A gruta é mais extensa do que a gruta

    follow me on Twitter
    Mostrando postagens com marcador Jacques Rivette. Mostrar todas as postagens
    Mostrando postagens com marcador Jacques Rivette. Mostrar todas as postagens

    quinta-feira, junho 04, 2009

    Quando Hitchcock não era mestre

    Aproveitei uma rara folga e visita aos meus pais no interior para finalmente estrear a caixa de DVDs com quase todos os filmes da fase inicial inglesa do nosso amigo Alfred que ganhei do meu irmão. Deu para ver quatro filmes mudos que eu ainda não conhecia e também para ter mais claro que demorou anos e anos para o cineasta se tornar o propalado "mestre do suspense" _se ele tivesse nascido na época em que morreu, talvez nunca tivesse chegado a lugar algum. Esses seus filmes silenciosos compõem um conjunto de romances sem nada de muito especial, dentro daquele contexto de produção industrial da era dos estúdios _do qual o diretor nunca saiu.

    "Champagne" é uma comédia romântica bastante agradável, ingênua e previsível. É o mais bem-humorado desses filmes As graças se destacam, como o anel que não serve direito e vai parar em um dedão, as marcas de farinha num casaco após um abraço e a reentrada da protagonista (Betty Balfour, não muito bonita, mas muito expressiva) numa festa no estilo meio "A Moreninha"... O Ailton, que faz peregrinação pela fase inglesa do Hitch, não gostou muito e preferiu "The Farmer's Wife", adaptação de um texto teatral que nada mais é do que outra comédia romântica _e com muito pouco a ver com a obra madura do inglês. O enredo é imensamente raso e previsível (ainda mais do que em "Champagne" _sendo que aqui o capricho com a fotografia é bem menor), como se fosse a versão miniatura de uma novela. Os bons momentos se devem em especial à qualidade dos raros diálogos, com piadas que funcionam. Mas o filme é uma bobagenzinha esquecível,não se destaca entre outros filmes da época.

    "Easy Virtue" é outra adaptação teatral (desta vez de Noel Coward) e também uma história de amor, mas desta vez o humor fica de fora. Dos três filmes de 1928 do diretor, é o que mais se encaixaria com seus filmes posteriores, porque pelo menos há um assassinato e cenas em tribunais. Mas não demora muito a se tornar um drama, mais uma vez protagonizado por uma mulher, que vai ficando cada vez mais triste até desaguar num final de certa forma implacável. Mas é também pouco memorável _tanto que, em seu famoso livro de entrevistas, François Truffaut confessa que não o viu. E Monsieur Hitchcock sempre fez questão de reclamar da última fala do filme, que é bem melodramática.

    E "The Manxman", aqui chamado de "O Ilhéu", fecha o ciclo (dos filmes mudos dele que ainda existem, faltam apenas "The Pleasure Garden" e "Downhill", que não estão na caixa de DVDs). Mais uma vez, temos uma história de amor simples e de resolução não muito surpreendente. O conflito é bem folhetinesco, um triângulo amoroso envolvendo dois grandes amigos (um deles é Carl Brisson, o One Round Jack de "The Ring") e uma bela loira (a "polaquinha" Anny Ondra, de "Blackmail"). Apesar de tudo, o filme é bonito e vale a pena. Mas quem é fã de Hitchcock em sua fase áurea não vai necessariamente se interessar por estes filmes.

    Coincidentemente, fui convidado para escrever alguma bobagem sobre "The 39 Steps", no momento meu filme preferido do diretor nesta fase inglesa (alguns expressaram preferência por "The Lady Vanishes", que não é tão bom), no contexto do ranking dos anos 1930 da Liga. Cinco dos meus escolhidos entraram no top 20 e outros cinco de 21 a 50.

    ***

    Falando em comédias românticas, que delícia é "Kiss Me Stupid", que Billy Wilder e seu parceiro de roteiro, I. A. L. Diamond, criaram também a partir de uma peça de teatro. É uma grande comédia de erros (que demora um pouco para engrenar, mas depois vai de vento em popa), extremamente sexual, cheia de trocadilhos ("If it weren't for Venetian blinds, it'd be curtains for us" é um dos muitos exemplos), ironias e frases de duplo sentido antológicas (o que me faz lembrar de "O Esporte Favorito dos Homens"). E também funciona, à moda de Frank Tashlin, como ótima crônica do seu tempo (a exemplo de seu "Crepúsculo dos Deuses", Wilder volta a ser inclemente com o mundo do show business e faz com Dean Martin algo muito parecido com o que ele tinha feito com Gloria Swanson), inclusive com umas três ou quatro piadas em cima dos Beatles. O elenco é excelente, com Dean Martin interpretando sua persona fílmica, Kim Novak em uma de suas melhores performances (sexy, engraçada e tocante ao mesmo tempo), Felicia Farr, bastante adequada em um papel originalmente escrito para Marilyn Monroe (que talvez ficasse melhor no papel de Polly The Pistol) e Ray Walston como o protagonista, que se sai bem num tremendo desafio, o de substituir o ator original, Peter Sellers, que teve de sair do projeto após um dos seus vários ataques cardíacos.

    E longe de ser tão bom, mas também gostoso de assistir, é "Sex and the Single Girl" _que me lembre, o único filme de Richard Quine que vi até o momento. A princípio parece que vai ser uma pouco memorável comédia romântica de erros sessentista, mas o filme cresce e traz vários momentos engraçados (além de uma longa e antológica sequência, a da perseguição na rodovia _com direito a contramão e pretzels). O elenco de primeira aproveita para relaxar e criar ótimos momentos, como Henry Fonda reconhecendo mulheres pelas pernas e Lauren Bacall alternando extremos como megera e mulher amorosa. Tony Curtis (quase numa espécie de versão cômica e romântica de sua personagem em "A Embriaguez do Sucesso") e Natalie Wood fazem várias referências engraçadas a Jack Lemmon, com quem trabalhariam poucos meses depois em "The Great Race".

