduarte Noronha _um dos documentários-chave ligados ao Cinema Novo, é um filme que lembra muito "Nanook..."... Perceberam como tudo está interligadíssimo?

    Outro filme que finalmente pode ser visto pelos brasileiros é o célebre "Di Cavalcanti Di Glauber" (ou simplesmente "Di", como foi apelidado), a fantástica homenagem de Glauber Rocha a seu amigo Emiliano Di Cavalcanti, grande pintor. E o impressionante do filme é justamente o texto, narrado por Glauber; quem diria, a coisa mais importante em um filme sobre um pintor é o som! Claro que há imagens interessantes, a começar pelo cadáver de Di no caixão (tão terrível quanto necessário, vemos a morte cara a cara) e pela aparição de Antônio Pitanga (de novo, ele) em frente a algumas obras do pintor. No enterro, além do próprio Glauber acompanhando o caixão, vemos também o impagável (tenho birra com esta palavra, mas aqui me sinto obrigado a empregá-la) Joel Barcellos, o homem da cagadinha de chocolate! Uau! Este deve ser um dos poucos filmes que devem ser pirateados por uma questão de princípios.

    P. S. Mais um trecho de "Cinema: Trajetória no Subdesenvolvimento", de Paulo Emilio Salles Gomes, que complementa bem este meu texto improvisado e mal-pensado:

    "A voga do neo-realismo, logo após o término da guerra, teve conseqüências extremamente frutuosas para nós. Aconteceu que o difuso sentimento socialista que se alastrou a partir do fim dos anos 1940 envolveu muita gente de cinema e particularmente as personalidades mais criativas surgidas após o malogro do surto industrial de São Paulo. O próprio comunismo político, ortodoxo e estreito, acabou tendo uma função cultural na medida em que, por um lado, procurava, mesmo desajeitadamente, compreender a vivência dos ocupados, e, por outro, encorajava a leitura de grandes escritores membros ou simpatizantes do partido, Jorge Amado, Graciliano Ramos ou Monteiro Lobato. Esse clima intelectual e mais a prática do método neo-realista conduziriam à realização de alguns filmes do Rio e de São Paulo que glosavam artisticamente a vida popular urbana. O antigo herói desocupado da chanchada foi suplantado pelo trabalhador, mas nos espetáculos cinematográficos que essas fitas proporcionavam, os ocupados estavam muito mais presentes na tela do que na sala. Em matéria de construção dramática consistente e eficaz, essas obras deixaram longe não só a tenaz chanchada carioca, mas também os produtos mais ou menos diretos da efêmera industrialização paulista. No terreno das idéias, a contribuição que trouxeram foi ainda maior. Sem ser propriamente políticas ou didáticas, essas fitas exprimiam uma consciência social corrente na literatura pós-modernista, mas inédita em nosso cinema. Além de um vasto elenco de méritos intrínsecos, esses poucos filmes realizados por dois ou três diretores constituíram o tronco poderoso do qual se esgalhou o Cinema Novo."

    P. P. S. Em homenagem ao nosso mui querido e respeitado presidente da República (que, apesar de bêbado, não é nem um pouquinho truculento ou idiota), trecho de "Um Cinema Chamado Desejo", de Andrzej Wajda, um dos maiores cineastas da terra de Polanski, Kieslowski e Wojtila:

    "Se o diretor é um homem sensível _e se não fosse, como poderia comunicar suas 'sensações' aos outros?_, deve, dominado pelo mecanismo da produção, buscar meios de se descontrair. Em certos países, entre os quais a Polônia, o meio mais difundido é a vodca. Tem-se visto, em outros lugares, até mesmo diretores que 'criam' estimulados pelo álcool. À primeira vista, isso se apresenta de um modo mais simpático. A euforia do cineasta é contagiosa. Ri-se muito durante a filmagem. Lamentavelmente, as cenas realizadas nessa atmosfera quase não comunicam seu bom humor aos espectadores. A razão disso é bem simples.

    Vi diretores embriagados, mais raramente cinegrafistas. Encontrei até mesmo uma equipe bêbada como poloneses _mas jamais me foi dado topar com uma câmera embriagada. A objetividade da objetiva é, infelizmente, inscrita na língua. Se você pretende forçar a câmera a um olhar subjetivo, precisará concentrar sua inteligência mais objetiva para lhe impor a vontade. Somente um diretor sóbrio é capaz disso. A platéia do cinema é sóbria também. Um filme embriagado só pode ser apresentado a convidados, dando-lhes antes o que beber. Mas isso não é de nossa profissão. Deixemo-lo aos amadores, que filmam uma festa familiar em seu jardim."

