A gruta é mais extensa do que a gruta

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    segunda-feira, maio 17, 2004

    Barravento / A Terra Treme / Diários de Motocicleta / 25 / Di

    You let me love you till I was a failure... Your beauty on my bruise like iodine.

    Estou gripado, entupido de coisas para fazer. Nem acredito que arranjei tempo para escrever este texto... Bom, vamos lá, sem mais delongas, porque não sou homem de ficar jogando conversa fora, acredito que a concisão é uma virtude e não me agrada nem um pouquinho de nada ficar desperdiçando o tempo das outras pessoas, é por isso que prefiro ir direto ao assunto, em vez de me limitar a encher este espaço maravilhoso e democrático de letrinhas inúteis, concordam comigo? Então, tá.

    Quando eu era um jovem mancebo de 12 anos, a TV Cultura de São Paulo (na época em sua melhor fase, presidida pelo Roberto Muylaert, pai da diretora de "Durval Discos") promoveu um ciclo com filmes de Glauber Rocha. Os mesmos de sempre: "Deus e o Diabo na Terra do Sol", "Terra em Transe", "O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro" e "Barravento". Leitor compulsivo (como era muito jovem, ainda não havia sido subjugado pela paixão pelas mulheres _ou seja, tinha muito mais tempo para outras atividades), obviamente já tinha bastante informação sobre Glauber, mas nunca tinha visto um filme do feladaputa. Pois vi os quatro e caí de quatro. Bom bragarái.

    Agora, em 2004, o Canal Brasil também inventa de fazer um ciclo Glauber Rocha e passa os mesmos quatro filmes (nada de "Câncer", "Cabezas Cortadas", "Claro", "Der Leone Have Sept Cabeças" etc.), mais "A Idade da Terra", que não consegui terminar de ver. Aproveitei para rever os dois que tinha gostado menos, "O Dragão..." e "Barravento". Muito mais crítico e menos deslumbrado do que quando tinha 12 anos, me surpreendi ao gostar ainda mais dos filmes, em especial da continuação da saga de Antônio das Mortes.

    Mas "Barravento" (1962) me chamou a atenção por que havia revisto, há pouco, os restos de "It's All True", do nosso amigo Orsie. Como o filme nunca foi finalizado, e as latas ficaram "perdidas" até a metade da década de 80, é lógico que Glauber (1938-1981) não viu o maravilhoso trabalho de Welles _fã de Griffith e de Flaherty que, talvez inconscientemente, se aproximou imensamente de uma maneira de fazer filmes que seria consagrada na Itália sob o rótulo de neo-realismo.

    Ora, muita gente considera o Cinema Novo brasileiro muito mais próximo do neo-realismo italiano do que da Nouvelle Vague francesa, por exemplo (não deixe de ler o P. S., trataremos disso por lá), e é impossível não enxergar uma relação entre "Barravento", o primeiro longa de Glauber, e "La Terra Trema: Episodio del Mare", primeira parte de uma trilogia que Lucchino Visconti (1906-1976) nunca terminou. Ambos (assim como o episódio de Welles filmado em Fortaleza) nos mostram o cotidiano de vilas de pescadores, explorados e humilhados pelas companhias que fornecem os equipamentos, ficam com a maior parte da produção e pagam uma miséria aos trabalhadores, que arriscam a vida no mar todos os dias. O tom dos discursos das personagens principais de ambas as obras (no de Glauber, temos Antônio Pitanga que, na época, ainda assinava Antônio Sampaio; no do "conde vermelho", todo o elenco é simplesmente creditado como "pescadores sicilianos") é claramente marxista.

    A diferença que mais me chamou a atenção entre esses dois filmes é que o de Visconti (com um belo e justificado uso da narração com voz over) se limita a mostrar, quase melodramaticamente, a dura e triste vida de uma família de pescadores que tenta se desvencilhar da exploração capitalista. O de Glauber concentra-se em atacar a religião, denunciando que o misticismo é usado para controlar o povo, que, por atribuir tudo ao destino divino, torna-se submisso. "Preto e pobre precisa largar a religião e partir pra luta", deixa bem claro Firmino, a personagem de Pitanga. Visconti, curiosamente, ignora completamente a religiosidade em seu filme. Ambos são ótimos, ambos devem ser vistos.