    Mas a obra-prima vista desde o texto passado é mesmo "La Religieuse", de Rivette. Enquanto a Nouvelle Vague tinha seus anos de ouro, ele não filmava: levou seis anos até lançar o sucessor de "Paris Nous Appartient", adaptando um romance de Diderot que ele já havia levado ao teatro. Estrelado por Anna Karina, é rigoroso e sóbrio, de planos abertos e emoção contida. E cresce muito em um de seus últimos atos (com a participação marcante da sueca Liselotte Pulver), quando se torna provavelmente o mais belo "filme gay" já feito. Coroado com um final belo e impactante, mesmo sendo previsível.

    ***

    A esta altura, "Gran Torino" foi comentado à exaustão, então só vou citar duas ou três coisas: assim como "Million Dollar Baby" (que me parece superior), é bastante católico. São abordados temas como confissão, morte, racismo e armas, nada que dê para aprofundar sem "spoilers". Mas vale a pena citar a que provavelmente é a cena cômica do ano e que não vi comentada em nenhum outro texto: o velho vizinho ranzinza vai tentar ensinar seu pupilo descendente de asiáticos a "falar como um homem", levando-o a um barbeiro boca suja (John Carroll Lynch, ótimo). É o tipo de coisa que quem é pai ou é filho sabe reconhecer como muito especial.

    Sempre que eu vejo um filme adaptado de um livro que já li, é quase inevitável que me decepcione (e entendo que isso aconteça com quem leu o roteiro de "A Volta do Regresso" _um filme teimoso que deve passar de novo em São Paulo e no Rio, antes de estrear na TV_, embora também entenda que isso aconteça com quem também não o leu). No caso de "Entre les Murs", isso acontece, mas de uma forma distinta: o grande problema nem é do Cantet, mas do Bégaudeau, que não escreveu um romance e sim um roteiro (o livro é só rubrica e diálogos, bem chatinho; pede para ser filmado porque não é boa literatura, não é um texto admirável). Ah, e a tradução brasileira é nojenta (o que não é novidade; as editoras pagam uma merreca pornográfica e quem é suficientemente bom para o serviço normalmente trabalha com coisa melhor, então os parcos leitores neste pasto têm de se virar com essas versões revoltantes, estupidamente literais, como as dublagens de TV). O livro, embora obviamente resumido, é seguido bem de perto; dessa forma, como não há ousadia na adaptação, o filme cai no meu conceito. Mas pelo menos dá para destacar uma das últimas cenas, que alguns podem considerar talvez a mais óbvia e menos sutil do filme, como geradora de alguma emoção mais concentrada, ao mesmo tempo que faz um questionamento premente e aparentemente infrutífero.

    Já o piorzinho entre os filmes recentes que vi é "[Rec]", de Jaume Balagueró e Paco Plaza, que aparentemente fez sucesso suficiente para ser refilmado nos Estados Unidos (estrelado pela "Emily Rose" e irmã magrela do "Dexter", aparentemente fazendo carreira de "scream queen") e também deve ter agradado uma boa parte dos fãs de filmes de terror, mas comigo não funcionou. É tremendamente derivativo, mas sem chegar aos pés de qualquer filme do Romero ou de "A Bruxa de Blair" (para citar as obras-primas) ou mesmo do "Extermínio" do Danny Boyle (do qual não gostei) ou de "O Silêncio dos Inocentes" (dá para ver que ele chupa uma série de sucessos anteriores). O filme termina quando estava começando a ficar interessante (vem uma sequência por aí, mas não estou otimista), o que ajuda a deixá-lo ainda mais decepcionante. E também peca pela imensa falta de ritmo, o tédio se instala várias vezes... Para falar a verdade, a melhor parte mesmo do filme são seus primeiros dez minutos, quando há alguma graça (praticamente sustentada pela boa atriz Manuela Velasco).

    ***

    Falta-me tempo para escrever e, creio, falta saco a muita gente para ler os textos longos para o "padrão Twitter" que saem aqui (não que eu me importe, vejam bem). Então vou apenas citar o que andei vendo (filmes e séries de TV) recentemente e que deixei de comentar. Quem se interessar pode trocar ideias no nobre espaço para comentários: "Operazione Paura", "Terrore nello Spazio", "Sei Donne per l'Assassino" e "La Ragazza Che Sapeva Troppo", de Mario Bava; "Texas, Addio", de Ferdinando Baldi; "7 Women", de John Ford; "The Knack ...and How to Get It", de Richard Lester; "Bad Girls Go to Hell", de Doris Wishman; "Baby the Rain Must Fall", de Robert Mulligan; "Hatari!", de Howard Hawks, "Damages" (segunda temporada); "Putney Swope", de Robert Downey Sr., "The Velvet Underground and Nico", de Andy Warhol; "House M.D." (temporadas 4 e 5), "The Thin Red Line", de Andrew Marton; "The Wire" (primeira temporada); "Homicidal", de William Castle; "Lilith", de Robert Rossen; "X-Men Origins: Wolverine", de Gavin Hood; "The Mindscape of Alan Moore", de ??? (não anotei e não vou checar); "The Office" (temporadas 2 e 3); "Kiseichuu: kiraa pusshii", de Takao Nakano; "The Damned", de Joseph Losey; "Toute la Mémoire du Monde", de Alain Resnais, e "Les Statues Meurent Aussi", de Resnais e Chris Marker; "Nightmare", de Freddie Francis; "Rififí en la Ciudad" e "Gritos en la Noche", de Jesus Franco; "Dexter" (temporada 3); "För att inte tala om alla dessa kvinnor", de Ingmar Bergman; "Rabbits", de David Lynch.

    P.S. Internet é ferramenta. Não entro em sites da moda a não ser que descubra uma serventia para eles. Acabei de descobrir uma serventia para o Twitter (ou seja, defini o que dá para escrever em 140 toques) e acabei de entrar lá. É aqui.

