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    quarta-feira, novembro 11, 2009

    História e violência


    O tempo anda escasso e as idas ao cinema, raras (e cada vez menos estimuladas pelo festival da projeção digital porca que assola o país). Mas muito de vez em quando surge a combinação "título apetitoso em película". E o mais recente deles foi o tão comentado e esperado "Inglorious Basterds", sobre o qual vinha lendo boatos há muito _nenhum que me preparasse para o que eu ia ver e ouvir. Depois do desvio proporcionado por um projeto muito específico (o "Death Proof" de "Grindhouse", de um diretor extremamente consciente e sobre o qual é uma futilidade dizer que se trata do pior de sua carreira _ aliás, é especialmente triste ele não ter sido exibido comercialmente nas salas brasileiras, porque é o filme de Tarantino que formalmente mais clama por exibição nos cinemas e em película), ele volta ao estilo depurado e límpido (alguns diriam gélido, como também dizem de Kubrick na fase em cores) que inaugurou em "KillBill", nos quais a influência estética de Sergio Leone está mais explícita do que nunca.

    Como não quero nem posso me alongar muito, evito pisar em terreno batido (embora seja bom registrar as gargalhadas que proporcionou a cena em italiano). Mas não posso deixar de destacar algo que pelo menos dois amigos falaram (entre eles Ailton e Vebis, se não me engano), o de que o filme é bastante econômico em locações. As cenas são longas e boa parte delas é resolvida com personagens sentadas à uma mesa (algo que sempre me chama a atenção quando vejo um Tarantino): o diálogo climático de Landa com LaPadite; o reencontro de Landa e Shoshanna; o entrevero com o major alemão na taverna; a negociação do fim da guerra entre Landa e Raine (curioso que isso me lembra bastante de "A Volta do Regresso" e um outro projeto meu não filmado, uma ficção científica; com certeza é caso de amor pela palavra, também bem evidente em Manoel de Oliveira).

    Outra coisa que me chamou a atenção foram as referências ao passado americano de extermínio de índios (Raine se diz descendente de nativos, é apelidado de "Apache" e diz que serão cruéis com os nazistas e que por causa dessa crueldade eles serão temidos) e de escravização dos negros, em um filme no qual os americanos (judeus, em especial) são os heróis, apesar de "bastardos" e "inglórios". E os nazistas, com exceção dos altos mandatários baseados em personagens reais, são mostrados sempre de maneira"humana": um oficial se recusa a trair seus companheiros e é morto da forma mais grotesca (uma bela cena, por sinal); outro está na taverna comemorando o nascimento do filho; e mesmo Hans Landa tem seus momentos.

    O elenco só merece elogios, assim como Tarantino, que costuma valorizar o trabalho de seu atores. Muito já se falou de Christoph Waltz e de Brad Pitt, então vale a pena destacar o impressionante trabalho de Eli Roth como o "Urso Judeu": ele está apavorante e, ao executar a vingança máxima com uma metralhadora na mão (planos valorizados pela câmera lenta), desfere um olhar de puro ódio que é uma coisa linda de filmar. Mas minha cena preferida nem é a mais comentada, na fazenda francesa, mas a da sala de projeção, com Daniel Brühl eMélanie Laurent representando seus países e com algo de Romeu e Julieta.

    Outro que conseguiu me arrastar até o paraíso duvidoso (e que me agradou mais que o do Tarantino) foi "Public Enemies", no qual Michael Mann manipula o mito dos gângsters da Depressão, alterando boa parte da história, mas investindo na reconstituição de época. Guarda uma certa distância das personagens, dando um breve recorte na vida delas _ ou seja, sem dar uma de Scorsese e recorrer a flashbacks para explicar o comportamento das mesmas. Coloca a fórceps, como é costumeiro em muitas produções americanas, uma história de amor (e como havia feito em "Miami Vice"). Foi feliz na escolha do elenco; além do óbvio destaque para Depp (DiCaprio era a escolha original), brilhante nas expressões faciais, vale a pena citar nominalmente Stephen Graham (de "Snatch"), como "Baby Face" Nelson, e Stephen Lang, que fecha o filme. E há uma cena fantástica (quiçá a do ano), aquela em que o bandido adentra tranquilamente o último lugar onde ele deveria estar. Curioso que, na sessão lotada, a plateia reagia com risos sempre que o Brasil era mencionado como possível destino de fuga do bandido...