    P. P. P. S. "O Iluminado". Em 30 segundos. Com coelhinhos. Aqui.

    domingo, maio 02, 2004

    Kill Bill - Vol. 1 / Era uma Vez no Oeste

    Bang, bang, he shot me down. Bang, bang, I hit the ground. Bang, bang, that awful sound. Bang, bang, my baby shot me down.

    Antes de mais nada, acho terrível essa história de lançar só meio filme. Dizem que, originalmente, “Kill Bill” teria cerca de 3h30 de duração. Ora, é mais curto do que “Era uma Vez na América” e “...E o Vento Levou” e praticamente da mesma duração de “Apocalypse Now Redux” e “Ben-Hur”. Então que #!&*%$ é essa de dividir em dois? Ainda bem que não sou mulher, senão estaria com mais raiva ainda...

    Tudo bem que o final de KB1 é tão impactante que até parece fim de penúltimo capítulo de novela da Janete Clair. Sim, quem diria, KB1, no fundo, não passa de um novelão, assim como “Cães de Aluguel” _embora, se eu me lembro bem, um tom mais sentimental, porém menos “dramático”, era o que predominava em “Jackie Brown" (taí um filme que preciso rever). A diferença é que “Kill Bill – Vol. 1” é mais “pra macho”.

    Pois, então. O Taranta é um cara muito inteligente. Espertalhão, mesmo. Ele faz filmes legais. Divertidos, mesmo. A gente sabe que vai sorrir quando vê um filme dele. E sorri, mesmo. Eu sorri várias vezes durante a primeira parte de “Kill Bill”. Cheguei a dar gargalhadas. Em dois momentos bem específicos, os mais engraçados do filme: o primeiro é a Daryl Hannah de enfermeira-pirata (aquele tapa-olho é de matar). O segundo, a piada mais genial do filme, é quando a noiva (cujo nome é dito por Bill na primeira cena do novelão _mas Tarantino é esperto e deixa tudo ambíguo) desperta do coma, olha para a linha da vida de sua mão esquerda e grita, desesperada/furiosa: “Four years!”. Esse é o tipo de sacada brilhante que vai ser lembrada no documentário de comemoração dos 30 anos de “Kill Bill”...

    O Taranta, antes de tudo, é um humorista _e ele é o primeiro a admitir. “Pulp Fiction”, o primeiro dele que vi (e o que mais se aproxima do primeiro volume de “Kill Bill”), também me fez gargalhar em dois momentos chave: um é quando Bruce Willis pega a espada de samurai (ãh? Espada? Samurai?); o outro (este me fez chorar e me doeu os músculos abdominais, de tanto rir) é quando Vincent Vega atira na cabeça de seu informante, sentado no banco de trás do carro, sem querer, fazendo aquela meleca.

    Agora, prestemos atenção em uma coisa: um tiro na cabeça é uma coisa grotesca. É talvez a maneira mais estúpida de se matar alguém. E olha que matar alguém não é bolinho, não, como bem disse o nosso amigo William Munny from Missouri, que manja muito dessas paradas. Mas o Taranta consegue fazer a gente gargalhar histericamente quando alguém leva um tiro na cabeça. É uma proeza. Diante disso, fica evidente que é preciso prestar atenção nesse garoto.

    Então, dez anos depois, ele volta com um filme muitíssimo mais trabalhado, em termos técnicos. Há um apuro infinitamente maior na cenografia, nos figurinos, na fotografia etc. Os enquadramentos são extasiantes, a trilha sonora impressiona muita gente (o que me impressionou, para falar a verdade, foram as 5, 6, 7, 8s _e eu nem sabia que eu tinha uma quedinha por japonesas roqueiras que tocam descalças...) e tudo colabora para que a gente nem preste muita atenção no enredo da tragicomédia shakespeareana/bruceleetica do quarto filme de Quentin Tarantino.

    É que Tarantino não precisa ser abertamente metido a intelectual. Ele é mais esperto do que isso. Sabe que é melhor não ter vergonha de misturar “O Poderoso Chefão”, “Alien – O Oitavo Passageiro” e “Monty Python em Busca do Cálice Sagrado” em uma mesma cena. Também sabe que bom gosto é uma coisa que não funciona tão bem no cinema. O século XXI clama por vulgaridade. E o Taranta (já falei que ele é esperto?) finge dar ao povo o que ele quer, mas joga pérolas aos porcos (sim, adoro esta imagem).