    Não me lembro de Walter Salles ter se pronunciado sobre o neo-realismo ou o Cinema Novo em alguma entrevista ou texto (o Fernando Meirelles, pelo que ouvi dizer, não gosta muito deles), mas é célebre o engajamento do homem com o gênero documentário. Em seu recente "Diários de Motocicleta", Salles se inspirou nos trabalhos de um fotógrafo peruano (não consigo me lembrar de seu nome e não consegui encontrá-lo no Gúgou), deixando isto bem claro ao inserir várias imagens em preto-e-branco em seu longa, tentando reproduzir tais trabalhos. Nos créditos finais, desta vez por meio de fotografias e da aparição do homem que inspira o companheiro do protagonista, também faz questão de mostrar que a história que narrou é uma reconstituição de fatos, registrados em dois livros de memórias.

    Assisti a este filme (após entrar na sala errada e ver o final de "Scooby-Doo 2"... _só havia um garoto na sala, uma sessão particular em pleno shopping Higienópolis!!!) acompanhado de meu amigo Julito, filho de argentino, que não só é fã do Salles como conhece boa parte das regiões mostradas no filme. Como se isto não bastasse, seu avô foi mineiro em Potosí _e o encontro do jovem Guevara com os mineiros marxistas o emocionou bastante. Mas eu, confesso (mas sem aquela culpa cristã), não cheguei nem perto de me emocionar tanto com o filme, embora algumas passagens sejam realmente impactantes, como a comparação entre a Machu Picchu dos incas e a Lima dos "incapazes"...

    Também confesso que não achei o melhor filme do Salles, ao contrário do que muita gente anda dizendo por aí. Tanto "Central do Brasil" como "Abril Despedaçado" (este último pede por uma revisão) me parecem melhores, mais bem-construídos e poderosos _não vi "O Primeiro Dia", e "Terra Estrangeira", que muita gente defende, me obrigou a abandoná-lo no meio, estava insuportável, horrível mesmo). Mas os atores estão muito bem (em especial De La Serna), algumas canções da trilha são deliciosas e, mais do que tudo, o filme tem sua razão de existir pelos problemas que relata. Não se trata necessariamente de uma defesa de Che (pelo menos, espero que não), considerado um herói quase santo por uns, um facínora diabólico por outros; uma das coisas que mais me agradou, no filme, foi justamente ele ter sido encarado como um ser humano normal, repleto de fraquezas, embora irredutível em sua honestidade. E aquela cena no Amazonas, o que vocês acharam? É piegas ou não?

    Aconteceu que, um dia após eu ter visto o longa do Salles (que ficou pequeeeno, em comparação), finalmente consegui assistir a um filme que há muito tempo eu queria ver: "25" (1977), documentário ético, poético e revolucionário em mais de um sentido, dirigido por Celso Luccas (que estava presente na sessão) e por José Celso Martinez Corrêa _mais conhecido por seu brilhante trabalho no Teatro Oficina, atualmente administrado pela minha também brilhante amiga Paulitcha, a mãe do Tomás e do Léo (trata-se do segundo filme da dupla, que, anteriormente, havia feito "O Parto", documentário sobre a Revolução dos Cravos, marco final do regime salazarista _aliás, amigos portugueses que porventura passarem os olhos por aqui podem nos informar melhor a respeito).

    O número do título é a data da independência de Moçambique, país que virou música de Bob Dylan e que se separou de Portugal em junho de 1975, após dez anos de guerrilha. A primeira parte do filme é simplesmente genial, ao apostar num cinema mais poético do que narrativo (ao contrário de muita gente metida a entendedor de cinema por aí _uma corja de chatos, ignorantes e arrogantes, para usar expressões eufemísticas e gentis_, não acho que um seja necessariamente melhor do que outro) para narrar a história recente dos dois países, fazendo uma sutil ponte com a história do nosso Brasil, também ex-colônia portuguesa, que também ansiava, novamente, por liberdade. Minha amiga Lili (a embaixadora do hip hop cubano), a quem reencontrei por lá, só começou a curtir o filme em seus dois terços finais, quando a narrativa se torna contínua e, usando de farto material de arquivo aliado à captação das imagens quentes da época, documenta o evento. Um filme indispensável, que deveria ter maior circulação, ser passado nas escolas etc. Saí do cinema gostando ainda mais do Zé Celso... Ah, e antes de "25", pudemos assistir a "Aruanda", do Linduarte Noronha _um dos documentários-chave ligados ao Cinema Novo, é um filme que lembra muito "Nanook..."... Perceberam como tudo está interligadíssimo?