    Também voltei a uma sala de cinema (pela primeira vez na Pompeia 10, a sala de luxo, com poltronas excelentes e até um bar) graças à Mostra, mas, apesar de o filme (um japonês) não ser ruim (também não era nenhuma maravilha), foi absurdamente revoltante ter pagado R$ 18 para ver uma projeção digital vagabunda _ valeria a pena se fosse aquelas exibições de vídeos grátis no CCSP e olhe lá. Se for assim, baixo da internet e vejo em casa, infelizmente. Não dá para aceitar um desrespeito desses com o consumidor. E eu assinei sim o manifesto que está rolando por aí contra a má qualidade da projeção nos cinemas. Mas infelizmente desconfio de que não vai dar em nada _ a não ser na derrocada do público nas salas, esperem para ver.

    Em casa, vi o "Låt den rätte komma in" (2008) ou "Deixe Ela Entrar", aquele do vampirinho andrógino e castrado. Não é ruim, mas também não achei tudo isso, não.

    ***
    Além das projeções porcas, violência e história parecem ser os temas deste texto. Um dos filmes vistos no longo intervalo entre publicações,curiosamente, é um dos famigerados "shockumentaries" de Gualtiero Jacopetti e Franco Prosperi, os mesmos de "Mondo Cane" e "Africa Addio": é "Addio Zio Tom" (1971), uma produção mais rica e bem cuidada que reconstitui "a saga dos escravos africanos na América", como diz mais ou menos o oficial alemão na cena da taverna em "...Barterds". O filme, que retrata de forma meio enciclopédica esse capítulo do capitalismo, é obviamente desagradável e revoltante, mas o interessante é constatar a relação dele com o movimento Black Power (que seduziu de Godard e John Lennon, para ficar apenas nos brancos) e também o fato de que uma produção desse tipo infelizmente só era possível numa era em que o politicamente correto não era a praga que é hoje. O filme chega a resvalar no exploitation, mas, curiosamente, me soou bastante sério.Também entra nessa seara (mas sem a parte exploitation, infelizmente) o "Z" (1969) de Costa-Gavras, que filma, em francês, a história real do assassinato do político grego Gregoris Lambrakis, sem nunca citar nomes. É também desagradável e revoltante (no que me lembrou um western), que retrata com clareza a radicalização política dos anos 60, que infelizmente contaminou o mundo inteiro.

    A violência mais óbvia não dá as caras em "La Prise de Pouvoir par Louis XIV" (1966), tida como a obra-prima de Rossellini na TV. Que o diretor é um santo, já sabemos não é de hoje. Então não é surpresa que venha dele algo tão brilhante, com direção de arte e fotografia de primeira (cada enquadramento é uma pintura). Mas o destaque é o enfoque dado ao modo como Luís XIV conseguiu concentrar seu poder manipulando nobreza, burguesia, igreja, familiares e o povo. E também sua reconstrução da vida de tão fascinante personagem, mostrando como ela dormia, comia, governava, construía Versalhes (será que vou conhecê-lo?) e se divertia. Como se não bastasse, ainda consegue inserir na trama uma personagem de ficção, o inesquecível D'Artagnan de Dumas!