    P.P.S. Mudaram a câmera de lugar, ufa. Alívio imenso de não mais aparecer na TV. Tristeza dos meus pais, que assistiam para matar a saudade.

    P.P.P.S. Assim como os textos no Estranho Encontro, vale a pena ler esta entrevista da Andrea Ormond feita pelo Marcelo Miranda.

    P.P.P.P.S. Se eu não me esquecer, nos próximos textos gostaria de citar alguns trechos do livro "Hollywood - A Meca do Cinema", de Blaise Cendrars. Ia começar pelo trabalho nos estúdios, mas esta notícia me fez escolher este outro:

    "Nunca tomo notas em viagem. Não quero cumular o espírito com uma multidão de detalhes contraditorios. Quero poder relatar somente o essencial das coisas vistas.

    Um repórter não é um simples caçador de imagens, deve saber captar as visões do espírito.

    Se seu olho deve ser tão rápido quanto a objetiva do fotógrafo, seu papel não é registrar passivamente as coisas. O espírito do autor deve reagir com agilidade, com seu temperamento de escritor, seu coração de homem.

    É nesse sentido, mas somente nesse sentido, que uma reportagem pode ser um documento sensacional, sem se perder em exageros.

    Nada é tão comovente para um jornalista que acaba de partir incógnito para o exterior quanto relatar esse mergulho numa atualidade viva, palpitante e recalcitrante, mas de significação geral, e que é o único testemunho real que podemos dar da vida do universo, esse desconhecido. É por isso que os jornais existem e são publicados a cada 24 horas.

    Não se trata de ser objetivo. É preciso tomar partido. Sem introduzir algo de seu, o jornalista jamais conseguirá transmitir essa vida atual, que é também uma visão do espírito.

    Por isso, quanto mais verdadeiro é um artigo, mais tem de parecer imaginário. De tanto se colar às coisas, o jornalista está fadado a influenciá-las, e não a decalcá-las. E é também por isso que a escrita não é uma mentira nem um sonho, mas a realidade, e talvez tudo o que jamais poderemos conhecer do real."

    P.P.P.P.P.S.

    R.I.P. Fritz

    sábado, setembro 20, 2008


    Milhem Cortaz e Vanessa Prieto em "Nas Duas Almas"

    Não posso deixar de comentar mais duas experiências recentes de exibição de trabalhos em que estou envolvido. O primeiro foi na Sessão do Comodoro passada, quando o segundo curta-metragem dirigido pelo Vebis que montei teve sua segunda exibição pública _mas agora na versão finalizada, mais curta (mas não tanto quanto eu gostaria _típico de montador). Eu tenho um nível extremo de autocrítica e é muito difícil eu gostar muito de algo que tenha feito, mas confesso que, apesar de alguma ou outra coisa no vídeo me incomodar (a não ser quando o incômodo é proposital, como na cena das meninas _ela realmente foi pensada pelo Vebis para ser irritante, e a montagem picotada foi feita para gerar este efeito), confesso que me emocionei com a cena no bar, na qual o Milhem Cortaz (excelente _e como disseram dois mestres, Carlos Reichenbach e Inácio Araújo, que muito nos honraram com suas visões, é a primeira vez em que ele aparece glamourizado, como herói romântico, e funciona) conclui que "amar deixa a gente velho" _talvez a grande fala do filme. Também fiquei muito feliz com os vários elogios à minha cena preferida, a da briga no carro, justamente a que mais desafios me apresentou na montagem. Parabéns ao Vebis, e espero que essa nossa parceria renda outros frutos _já temos projetos em vista, vamos nessa.

    (Update: Leandro Caraça também escreveu sobre "Nas Duas Almas". Perdôo ele ter errado meu nome por ele ter pedido aplausos para minha montagem, hehehe.)


    Gustavo Engracia com a camiseta que cita Humberto Mauro

    A outra foi a exibição de "A Volta do Regresso" no 6º Curta Santos, numa sala clássica da cidade, o Roxy Gonzaga _que também seguiu a onda e se tornou um multiplex. A maioria das projeções do filme tem apresentado problemas diversos _desta vez, o que me incomodou foi o estado da cópia, já bastante deteriorada. O filme agradou e recebi muitos elogios durante o debate, mas eu gostei bem menos dele. Faz dez meses que ele foi finalizado e, com a poeira baixando, fica mais claro para mim que eu gosto bastante do elenco e da trilha sonora, acho o roteiro bom (embora eu quisesse ter feito melhor e não tenha conseguido, está infinitamente acima da média do que se faz para curtas) e todo o resto deixa a desejar (talvez eu esteja sendo um tanto cruel, mas é o que sinto no momento). Mas também sinto um certo orgulho ao não conseguir negar que, apesar de todos os seus problemas, este filme realmente cumpre o papel que eu queria que ele cumprisse: o de ir na contramão de tudo que é considerado aceitável, de "bom gosto", "correto", "na moda". Enfim, ele se nega a perpetuar os dogmas do stablishment e a manter o status quo deste nicho _que, como tudo, apresenta uma série de vícios revoltantes, que induzem ao conformismo e ao pensamento único, duas pragas que atacam a arte. Mesmo assim, nos deram um prêmio, o de Melhor Som (o que é curioso, pois o som da cópia, toda arranhada, estava péssimo, com mais chiado do que vinil velho); achei estranho não existir o prêmio para roteiro, que certamente mereceríamos (o que não quer dizer que levaríamos, muito pelo contrário). Também fiquei feliz com a merecida premiação do colega Milton do Prado pela montagem do filme "Odeon" _aliás, ele também deveria ter ganhado este prêmio em Brasília, mas a atuação do júri ali foi simplesmente vergonhosa.