    Não, o cinema de Tarantino não é violento. “Pulp Fiction” não merece ser chamado de “Tempo de Violência”. O público de Tarantino não suportaria violência. O público de Tarantino é o mesmo de “Comichão e Coçadinha” _vocês sabem que não sou chegado em frases de efeito, mas vou abrir uma rara exceção e mandar uma, apesar de achar que bem pouca gente vai entender: o público dos filmes de Quentin Tarantino se divide em Barts e Lisas. Quem gosta de violência é quem gosta de “Elefante”. Taranta, esse cara tão esperto, abre seu “Kill Bill” com uma cena violenta. Assusta, mas depois o espectador só ganha lambida e cócega (a não ser durante o anime que conta a origem de O-Ren Ishii _talvez a personagem da vida de Lucy Liu_, que quebra impiedosamente a estética e o ritmo do filme), como aquele lindo jardim de inverno que me lembra “Cidadão Kane” e a melhor frase de todo o filme, dita pelo dono do impagável Pussy Wagon: “My name is Buck and I’m here to fuck”. Vai demorar muito pra alguém fazer uma camiseta?

    Mas, apesar de eu já ter escrito um texto considerável até aqui, acho bem difícil dizer qualquer coisa sobre meio filme. Se “Kill Bill” fosse só o volume 1, seria fácil o pior filme de Tarantino. Como não é, é preciso aguardar para fazer qualquer afirmação mais categórica. Então que venha o volume 2, quando a noiva “will be back for the final cut”.

    Vamos passar para um nível superior e olharmos para Sergio Leone, provavelmente um dos heróis do Taranta. “Once Upon a time in the West” (1968) também se configura como o máximo de apuro técnico/estético de um cineasta. Um orçamento maior, que permitiu a Leone brincar no Monument Valley, o playground de John Ford, fez a diferença. E que diferença: é o melhor western de Leone, bastante superior a “Três Homens em Conflito”, por exemplo. Dá até vontade de dizer besteiras como “trata-se de um metawestern” ou “é uma ópera da morte” ou qualquer outra redundância do tipo.

    É uma história de vingança, e aqui nem precisamos de um antigo provérbio klingon para deixar isto bem claro. Até porque demora um tempão (o filme tem 2h45 de duração, que passam voando, apesar da deliciosa lentidão da narrativa) para ficarmos sabendo quem está se vingando de quem e por quê.

    O homem sem nome da vez é Charles Bronson (a quem, por sinal, “Kill Bill – Vol. 1” é sabiamente dedicado), que perspassa todo o filme de modo sobrenatural. Seu nêmesis é, quem diria, Henry Fonda _normalmente o símbolo da integridade, Fonda interpreta um vilão tremendamente maligno e covarde, mas que, diante de um inimigo letal, demonstra respeito e honra dignos de samurai). O pivô da história é Claudia Cardinale _uma das atrizes preferidas de Lucchino Visconti, aqui no auge da beleza (aliás, porque essas belas italianas, quando envelhecem, ficam todas com cara de Sophia Loren?). Completa o time de protagonistas um bandido romântico com nome de índio, interpretado por Jason Robards (o pai de Tom Cruise em “Magnolia” _curiosidade: tanto ele quanto Fonda lutaram na Segunda Guerra Mundial, na Marinha, e voltaram condecorados). Um elenco incomum em um filme ímpar.

    O domínio que Leone tem do tempo é assombroso. A beleza dos planos (abertos ou fechados), idem. A trilha sonora de Morricone, um tema para cada um dos quatro protagonistas, é inesquecível. E os diálogos, sem nenhum pingo de verossimilhança, soam como falas de bardo: seja Bronson dizendo “dentro dos casacos havia três homens. Dentro dos homens, três balas” ou Robards aconselhando Cardinale a ir “lá fora, servir uma bebida aos homens que trabalham na ferrovia. E, se algum deles passar a mão na sua bunda, faça de conta que não foi nada; eles merecem”. Logo no espetacular início do filme (Leone sempre foi genial ao iniciar um filme), somos brindados com um diálogo absurdamente suculento: Bronson chega para o que deveria ser um encontro com um homem e se depara com três capangas armados; ao indagar sobre o cavalo que deveria levá-lo para o tal encontro, um dos homens (que, na versão original do roteiro, deveriam ser interpretados por Clint Eastwood, Lee Van Cliff e Eli Wallach, ou seja, “the good, the bad and the ugly” _pena que não rolou) responde, ironicamente: “Parece que estamos com um cavalo a menos"; Bronson, impassível como um fantasma, retruca: “Parece que vocês estão com dois cavalos a mais”. Rú!