    E o curta "The War Game" (1962), o primeiro filme dirigido pela atriz sueca Mai Zetterling, é a coisa mais aflitiva que vejo em um bom tempo (principalmente porque eu sofro de vertigem). Sem diálogos e universal, não envelheceu nada (a não ser que, no mundo "politicamente correto" de hoje, no qual moças não podem usar vestido curto, arma na mão de criança, só se for de verdade). Já "Point Blank" (1967), um dos primeiros filmes de John Boorman, é fascinante como quase não há história: o protagonista (quase sem humanidade e profundidade psicológica) se move por uma ganância estúpida, vê à sua frente apenas o seu objetivo e nada mais, sem refletir sobre nada nem se importar com nada, enfrentando um inimigo de nome genérico, sem rosto. Tudo é descartável e as ações não trazem consequências _ a personagem de Lee Marvin está morta, é uma alucinação? A violência é deliciosa. Los Angeles é um paraíso horrível, San Francisco é Alcatraz. E há uma citação muito engraçada ao Brasil, com um extra explicando a um americano o significado da expressão "Deus é brasileiro", falando que quer dizer que os brasileiros não precisam trabalhar porque as coisas caem do céu! Dizem que o elogiado "O Troco", com Mel Gibson, é um remake, mas deve ser muito diferente, não?

    Também ando mergulhando muito no confortável (porque me lembra a infância, sessões de sábado à tarde e o clássico"Bang-Bang à Italiana") western spaguetti, com os resultados irregulares de sempre. O melhor é "Il Grande Silenzio" (1968), de Corbucci, que por boa parte de sua duração parece ser não mais do que um bom genérico (lembrando que o diretor ajudou a estabelecer algumas convenções do gênero). Mas o final subversivo e as nuances da personagem de Klaus Kinski (desprezível, mas certamente simpática para a turma do "bandido bom é bandido morto" que infesta as Unibans deste país) tornam este filme uma gema. Outro Sergio, o Sollima, um dos homenageados pelo pessoal do blog coletivo O Dia da Fúria, entrega "Faccia a Faccia" (1967) ou "Quando os Brutos se Defrontam", que já começa com um prólogo improvável e belíssimo, não apenas pelo conteúdo (a aula dada pela personagem de Gian Maria Volontè é preciosa), mas pela elegância da encenação e da câmera (com bom uso do scope). Depois acaba se tornando de uma subversão incrível, com a metamorfose do protagonista _ sempre valorizado por um ator especial como Volontè. Tomas Milian também não faz feio como coprotagonista (fica feio sem hífen, lembra "coprofagia"; culpa sua, Bechara). Millian volta em "Corri Uomo Corri" (1968), repetindo seu papel em "La Resa dei Conti", que infelizmente não achei para assistir. Neste, Sollima parece ser vítima de sua pretensão: a história é complexa demais, com personagens em excesso e, mesmo o protagonista sendo forte, o enredo em geral fica frouxo. A câmera também é menos rigorosa. Destaque mesmo para a trilha sonora, de Ennio Morricone, embora creditada ao maestro Bruno Nicolai.

    Para fechar essa pequena amostra do que incidiu sobre as bolinhas dos meus olhos, outra obra-prima: Les Biches (1968). Chabrol trabalha um dilema aparentemente caro à Nouvelle Vague, o triângulo amoroso, em um filme muito bonito, sublinhado por uma trilha sonora maravilhosa de Pierre Jansen (colaborador usual do diretor), que une beleza a perigo. Pode-se dizer muito sobre relações de poder (e de classe) e também sobre esse processo terrível que aflige os humanos em idade reprodutiva e que meu amigo Proust descreveu tão bem _ o título, "As Corças" (que em francês pode simplesmente ser interpretado como "as moças", mas o fato de ser um animal "de caça" não pode ser ignorado), e o nome dado à personagem de Jacqueline Sassard (de "Estranho Acidente", aqui em seu último filme, uma pena), Why (?), também são motivo de muita discussão. Assim como Sassard, Stéphane Audran, mulher de Chabrol, está belíssima e entrega uma atuação perfeita. Ponto alto na carreira de um grande cineasta.
    ***