    ***
    Vi menos filmes do que de costume no último mês, a falta de tempo anda apertando cada vez mais. Ainda assim, vou avançando devagar e sempre nessa constante luta pela formação de repertório, infelizmente desacompanhada de uma reflexão mais aprofundada, novamente por falta de tempo. Dentre as várias belezas que vi no período, talvez a que mais tenha me impressionado é "The Savage Innocents", de Nicholas Ray, visto pela primeira vez em sua janela original. O filme se equilibra entre o didatismo para tornar palatável ao civilizado a selvageria e o registro da natureza no que ela tem de bela e terrível, sem grandes arroubos moralizantes _vemos imagens que podem ou podiam ser tabu (justamente um dos temas do filme), como um urso sendo arpoado (que abre o filme) ou a nudez da atriz francesa (sim, parisiense) Yoko Tani (que, segundo o Imdb, trabalhou no primeiro filme de Juan Bajon!). Findo este primeiro ato, temos cenas maravilhosas, como as que mostram os choques de cultura entre os esquimós idealizados do filme (em grande comunhão com a natureza, com direito a narração explicando o ciclo alimentar) com o homem branco, claramente criticado ("suas leis se tornaram maiores do que eles" é uma das frases ditas no filme) _e um final previsível e sublime. Um dos primeiros papéis de Peter O'Toole, que pediu para ter seu nome retirado dos créditos, por ter sido dublado por outro ator. Outro filme que vai fundo na crueza é "Nobi" (aqui, se não me engano, é "Fogo na Planície"), de Kon Ichikawa (que trabalhou por mais de 70 anos e viveu quase 100 _morreu em fevereiro deste ano). É impressionante não apenas por retratar a miséria da guerra (a Segunda Guerra Mundial, no front das Filipinas) ou por ser belissimamente realizado: o que me chamou a atenção foi o retrato nada heróico dos japoneses _muito diferente do registrado recentemente por Clint Eastwood em seu "Cartas de Iwo Jima" (cujo DVD está aqui em casa, sei lá quando vou revê-lo). Aqui, o que importa é sobreviver a qualquer custo: as personagens não se furtam de matar, pilhar cadáveres e partir para o canibalismo. Eiji Funakoshi (que tem um semblante bastante ocidental) está absolutamente fantástico como o malfadado Tamura; a transformação física pela qual ele passa durante o filme é impressionante. E como já fomos para o Japão, vamos emendar direto com "Akibiyori", antepenúltimo filme de Ozu. Assim como "Bom Dia" era uma variação de "Meninos de Tóquio", "Dia de Outono" está obviamente relacionado a "Pai e Filha", feito 11 anos antes (até mesmo a tradução dos títulos para o inglês ressalta o parentesco: se o primeiro era "Late Spring", este é "Late Autumn"). Naquele, Setsuko Hara era a filha que não queria casar para não deixar o pai sozinho; desta vez, ela é a mãe cuja filha (Yôko Tsukasa) reluta em abandonar, apesar de estar na idade de casar. O estilo único e brilhante do diretor volta a se manifestar com clareza, em um de seus filmes mais simples (no qual o conflito se apresenta bem cedo); a maneira como ele dá vida a espaços vazios, que servem de transição de tempo e espaço, é única.

    Como, na cronologia que estou seguindo (da qual me desvio algumas vezes, como fiz também neste mês, ao ver dois curtas de Man Ray, "Emak-Bakia", de 1926, e "Les Mystères du Château de Dé", de 1929, sempre muito divertidos _também vi o "Orphée" do Cocteau, de1950, para finalizar a trilogia), estou no início dos anos 1960, a França está bombando. Os maiores destaques foram "Les Bonnes Femmes" (1960), de Chabrol, e "Cléo de 5 à 7" (1962), de Varda. O primeiro, um breve acompanhamento da vida de algumas garotas que trabalham em uma loja, é grandemente dedicado a registrar a boçalidade das pessoas, em algumas cenas longas (como a da piscina), outras desconcertantes de tão ridículas (a do restaurante), outras mais irônicas (a do zoológico). Há um personagem misterioso com o qual Chabrol vai do macabro ao bizarro. Há também alguns momentos simplesmente bonitos (mas com uma atmosfera kitsch), mas nada supera a beleza das atrizes, em especial de Bernadette Lafont (lançada por Truffaut em "Les Mistons" e na ativa até hoje, mais de 150 trabalhos depois), Stéphane Audran (mulher do diretor) e Clotilde Joano (ironicamente, a que morreu jovem). O segundo é famoso por mostrar a história em tempo real (na verdade, das 17h às 18h30 _mas com momentos em que a montagem brinca com o tempo, inclusive com uma série de planos que servem como um pequeno flashback) de uma cantora que aguarda um resultado de um exame médico que pode comprovar uma grave doença. O filme abrange uma gama variada de emoções, do desespero ao humor (com um ponto alto na seqüência que homenageia os filmes mudos), passando pelo romance, pelo erotismo, pelo elogio à arte e o comentário político _e, claro, dando um bom espaço às chansons. Corinne Marchand está absolutamente maravilhosa como a protagonista, e Jean-Luc Godard aparece numa ponta como ator (há muitas outras participações especiais). Godard (além de Chabrol e Demy, mas a estes não reconheci) também aparece em "Paris Nous Appartient", de Rivette, que arma uma trama razoavelmente complexa (que envolve, basicamente, arte, política e romance), mas não a "mastiga" nem a desenvolve de maneira convencional _o que não enfraquece necessariamente o filme, mas pode afastar quem se apega mais ao enredo do que às personagens. O menos memorável dentre estes contemporâneos é "Tirez sur le Pianiste", de Truffaut, que é rápido a ponto de ser vertiginoso, confuso e entediante (apesar de curto), mas tremendamente irônico, bem-feito e cheio de mulheres bonitas (com destaque para Michèle Mercier). Algumas cenas impagáveis tornaram-se clássicas, como aquela em que Boby Lapointe canta "Framboise" (uma canção sobre um nobre tema).