    Outro filme que finalmente pode ser visto pelos brasileiros é o célebre "Di Cavalcanti Di Glauber" (ou simplesmente "Di", como foi apelidado), a fantástica homenagem de Glauber Rocha a seu amigo Emiliano Di Cavalcanti, grande pintor. E o impressionante do filme é justamente o texto, narrado por Glauber; quem diria, a coisa mais importante em um filme sobre um pintor é o som! Claro que há imagens interessantes, a começar pelo cadáver de Di no caixão (tão terrível quanto necessário, vemos a morte cara a cara) e pela aparição de Antônio Pitanga (de novo, ele) em frente a algumas obras do pintor. No enterro, além do próprio Glauber acompanhando o caixão, vemos também o impagável (tenho birra com esta palavra, mas aqui me sinto obrigado a empregá-la) Joel Barcellos, o homem da cagadinha de chocolate! Uau! Este deve ser um dos poucos filmes que devem ser pirateados por uma questão de princípios.

    P. S. Mais um trecho de "Cinema: Trajetória no Subdesenvolvimento", de Paulo Emilio Salles Gomes, que complementa bem este meu texto improvisado e mal-pensado:

    "A voga do neo-realismo, logo após o término da guerra, teve conseqüências extremamente frutuosas para nós. Aconteceu que o difuso sentimento socialista que se alastrou a partir do fim dos anos 1940 envolveu muita gente de cinema e particularmente as personalidades mais criativas surgidas após o malogro do surto industrial de São Paulo. O próprio comunismo político, ortodoxo e estreito, acabou tendo uma função cultural na medida em que, por um lado, procurava, mesmo desajeitadamente, compreender a vivência dos ocupados, e, por outro, encorajava a leitura de grandes escritores membros ou simpatizantes do partido, Jorge Amado, Graciliano Ramos ou Monteiro Lobato. Esse clima intelectual e mais a prática do método neo-realista conduziriam à realização de alguns filmes do Rio e de São Paulo que glosavam artisticamente a vida popular urbana. O antigo herói desocupado da chanchada foi suplantado pelo trabalhador, mas nos espetáculos cinematográficos que essas fitas proporcionavam, os ocupados estavam muito mais presentes na tela do que na sala. Em matéria de construção dramática consistente e eficaz, essas obras deixaram longe não só a tenaz chanchada carioca, mas também os produtos mais ou menos diretos da efêmera industrialização paulista. No terreno das idéias, a contribuição que trouxeram foi ainda maior. Sem ser propriamente políticas ou didáticas, essas fitas exprimiam uma consciência social corrente na literatura pós-modernista, mas inédita em nosso cinema. Além de um vasto elenco de méritos intrínsecos, esses poucos filmes realizados por dois ou três diretores constituíram o tronco poderoso do qual se esgalhou o Cinema Novo."

    P. P. S. Em homenagem ao nosso mui querido e respeitado presidente da República (que, apesar de bêbado, não é nem um pouquinho truculento ou idiota), trecho de "Um Cinema Chamado Desejo", de Andrzej Wajda, um dos maiores cineastas da terra de Polanski, Kieslowski e Wojtila:

    "Se o diretor é um homem sensível _e se não fosse, como poderia comunicar suas 'sensações' aos outros?_, deve, dominado pelo mecanismo da produção, buscar meios de se descontrair. Em certos países, entre os quais a Polônia, o meio mais difundido é a vodca. Tem-se visto, em outros lugares, até mesmo diretores que 'criam' estimulados pelo álcool. À primeira vista, isso se apresenta de um modo mais simpático. A euforia do cineasta é contagiosa. Ri-se muito durante a filmagem. Lamentavelmente, as cenas realizadas nessa atmosfera quase não comunicam seu bom humor aos espectadores. A razão disso é bem simples.

    Vi diretores embriagados, mais raramente cinegrafistas. Encontrei até mesmo uma equipe bêbada como poloneses _mas jamais me foi dado topar com uma câmera embriagada. A objetividade da objetiva é, infelizmente, inscrita na língua. Se você pretende forçar a câmera a um olhar subjetivo, precisará concentrar sua inteligência mais objetiva para lhe impor a vontade. Somente um diretor sóbrio é capaz disso. A platéia do cinema é sóbria também. Um filme embriagado só pode ser apresentado a convidados, dando-lhes antes o que beber. Mas isso não é de nossa profissão. Deixemo-lo aos amadores, que filmam uma festa familiar em seu jardim."

    P. P. P. S. "O Iluminado". Em 30 segundos. Com coelhinhos. Aqui.

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