    Como finalmente vi o "Death Proof", vale lembrar esta mesa quadrada com Tarantino, publicada pela LA Weekly. Vai um trecho:
    "The last real, old-school car chase was in Terminator 2. To me, there's nothing worse than CGI when it comes to a car chase. And this whole idea of having 16 cameras shooting from every conceivable angle every time a stunt happens, that's not directing, thats selecting. In the 60s and the 70s, it was about the one shot; it was about the good driving abilities of these people, and the way the cars held together. Back then, you couldn't do a 14-year-old-girl coming-of-age movie without having a car chase in it. Now, everything is all cut up and it doesn't matter who's driving the fucking car. The geography is lost. The momentum is lost. Being inside of the chase is lost."

    E, além de indicar a edição comemorativa de 3 anos da Zingu!, com o caríssimo Comodoro, peço licença para reproduzir aquium trecho da entrevista que João Silvério Trevisan deu a Gabriel Carneiro na edição 34:

    "Z – Você não vê a Boca do Lixo, da época das chamadas pornochanchadas, nos anos 70 e 80, uma espécie de indústria cinematográfica brasileira?

    JST – Eu nunca levei a sério aquilo, porque era exploração de veios comerciais até então existente. Por exemplo, enquanto o western spaghetti funcionou como moda, a Boca do Lixo correu atrás desse filão. Depois entrou o filão erótico, e a Boca do Lixo foi correndo até lá. A Boca era tão terrivelmente mal-estruturada, tão terrivelmente improvisada, que não dava para acreditar nem nesse cinema supostamente comercial. Ela não estava organizada suficientemente para conseguir implantar uma indústria cinematográfica. Tudo era muito oportunista e imediatista. Tanto que você pega filmes que exploram a mesma fórmula incessante e inesgotavelmente. Quer dizer, é claro que elas se esgotaram, não é? Chegou uma hora que o público não aguentava mais a repetição; não havia nenhuma estrutura inteligente por trás dessa vocação comercial no tal do cinema da Bocado Lixo. Era um cinema de extrema repetição e de concepção comercial medíocre. Claro que ele formava um quadro industrial, mas não tinha um projeto de formação de quadro. O que você tinha lá? Um bando de desempregados, que acabavam trabalhando na parte técnica, e que pela força do hábito e da prática, tornaram-se fotógrafos, fotógrafos de cenas, maquinistas, câmeras e mesmo diretores ou roteiristas. Roteirista da Boca, por exemplo, era uma coisa inacreditável, eram caras pegos a laço. Eu sei disso porque eu sempre batalhei para ter uma ressonância profissional no trabalho que fazia, e muitas vezes eles não queriam saber de pagamento ou de um pagamento digno, alguma coisa minimamente digna, eram esmolas. Tudo aquilo eram quebra-galhos, era um cinema de quebra-galhos. De repente, o produtor, que frequentemente era o roteirista, interferia diretamente na direção, considerando que muitas vezes o produtor era o diretor, ou então o produtor e o diretor eram sócios. Tudo visava a uma meta muito fechadinha do ponto de vista comercial: era gastar o mínimo possível, com o mínimo possível de energia, inclusive intelectual e criativa. Eu acho um aprendizado importante viver nesse contexto da Boca do Lixo, enquanto um cinema que estivesse de acordo com suas possibilidades comerciais e financeiras, só. Porque do ponto de vista criativo, do ponto de vista intelectual, eu não tinha nada a ver com aquilo."
    ***