    Ainda fora da língua inglesa, parei para ver, com certa tristeza, o último filme de Fritz Lang, "Die 1000 Augen des Dr. Mabuse": apesar de dar sinais de ser antiquado, é um avanço em relação a seu díptico indiano. Em ritmo muito rápido, traz uma série de clichês de filmes de espionagem (da qual Lang é mesmo pioneiro) e, novamente, um mestre do crime com uma trama maligna (cortesia do falecido Dr. Mabuse _mas é uma pena que Rudolf Klein-Rogge também já estivesse morto). E novamente voltei à Índia, para mais um filme de Satyajit Ray, "Devi": a vida de uma família se transforma após um homem sonhar que sua nora é a reencarnação da deusa Kali. Sharmila Tagore, linda, encarna divinamente a personagem. Ray registra imagens e sons (a música parece ser muito importante na cultura indiana) com invulgar beleza, é um desses grandes estetas do cinema.

    De volta aos EUA, o grande destaque mesmo é "The Hustler, o penúltimo e mais conhecido dos dez filmes que Robert Rossen dirigiu. É incrivelmente "cool" quando Paul Newman está em evidência (e sua personagem faz o que faz melhor ou pelo menos fala sobre o assunto) e fica mais pesado e desequilibrado quando Piper Laurie ganha mais destaque. Longo e desigual, ainda assim é um belo filme, com boas montagem e trilha sonora e um elenco espetacular: George C. Scott e Jackie Gleason arrebentam _a curiosidade é Jake LaMotta, o "Touro Indomável", fazendo uma ponta como bartender. Quanto a "Imitation of Life", eu queria antes ter visto a versão anterior, de Stahl, mas na falta desta fui de Sirk (seu último filme nos EUA). Embora não seja seu melhor, novamente é um poderoso melodrama focado em personagens femininas _os homens quase sempre aparecem como meros acessórios, o que não chega a incomodar, já que o oposto acontece bastante em filmes "de macho". Além do óbvio tema da maternidade, estão também colocados aqui a questão da carreira (no caso da personagem de Lana Turner) e do racismo (com uma bela atuação de Juanita Moore). Sandra Dee e Susan Kohner (outro destaque; pena que não teve longa carreira) completam o elenco principal.

    Quem também pintou de novo por aqui foi John Ford, com "The Horse Soldiers" e "Sergeant Rutledge", ambos enfocando mais uma vez o exército norte-americano no final do século XIX. O primeiro retrata ao mesmo tempo uma missão ousada do exército do Norte na Guerra de Secessão, uma discórdia entre um coronel durão (John Wayne, claro) e um médico (William Holden) e os naturais problemas causados pela presença de uma mulher (sulista) em meio à tropa. O segundo, mais cruel e político, mistura o western de cavalaria (com direito a matança de índios apaches) e o drama de tribunal, acrescido da discussão racial: Woody Strode é o sargento acusado de estupro e assassinato, e Jeffrey Hunter (o Jesus de "Reis dos Reis") é o seu defensor na corte marcial. A música e o senso de humor um tanto machista voltam a dar as caras.E também fui de Cukor, com "Let's Make Love", o penúltimo filme completo de Marilyn Monroe. O início dá a entender que vem por aí uma grande comédia, mas as coisas esfriam muito quando Yves Montand assume o papel principal. Marilyn, ótima em seu registro habitual, é a co-estrela, mas aparece bem menos do que ele e faz muita falta (parece que houve uma briga do Arthur Miller para aumentar o papel dela _não foi o suficiente). O enredo é uma bobagem completa e só vale para que vejamos alguns números musicais _mais uma vez, ambientados no teatro_ e tenhamos algumas participações especiais de estrelas como Milton Berle, Bing Crosby e Gene Kelly, interpretando a si mesmos. Mesmo assim, temos um momento antológico: a primeira cena de Marilyn, "My Heart Belongs to Daddy". E, finalmente, visto na mesma Sessão do Comodoro que apresentou o "Nas Duas Almas", "The Thief", o segundo filme de Russel Rouse, que trabalhou mais como roteirista. A proposta dele aqui é fazer um filme completamente desprovido de diálogos _ou seja, é diferente do que fazer simplesmente um filme "mudo". Inspirando-se em Fritz Lang e Hitchcock para filmar uma história de espionagem estrelada por Ray Milland (que está a cara do Gary Cooper), acaba cometendo alguns pecados, como o de ter de apelar para atuações exageradas (ou seja, voltando mesmo no tempo) e de ser um tanto desgastante _o final meio besta, mas talvez típico de uma produção já em plena paranóia da Guerra Fria, também joga um balde de água... fria. Vale destacar a belíssima Rita Gam, em seu primeiro filme, e a maravilhosa trilha sonora de Herschel Burke Gilbert.

    As séries da vez são a segunda temporada de "That '70s Show" (na qual os grandes desenvolvimentos são a perda da virgindade de Eric e Donna e o rompimento de Jackie e Kelso) e a terceira de "Prison Break", a mais curta, por causa da greve dos roteiristas. Não é de surpreender que seja a pior (até porque o plano de fuga _que já não é mais o original_ é obviamente muito menos complexo do que o primeiro). A verdade é que a série já esgotou seu potencial, e fica difícil se reinventar. O curioso é que a prisão panamenha onde a temporada se passa foi claramente inspirada no Carandiru.

    quinta-feira, novembro 08, 2007

    A esta altura do campeonato, os incautos que ousam pisar neste atoleiro já estão sabendo que aquele projeto pré-histórico, paupérrimo e ingênuo (o roteiro tem quase 5 anos...), que demorou uma eternidade para ficar pronto por motivos alheios a meus esforços e do qual eu nem sei se gosto muito, finalmente vai ter sua primeira exibição pública aqui. Sou pessimista e não espero muita coisa da experiência, mas é claro que vai ser bom estar lá _especialmente porque, no dia 24, vai rolar a estréia deste filme. No próximo texto, provavelmente conto um pouco do que rolou (se houver o que contar) e dou as datas da(s) exibição(ões) em São Paulo (às quais provavelmente não estarei presente, por obrigações familiares _ninguém mandou ser em dezembro), caso alguém queira perder seu precioso tempo. Informações que também serão divulgadas aqui.