    Fora toda a beleza e toda a diversão, tem gente que ainda vê no filme implicações políticas, embora não tão claras como em filmes de Sergio Corbucci ou Damiano Damiani. Mas a gente gosta de ver críticas ao capitalismo em tudo quanto é lugar (menos nos filmes do Taranta, né?), então deixa o menino brincar!

    P. S. O Tarantino até pode ser foda. O Leone é obviamente foda. Mas quem também é foda, já falei e vou repetir, é o Roger Corman. Quando ele filma com o Charles Bronson (que está longe de ser o mero brucutu retratado nos filmes dos anos 80 em diante), então, sai de baixo. “Machine-Gun Kelly” (1958) é um policial invulgar e interessantíssimo, mas não posso falar muito sobre ele sem estragar as surpresas que o filme traz. Trate de assistir, depois venha me dizer se não é uma pequena maravilha ou se eu sou só mais um paga-pau de filmes que quase ninguém que se considera "normal" viu.

    P. P. S. Falando em coisas assombrosas e fascinantes, não deixem de ler o impressionante artigo “Citizen Kubrick” _o nome já diz tudo!

    P. P. P. S. Pra variar, segue um trechinho (inicial) de “Cinema: Trajetória no Subdesenvolvimento”, talvez o mais importante ensaio já escrito sobre o cinema brasileiro. A reflexão feita aqui é de importância capital, não deixe de ler! O autor é o grande Paulo Emilio Salles Gomes, a data é 1973 (ano da morte do Bruce Lee):

    “O cinema norte-americano, o japonês e, em geral, o europeu, nunca fora subdesenvolvidos, ao passo que o hindu, o árabe ou o brasileiro nunca deixaram de ser. Em cinema, o subdesenvolvimento não é uma etapa, um estágio, mas um estado: os filmes dos países desenvolvidos nunca passaram por essa situação, enquanto os outros tendem a se instalar nela. O cinema é incapaz de encontrar dentro de si próprio energias que lhe permitam escapar à conjuntura do subdesenvolvimento, mesmo quando uma conjuntura particularmente favorável suscita uma expansão na fabricação de filmes.

    No caso da Índia, com uma produção das maiores do mundo. As nações hindus possuem culturas próprias de tal maneira enraizadas que criam uma barreira aos produtos da indústria cultural do Ocidente, pelo menos como tais: os filmes americanos e europeus atraíam moderadamente o público potencial, revelando-se incapazes de construir por si um mercado. Abriu-se assim uma oportunidade para os ensaios de produção local que durante décadas não cessou de aumentar e em função da qual teceu-se a rede comercial da exibição. Teoricamente a situação era ideal: uma nação ou um grupo de nações com cinema próprio. Tudo isso ocorria, porém, num país subdesenvolvido, colonizado, e essa atividade cultural aparentemente tão estimulante, na realidade refletia e aprofundava um estado cruel de subdesenvolvimento. (...)

    No Japão, que não conheceu o tipo de relacionamento exterior que define o subdesenvolvimento, o fenômeno cinematográfico foi totalmente diverso. Os filmes estrangeiros conquistaram de imediato uma imensa audiência e foram, de início, o estímulo principal na estruturação do mercado consumidor do país. Essa produção de fora era, no entanto, por assim dizer, ‘japonizada’ pelos benshis _os artistas que comentavam oralmente o desenrolar dos filmes mudos_, que logo se transformaram no principal atrativo do espetáculo cinematográfico. Na verdade, o público japonês também nunca aceitou o produto cultural estrangeiro tal qual, isto é, os filmes mudos apenas com os letreiros traduzidos. A produção nacional, ao se desenvolver, não encontrou dificuldades em predominar, principalmente depois da chegada do cinema falado, que dispensou a atuação dos benshis. Diferentemente do que ocorreu na Índia, o cinema japonês foi feito com capitais nacionais e se inspirou na tradição, popularizada mas direta, do teatro e da literatura do país.”

    P. P. P. P. S. Last, but least: me rendi ao MSN Messenger; o e-mail é o mesmo exibido neste site. Quem quiser bater boca, que se arrisque. Bill Gates venceu de novo, raios!

    Na platéia