    Finalmente, algo sobre Anselmo Duarte. Há alguns anos, fui a uma homenagem ao Anselmo e escrevi aqui que tinha ficado triste ao vê-lo com evidentes problemas de memória, já que ele, simpaticíssimo e obviamente feliz por falar de sua carreira, repetia a mesma (ótima) história 5 minutos depois de tê-la contado. Pisei na bola e chutei aqui que isso seria causado por Alzheimer (não sei se teve a doença e não interessa), coisa que obviamente nunca faria em uma publicação profissional. Para minha surpresa, que com razão acho que ninguém se dá ao trabalho de ler isso aqui, recebi um e-mail do filho do Anselmo, me dando o devido puxão de orelha. Respondi, assumindo o erro grosseiro e pedindo desculpas. Pouco depois, meu e-mail foi automaticamente esvaziado e eu acabei não lendo a tréplica. Espero que as desculpas tenham sido aceitas.

    sábado, setembro 20, 2008


    Milhem Cortaz e Vanessa Prieto em "Nas Duas Almas"

    Não posso deixar de comentar mais duas experiências recentes de exibição de trabalhos em que estou envolvido. O primeiro foi na Sessão do Comodoro passada, quando o segundo curta-metragem dirigido pelo Vebis que montei teve sua segunda exibição pública _mas agora na versão finalizada, mais curta (mas não tanto quanto eu gostaria _típico de montador). Eu tenho um nível extremo de autocrítica e é muito difícil eu gostar muito de algo que tenha feito, mas confesso que, apesar de alguma ou outra coisa no vídeo me incomodar (a não ser quando o incômodo é proposital, como na cena das meninas _ela realmente foi pensada pelo Vebis para ser irritante, e a montagem picotada foi feita para gerar este efeito), confesso que me emocionei com a cena no bar, na qual o Milhem Cortaz (excelente _e como disseram dois mestres, Carlos Reichenbach e Inácio Araújo, que muito nos honraram com suas visões, é a primeira vez em que ele aparece glamourizado, como herói romântico, e funciona) conclui que "amar deixa a gente velho" _talvez a grande fala do filme. Também fiquei muito feliz com os vários elogios à minha cena preferida, a da briga no carro, justamente a que mais desafios me apresentou na montagem. Parabéns ao Vebis, e espero que essa nossa parceria renda outros frutos _já temos projetos em vista, vamos nessa.

    (Update: Leandro Caraça também escreveu sobre "Nas Duas Almas". Perdôo ele ter errado meu nome por ele ter pedido aplausos para minha montagem, hehehe.)


    Gustavo Engracia com a camiseta que cita Humberto Mauro

    A outra foi a exibição de "A Volta do Regresso" no 6º Curta Santos, numa sala clássica da cidade, o Roxy Gonzaga _que também seguiu a onda e se tornou um multiplex. A maioria das projeções do filme tem apresentado problemas diversos _desta vez, o que me incomodou foi o estado da cópia, já bastante deteriorada. O filme agradou e recebi muitos elogios durante o debate, mas eu gostei bem menos dele. Faz dez meses que ele foi finalizado e, com a poeira baixando, fica mais claro para mim que eu gosto bastante do elenco e da trilha sonora, acho o roteiro bom (embora eu quisesse ter feito melhor e não tenha conseguido, está infinitamente acima da média do que se faz para curtas) e todo o resto deixa a desejar (talvez eu esteja sendo um tanto cruel, mas é o que sinto no momento). Mas também sinto um certo orgulho ao não conseguir negar que, apesar de todos os seus problemas, este filme realmente cumpre o papel que eu queria que ele cumprisse: o de ir na contramão de tudo que é considerado aceitável, de "bom gosto", "correto", "na moda". Enfim, ele se nega a perpetuar os dogmas do stablishment e a manter o status quo deste nicho _que, como tudo, apresenta uma série de vícios revoltantes, que induzem ao conformismo e ao pensamento único, duas pragas que atacam a arte. Mesmo assim, nos deram um prêmio, o de Melhor Som (o que é curioso, pois o som da cópia, toda arranhada, estava péssimo, com mais chiado do que vinil velho); achei estranho não existir o prêmio para roteiro, que certamente mereceríamos (o que não quer dizer que levaríamos, muito pelo contrário). Também fiquei feliz com a merecida premiação do colega Milton do Prado pela montagem do filme "Odeon" _aliás, ele também deveria ter ganhado este prêmio em Brasília, mas a atuação do júri ali foi simplesmente vergonhosa.