    ***

    A Mostra de 2007 foi a mais gostosa que já freqüentei. Não que tenha sido necessariamente melhor do que outras em termos de programação, mas porque desta vez eu não peguei o vírus que me fazia, a caminho do cinema, me perguntar por que os transeuntes estavam na rua, se eles não sabiam que a Mostra estava rolando. Ou seja, não me arrebentei vendo três filmes por dia (sei que tem gente que vê mais, mas três sempre foi o meu limite), em geral era uma sessão apenas (e nem devo ter ido todos os dias). Conseqüentemente, vi menos filmes (e menos bombas) do que em anos anteriores: compareci a 14 sessões (uma delas micada, porque exibiram uma fita que não tinha o final do filme, um africano dos anos 1970 _foi a única pisada na bola da organização que presenciei). E, numa decisão que se mostrou acertadíssima, pela primeira vez me restringi somente às sessões gratuitas, que curiosamente nunca lotam, raramente atrasam e dificilmente formam filas (a exceção à esta última regra foi o filme do Miike, o que foi até bom, porque desocupou as cadeiras e permitiu que eu esperasse sentado, enquanto os paulistanos neuróticos ficavam em pé olhando para as nucas uns dos outros durante 40 minutos _se pelo menos fosse como no interior, onde as pessoas na fila se enturmam e ficam batendo papo...). Foi ótimo ter ficado longe da av. Paulista e adjacências.

    O melhor filme que vi, disparado, foi o mais recente de Jacques Rivette, "Ne Touchez Pas la Hache". Não me lembro de ter visto um retrato tão perfeito de um casal apaixonado (o homem, em especial, ganhou até de Charles Swann) em outro filme. Um clássico (Balzac é um herói) sobre um tema clássico, adaptado de forma clássica. Já o pior foi um holandês chamado "Garçom", uma mistura de "Mais Estranho do Que a Ficção" com "Conceição - Autor Bom É Autor Morto". Outros filmes que deixaram a desejar foram os novos dos Taviani e o do Youssef Chahine, dois novelões _o último é melhor porque pelo menos arrancou muitas risadas nos momentos mais "emocionantes". E "La Ragazza del Lago", o filme de estréia de Andrea Molaioli, assistente de direção de Nanni Moretti por mais de dez anos, também deixou a desejar, ao não saber dosar bem o melodrama com o policial.

    Entre os bons, mas não ótimos, figuraram o "Sukiyaki Western Django" (o pior Miike que vi, mas suficientemente divertido _não estava esperando muito mais do que isto). "Das Haus der Schlafenden Schönen", adaptação de um romance nipônico (que já havia virado filme no Japão em 1968 e em 1995) pelo ator e cineasta alemão Vadim Glowna, também no papel principal: centrado na velhice, é muito mais mórbido do que erótico, embora vejamos seis moças nuas durante boa parte de sua duração _o problema é que a trilha sonora não pára um segundo, parece coisa do Jayme Monjardim... mas a Angela Winkler está ótima. E "Vocês, os Vivos", do veterano sueco Roy Andersson, que não é moderno (lembrou algo de Monty Python e Terry Gilliam), mas tem uma visão mais realista sobre a vida e traz enquadramentos muito interessantes, com a câmera na maioria das vezes em plano de conjunto, com portas e janelas criando outros enquadramentos (a longa duração dos planos é um convite a esquadrinhar a tela em busca de discretas gags visuais e alguns ícones, como a tuba e as belas botas cor-de-rosa da groupie desiludida)... e há uma cena inacreditável e antológica: quando eu vi as suásticas na mesa, quase dei um grito.

    Finalmente, "Sombras", do macedônio Milcho Manchevski, apóia-se na "esquisiticezinha" durante boa parte do tempo, mas nunca chega a ser chato; o problema é quando o mistério é resolvido, a coisa fica bem bobinha. O que faz o filme valer a pena é a impressionante atuação de Vesna Stanojevska, em seu papel de estréia _ela é mais conhecida como harpista (!). Mas não é só isto que é impressionante: além de a atriz lembrar muito a Anecy Rocha em "As Amorosas" (meu preferido do W. H.), o filme traz uma cena de queda em fosso de elevador que me deixou tão perturbado que fui compelido a fazer algo que não costumo (pelo menos não me lembro de ter feito antes): mandei um e-mail para a atriz com uma foto da Anecy no filme do Khoury, contando sua história; não esperava resposta, mas a srta. Stanojevska não só me respondeu (muito simpática, abusando dos emoticons sorridentes e tal) como disse que também achou a semelhança "amazing".

    Encerro o capítulo "Mostra" com os documentários: "A Amada", de Arnaud Desplechin, é altamente subjetivo, mas, diferentemente de "Santiago", tem interesse extremamente restrito (é literalmente um filme caseiro). Teve gente que saiu no meio (e olha que era curto, 70 minutos). Já os dois asiáticos que vi a princípio nem pareciam documentários: "Young Yakuza", feito em Tóquio por uma equipe francesa, gerava a descrença porque, além de retratar um clã de yakuzas (e por que yakuzas iriam topar aparecer em um filme? A única condição que eles impuseram teria sido a de que nenhuma atividade violenta fosse retratada), a mise-en-scène é toda manipulada (campos e contracampos, conversas aparentemente pautadas pelo diretor etc.). O que vemos é um garoto de 20 anos, desempregado e encrenqueiro, iniciando-se num clã yakuza a pedido da mãe (!), para adquirir disciplina: basicamente, ele trabalha como empregado doméstico do chefe (que dá ótimas entrevistas), a ponto de, numa cena em que ele vê um filme de yakuzas com a mãe, ele pergunta: "Por que estes filmes nunca mostram a rotina no escritório?" (ou seja, ele lavando as xícaras de chá do chefe?). Também achei engraçado a presença de rappers japoneses, que fazem a trilha do filme: o discurso vai na linha "certo, mano, é nóis em Tóquio, miliano sobrevivendo no inferno, vida loca mil grau, passa um pano".

    E "Dong", minha primeira visita ao cinema de Zhang Ke Jia, também gerou certa desconfiança, porque o pintor retratado é mostrado somente retocando seus quadros; vendo "Plataforma", aparentemente sua obra-prima, dá para perceber que este distanciamento (inclusive nos enquadramentos _parece que a moda agora é não filmar closes) dispersivo é característica do cineasta, que cita Antonioni como sua maior influência. Pois a relação que tive com seus filmes me parece a mesma que tenho com os do italiano recém-falecido: gosto, compreendo e admiro, mas não me envolvo tanto quanto gostaria.

    ***

    Em homenagem à Deborah Kerr, fui ver um Powell/Pressburger que tinha deixado para trás, "Black Narcissus": talvez seja o filme da dupla que menos tenha gostado (não sabia o que esperar: um grupo de freiras _nenhuma delas tão encantadora quando a Ingrid Bergman no filme do McCarey_ na Índia não tinha sequer passado pela minha cabeça). Mas a beleza da fotografia em technicolor de Jack Cardiff _toda em estúdio, com pinturas matte, miniaturas e outros truques_ é extasiante, ainda mais quando são enquadradas beldades como Jean Simmons (que eu tinha visto recentemente como a Ofélia do "Hamlet" de Olivier _o Laurence, não o padeiro) e Kathleen Byron. E ainda uma frase belíssima, logo no início: "Remember, the superior of all is the servant of all".

    A câmera de Cardiff não provoca o mesmo fascínio em "Under Capricorn", o segundo filme de Hitchcock como produtor (e em cores): é atípico, um melodrama de época (obviamente muito caro) passado na Austrália; Joseph Cotten, que não gostava do filme, ficou com o papel que o diretor queria dar para Burt Lancaster, que esbanja carisma (e seus talentos como acrobata de circo, sua primeira profissão) em outro filme atípico, desta vez de Jacques Tourneur: "The Flame and the Arrow" até parece um remake do filme de Robin Hood com Errol Flynn, feito menos de 15 anos antes. Mas é uma bela diversão de "Sessão da Tarde". Já a diversão em "Annie Get Your Gun", musical que Arthur Freed produziu para a MGM, com roteiro de Sidney Sheldon e canções de Irving Berlin (incluindo o famoso tema "There's No Business Like Show Business"), que acabou sob a batuta de George Sidney (que praticamente nasceu na Broadway e se tornaria o fundador dos estúdios Hanna-Barbera) após Busby Berkeley e Judy Garland caírem fora, fica restrito às boas canções e à performance de Betty Hutton (morta em março deste ano), com destaque para a cena com os índios e a briga de casal durante um número musical. Envelheceu pessimamente (e hoje soa tremendamente machista) e é muito mal montado. Falando em machismo, vi também "Cinderella", que, apesar de bonito, também decepciona ao não avançar muito em relação a "Branca de Neve" (tanto a heroína quanto a madrasta são muito calcadas nas suas antecessoras); o alongamento da história pelo conflito entre o gato Lúcifer e a turma de ratos antropomorfizados e divertidos (e que ajudam muito mais do que a Fada Madrinha, que só aparece em uma cena) liderados pela dupla Jaq e Gus (que poderia se chamar Stan e Ollie), não é muito melhor do que podemos encontrar nos desenhos de Tom e Jerry.

    Voltando ao preto-e-branco, vi aquele que, até o momento, é o meu preferido de Jules Dassin: "Thieves' Highway". Pelo título, achei que fosse um policial, mas é ao mesmo tempo uma história pequena e bem-concentrada e um drama multifacetado (o protagonista tem complicações familiares, amorosas, financeiras etc.); me lembrou um pouco de "On the Waterfront", que vou rever em breve. E o elenco é sensacional: Richard Conte (o Barzini da série "O Poderoso Chefão", que trabalharia muito no cinema italiano), Lee J. Cobb, Valentina Cortese (de "A Noite Americana", com uma fala que se tornou história: "Aren't women wonderful?") e Millard Mitchell (que morreria pouco depois). E falando em Kazan, outro filme que parecia um policial convencional, mas não é: "Panic in the Streets", no qual mais importante do que pegar os bandidos é evitar que eles espalhem a peste que carregam, ameaçando Nova Orleans de uma epidemia. Richard Widmark é o herói, mas quem rouba a cena são os vilões Jack Palance (em seu filme de estréia, ainda assinando Walter) e Zero Mostel (em seu segundo filme, mas já tentando disfarçar a careca).

    Policiais mais clássicos mesmo foram "The Undercover Man", de Joseph H. Lewis, com Glenn Ford, e "The Asphalt Jungle", de John Huston: o primeiro é bem sóbrio e bem calcado na investigação policial; o segundo é um "filme de assalto" que gerou muitos filhos (inclusive o "The Killing" do Kubrick, também com Sterling Hayden). Ambos demoram um pouco para decolar, e o de Huston se destaca principalmente ao acompanhar as conseqüências do crime para três dos envolvidos no roubo de jóias: quem rouba (sem querer fazer trocadilho...) a cena é Sam Jaffe, cuja personagem tem os melhores diálogos e protagoniza a melhor cena, num bar de beira de estrada, vendo uma bela moça (Helene Stanley, que foi a modelo para a Cinderella no filme da Disney e a dublou cantando) dançando jazz ao som de uma jukebox. A presença de Marilyn Monroe, em um de seus primeiros papéis e na flor da juventude, é uma deliciosa surpresa _mas ela está péssima.