    ***
    Vi menos filmes do que de costume no último mês, a falta de tempo anda apertando cada vez mais. Ainda assim, vou avançando devagar e sempre nessa constante luta pela formação de repertório, infelizmente desacompanhada de uma reflexão mais aprofundada, novamente por falta de tempo. Dentre as várias belezas que vi no período, talvez a que mais tenha me impressionado é "The Savage Innocents", de Nicholas Ray, visto pela primeira vez em sua janela original. O filme se equilibra entre o didatismo para tornar palatável ao civilizado a selvageria e o registro da natureza no que ela tem de bela e terrível, sem grandes arroubos moralizantes _vemos imagens que podem ou podiam ser tabu (justamente um dos temas do filme), como um urso sendo arpoado (que abre o filme) ou a nudez da atriz francesa (sim, parisiense) Yoko Tani (que, segundo o Imdb, trabalhou no primeiro filme de Juan Bajon!). Findo este primeiro ato, temos cenas maravilhosas, como as que mostram os choques de cultura entre os esquimós idealizados do filme (em grande comunhão com a natureza, com direito a narração explicando o ciclo alimentar) com o homem branco, claramente criticado ("suas leis se tornaram maiores do que eles" é uma das frases ditas no filme) _e um final previsível e sublime. Um dos primeiros papéis de Peter O'Toole, que pediu para ter seu nome retirado dos créditos, por ter sido dublado por outro ator. Outro filme que vai fundo na crueza é "Nobi" (aqui, se não me engano, é "Fogo na Planície"), de Kon Ichikawa (que trabalhou por mais de 70 anos e viveu quase 100 _morreu em fevereiro deste ano). É impressionante não apenas por retratar a miséria da guerra (a Segunda Guerra Mundial, no front das Filipinas) ou por ser belissimamente realizado: o que me chamou a atenção foi o retrato nada heróico dos japoneses _muito diferente do registrado recentemente por Clint Eastwood em seu "Cartas de Iwo Jima" (cujo DVD está aqui em casa, sei lá quando vou revê-lo). Aqui, o que importa é sobreviver a qualquer custo: as personagens não se furtam de matar, pilhar cadáveres e partir para o canibalismo. Eiji Funakoshi (que tem um semblante bastante ocidental) está absolutamente fantástico como o malfadado Tamura; a transformação física pela qual ele passa durante o filme é impressionante. E como já fomos para o Japão, vamos emendar direto com "Akibiyori", antepenúltimo filme de Ozu. Assim como "Bom Dia" era uma variação de "Meninos de Tóquio", "Dia de Outono" está obviamente relacionado a "Pai e Filha", feito 11 anos antes (até mesmo a tradução dos títulos para o inglês ressalta o parentesco: se o primeiro era "Late Spring", este é "Late Autumn"). Naquele, Setsuko Hara era a filha que não queria casar para não deixar o pai sozinho; desta vez, ela é a mãe cuja filha (Yôko Tsukasa) reluta em abandonar, apesar de estar na idade de casar. O estilo único e brilhante do diretor volta a se manifestar com clareza, em um de seus filmes mais simples (no qual o conflito se apresenta bem cedo); a maneira como ele dá vida a espaços vazios, que servem de transição de tempo e espaço, é única.