    Outros filmes do período que flertam com o crime: "Moonrise", um dos últimos de Frank Borzage, é uma espécie de "Crime e Castigo" que começa maravilhosamente bem (os primeiros cinco minutos são fortíssimos), mas depois adentra muito no sentimentalismo (talvez a censura da época tenha prejudicado). Há uma bela cena com Rex Ingram cantando um tenebroso blues. Do mesmo ano (1948), vi o curiosíssimo noir "Pitfall", do húngaro Sâsvari Farkasfawi Tóthfalusi Toth Endre Antai Mihály, felizmente mais conhecido como Andre de Toth (um dos caolhos de Hollywood): a esposa (Jane Wyatt, a mãe de "Papai Sabe Tudo") é muito mais bonita do que a femme fatale; a femme fatale não é lá muito fatal; a vítima também não é tão vítima; enfim, um noir que não é tão noir assim... E "The Reckless Moment", outro espetáculo de movimentação de câmera de Max Öphuls, que conta com a beleza adicional de Geraldine Brooks. Joan Bennett (bem diferente e mais feia do que nos filmes que fez com Fritz Lang) está neste e também em "Father of the Bride", filme não-musical de Vincente Minnelli que não se decide entre comédia e o drama de um pai (Spencer Tracy) que vê a filha mais velha (Elisabeth Taylor, adolescente) abandonando o ninho; fez muito sucesso, mas não considero de destaque na carreira de nenhum dos envolvidos. E falando em dramas familiares envolvendo pai e filha e casamentos, vi também o próprio "Pai e Filha", de Yasujiro Ozu. É mais do mesmo... mas que mesmo!

    Não tão bom é "Les Enfants Terribles", Terceiro filme de Jean-Pierre Melville, adaptação de um texto de Jean Cocteau (a voz do próprio narra o filme): é bem árido e fechado, provavelmente funcionava melhor como literatura. E voltei brevemente aos anos 1930 para recuperar "Bluebeard's Eighth Wife", um Lubitsch que tinha me escapado: é uma comédia bem idiossincrática do diretor (lembra um pouco "Die Austernprinzessin", que ele fez quase 20 anos antes), com roteiro de Charles Brackett e Billy Wilder, no qual o destaque absoluto é Gary Cooper, que ofusca até Claudette Colbert (David Niven passa meio em branco). Ótima, mas não no mesmo nível de "Trouble in Paradise" e "Desing for Living".

    Para fechar, dois dos "filmes de cavalaria" de John Ford: "Fort Apache" é uma obra-prima, irrepreensível: complexo, moderno, íntegro, irônico, engraçado, trágico, belo, crítico... Nada está fora do lugar, e Henry Fonda, inspirado na figura do célebre general Custer (eu tinha os "hominhos" quando criança, crivados de flechas), está simplesmente fabuloso (também estão aqui John Wayne, Ward Bond, George O'Brien _o galã de "Aurora" está irreconhecível_, Pedro Armendáriz e Shirley Temple como heroína romântica, em um de seus últimos filmes). Os diálogos são excelentes, e um dos planos finais (duas viúvas e uma criança) é um dos mais tristes que já vi. Não tão bom é "She Wore a Yellow Ribbon", bem mais simples e com um narrador chato. A cor deixa tudo mais falso (nunca gostei de noites americanas). Wayne chora!

    ***

    Citei Tom & Jerry acima, e o clássico desenho é uma das muitas referências de "A Via Láctea", belo filme de Lina Chamie, que estudou música em Nova York e lança agora seu segundo longa (ainda não vi "Tônica Dominante"). A princípio, estava detestando, me parecia uma mal-contada história de paixão protagonizada por um banana pasteurizado em meio a uma série de citações mal-ajambradas. Depois, quando o filme se torna mais e mais mórbido (embora com senso de humor), pensei que a diretora lidava melhor com a morte do que com o amor. Ao final, quando tudo se fecha (muito bem), o pequeno enredo ganha dimensões muito maiores (mas não sei se galácticas), todas as metáforas imagéticas e sonoras (além das citações) ganham sentido e beleza, gerando emoção (também, com a "Lacrimosa" de Mozart, tem que ser de pedra para não chorar _ainda mais quando falam da Laika, que ganhou música de Damon & Naomi). O roteiro foi obviamente muito bem trabalhado.

    ***

    Chegou a vez das séries: finalmente vi a elogiada "Roma", produção (que tem como um de seus roteiristas o John Milius) que impressiona pela magnitude dos cenários, número de figurantes e cuidado na reconstrução de época _além do erotismo (embora não seja exatamente uma novidade, que eu me lembre é a primeira vez que vejo nus frontais _inclusive da bombshell Polly Walker, ainda dando um caldão aos 40_ numa produção para a TV). Mesmo assim, o gênero pede por mais "grandeza", difícil de acomodar. O elenco todo está ótimo, e a dinâmica das personagens Lucius Vorenus e Titus Pullo funciona maravilhosamente (tendo seu ápice na melhor cena da temporada, a da arena de gladiadores _aprende, Ridley Scott!); Ciarán Hinds também deu num belo Júlio César, e Lyndsey Marshal bota fogo na tela como Cleópatra (e tem gente que acha a moça feia, tsc, tsc). Mesmo assim, minhas expectativas eram bem mais altas.

    Já "Heroes" superou todas as expectativas, porque basicamente todo mundo dizia que ela era meio chata, demorava para engrenar... Mas que absurdo! Eu, que não sou nerd nem nada (apesar de gostar de HQs _mas não de qualquer coisa), achei a série cativante desde o primeiro episódio (os ganchos são muito fortes), certamente muito melhor do que "Lost". Algumas atuações especialmente boas (só dá mulherada: Ali Larter e Hayden Panettiere, além das pequenas participações de Nora Zehetner e Jayma Mays) e diretores veteranos de certo renome (Allan Arkush e John Badham) seguram as pontas, além de bons roteiros (um ou outro diálogo é boboca, especialmente quando a palavra "hero" está no meio _será que os japoneses se ofendem com o Nakamura?) e excelentes efeitos visuais. Quem já viu a primeira temporada põe o dedo aqui.

    ***

    É isso aí, pessoal.

    Na platéia