    Como, na cronologia que estou seguindo (da qual me desvio algumas vezes, como fiz também neste mês, ao ver dois curtas de Man Ray, "Emak-Bakia", de 1926, e "Les Mystères du Château de Dé", de 1929, sempre muito divertidos _também vi o "Orphée" do Cocteau, de1950, para finalizar a trilogia), estou no início dos anos 1960, a França está bombando. Os maiores destaques foram "Les Bonnes Femmes" (1960), de Chabrol, e "Cléo de 5 à 7" (1962), de Varda. O primeiro, um breve acompanhamento da vida de algumas garotas que trabalham em uma loja, é grandemente dedicado a registrar a boçalidade das pessoas, em algumas cenas longas (como a da piscina), outras desconcertantes de tão ridículas (a do restaurante), outras mais irônicas (a do zoológico). Há um personagem misterioso com o qual Chabrol vai do macabro ao bizarro. Há também alguns momentos simplesmente bonitos (mas com uma atmosfera kitsch), mas nada supera a beleza das atrizes, em especial de Bernadette Lafont (lançada por Truffaut em "Les Mistons" e na ativa até hoje, mais de 150 trabalhos depois), Stéphane Audran (mulher do diretor) e Clotilde Joano (ironicamente, a que morreu jovem). O segundo é famoso por mostrar a história em tempo real (na verdade, das 17h às 18h30 _mas com momentos em que a montagem brinca com o tempo, inclusive com uma série de planos que servem como um pequeno flashback) de uma cantora que aguarda um resultado de um exame médico que pode comprovar uma grave doença. O filme abrange uma gama variada de emoções, do desespero ao humor (com um ponto alto na seqüência que homenageia os filmes mudos), passando pelo romance, pelo erotismo, pelo elogio à arte e o comentário político _e, claro, dando um bom espaço às chansons. Corinne Marchand está absolutamente maravilhosa como a protagonista, e Jean-Luc Godard aparece numa ponta como ator (há muitas outras participações especiais). Godard (além de Chabrol e Demy, mas a estes não reconheci) também aparece em "Paris Nous Appartient", de Rivette, que arma uma trama razoavelmente complexa (que envolve, basicamente, arte, política e romance), mas não a "mastiga" nem a desenvolve de maneira convencional _o que não enfraquece necessariamente o filme, mas pode afastar quem se apega mais ao enredo do que às personagens. O menos memorável dentre estes contemporâneos é "Tirez sur le Pianiste", de Truffaut, que é rápido a ponto de ser vertiginoso, confuso e entediante (apesar de curto), mas tremendamente irônico, bem-feito e cheio de mulheres bonitas (com destaque para Michèle Mercier). Algumas cenas impagáveis tornaram-se clássicas, como aquela em que Boby Lapointe canta "Framboise" (uma canção sobre um nobre tema).

    Ainda fora da língua inglesa, parei para ver, com certa tristeza, o último filme de Fritz Lang, "Die 1000 Augen des Dr. Mabuse": apesar de dar sinais de ser antiquado, é um avanço em relação a seu díptico indiano. Em ritmo muito rápido, traz uma série de clichês de filmes de espionagem (da qual Lang é mesmo pioneiro) e, novamente, um mestre do crime com uma trama maligna (cortesia do falecido Dr. Mabuse _mas é uma pena que Rudolf Klein-Rogge também já estivesse morto). E novamente voltei à Índia, para mais um filme de Satyajit Ray, "Devi": a vida de uma família se transforma após um homem sonhar que sua nora é a reencarnação da deusa Kali. Sharmila Tagore, linda, encarna divinamente a personagem. Ray registra imagens e sons (a música parece ser muito importante na cultura indiana) com invulgar beleza, é um desses grandes estetas do cinema.

    De volta aos EUA, o grande destaque mesmo é "The Hustler, o penúltimo e mais conhecido dos dez filmes que Robert Rossen dirigiu. É incrivelmente "cool" quando Paul Newman está em evidência (e sua personagem faz o que faz melhor ou pelo menos fala sobre o assunto) e fica mais pesado e desequilibrado quando Piper Laurie ganha mais destaque. Longo e desigual, ainda assim é um belo filme, com boas montagem e trilha sonora e um elenco espetacular: George C. Scott e Jackie Gleason arrebentam _a curiosidade é Jake LaMotta, o "Touro Indomável", fazendo uma ponta como bartender. Quanto a "Imitation of Life", eu queria antes ter visto a versão anterior, de Stahl, mas na falta desta fui de Sirk (seu último filme nos EUA). Embora não seja seu melhor, novamente é um poderoso melodrama focado em personagens femininas _os homens quase sempre aparecem como meros acessórios, o que não chega a incomodar, já que o oposto acontece bastante em filmes "de macho". Além do óbvio tema da maternidade, estão também colocados aqui a questão da carreira (no caso da personagem de Lana Turner) e do racismo (com uma bela atuação de Juanita Moore). Sandra Dee e Susan Kohner (outro destaque; pena que não teve longa carreira) completam o elenco principal.

    Quem também pintou de novo por aqui foi John Ford, com "The Horse Soldiers" e "Sergeant Rutledge", ambos enfocando mais uma vez o exército norte-americano no final do século XIX. O primeiro retrata ao mesmo tempo uma missão ousada do exército do Norte na Guerra de Secessão, uma discórdia entre um coronel durão (John Wayne, claro) e um médico (William Holden) e os naturais problemas causados pela presença de uma mulher (sulista) em meio à tropa. O segundo, mais cruel e político, mistura o western de cavalaria (com direito a matança de índios apaches) e o drama de tribunal, acrescido da discussão racial: Woody Strode é o sargento acusado de estupro e assassinato, e Jeffrey Hunter (o Jesus de "Reis dos Reis") é o seu defensor na corte marcial. A música e o senso de humor um tanto machista voltam a dar as caras.E também fui de Cukor, com "Let's Make Love", o penúltimo filme completo de Marilyn Monroe. O início dá a entender que vem por aí uma grande comédia, mas as coisas esfriam muito quando Yves Montand assume o papel principal. Marilyn, ótima em seu registro habitual, é a co-estrela, mas aparece bem menos do que ele e faz muita falta (parece que houve uma briga do Arthur Miller para aumentar o papel dela _não foi o suficiente). O enredo é uma bobagem completa e só vale para que vejamos alguns números musicais _mais uma vez, ambientados no teatro_ e tenhamos algumas participações especiais de estrelas como Milton Berle, Bing Crosby e Gene Kelly, interpretando a si mesmos. Mesmo assim, temos um momento antológico: a primeira cena de Marilyn, "My Heart Belongs to Daddy". E, finalmente, visto na mesma Sessão do Comodoro que apresentou o "Nas Duas Almas", "The Thief", o segundo filme de Russel Rouse, que trabalhou mais como roteirista. A proposta dele aqui é fazer um filme completamente desprovido de diálogos _ou seja, é diferente do que fazer simplesmente um filme "mudo". Inspirando-se em Fritz Lang e Hitchcock para filmar uma história de espionagem estrelada por Ray Milland (que está a cara do Gary Cooper), acaba cometendo alguns pecados, como o de ter de apelar para atuações exageradas (ou seja, voltando mesmo no tempo) e de ser um tanto desgastante _o final meio besta, mas talvez típico de uma produção já em plena paranóia da Guerra Fria, também joga um balde de água... fria. Vale destacar a belíssima Rita Gam, em seu primeiro filme, e a maravilhosa trilha sonora de Herschel Burke Gilbert.

    As séries da vez são a segunda temporada de "That '70s Show" (na qual os grandes desenvolvimentos são a perda da virgindade de Eric e Donna e o rompimento de Jackie e Kelso) e a terceira de "Prison Break", a mais curta, por causa da greve dos roteiristas. Não é de surpreender que seja a pior (até porque o plano de fuga _que já não é mais o original_ é obviamente muito menos complexo do que o primeiro). A verdade é que a série já esgotou seu potencial, e fica difícil se reinventar. O curioso é que a prisão panamenha onde a temporada se passa foi claramente inspirada no Carandiru.

    Na platéia