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    quinta-feira, junho 04, 2009

    Quando Hitchcock não era mestre

    Aproveitei uma rara folga e visita aos meus pais no interior para finalmente estrear a caixa de DVDs com quase todos os filmes da fase inicial inglesa do nosso amigo Alfred que ganhei do meu irmão. Deu para ver quatro filmes mudos que eu ainda não conhecia e também para ter mais claro que demorou anos e anos para o cineasta se tornar o propalado "mestre do suspense" _se ele tivesse nascido na época em que morreu, talvez nunca tivesse chegado a lugar algum. Esses seus filmes silenciosos compõem um conjunto de romances sem nada de muito especial, dentro daquele contexto de produção industrial da era dos estúdios _do qual o diretor nunca saiu.

    "Champagne" é uma comédia romântica bastante agradável, ingênua e previsível. É o mais bem-humorado desses filmes As graças se destacam, como o anel que não serve direito e vai parar em um dedão, as marcas de farinha num casaco após um abraço e a reentrada da protagonista (Betty Balfour, não muito bonita, mas muito expressiva) numa festa no estilo meio "A Moreninha"... O Ailton, que faz peregrinação pela fase inglesa do Hitch, não gostou muito e preferiu "The Farmer's Wife", adaptação de um texto teatral que nada mais é do que outra comédia romântica _e com muito pouco a ver com a obra madura do inglês. O enredo é imensamente raso e previsível (ainda mais do que em "Champagne" _sendo que aqui o capricho com a fotografia é bem menor), como se fosse a versão miniatura de uma novela. Os bons momentos se devem em especial à qualidade dos raros diálogos, com piadas que funcionam. Mas o filme é uma bobagenzinha esquecível,não se destaca entre outros filmes da época.

    "Easy Virtue" é outra adaptação teatral (desta vez de Noel Coward) e também uma história de amor, mas desta vez o humor fica de fora. Dos três filmes de 1928 do diretor, é o que mais se encaixaria com seus filmes posteriores, porque pelo menos há um assassinato e cenas em tribunais. Mas não demora muito a se tornar um drama, mais uma vez protagonizado por uma mulher, que vai ficando cada vez mais triste até desaguar num final de certa forma implacável. Mas é também pouco memorável _tanto que, em seu famoso livro de entrevistas, François Truffaut confessa que não o viu. E Monsieur Hitchcock sempre fez questão de reclamar da última fala do filme, que é bem melodramática.

    E "The Manxman", aqui chamado de "O Ilhéu", fecha o ciclo (dos filmes mudos dele que ainda existem, faltam apenas "The Pleasure Garden" e "Downhill", que não estão na caixa de DVDs). Mais uma vez, temos uma história de amor simples e de resolução não muito surpreendente. O conflito é bem folhetinesco, um triângulo amoroso envolvendo dois grandes amigos (um deles é Carl Brisson, o One Round Jack de "The Ring") e uma bela loira (a "polaquinha" Anny Ondra, de "Blackmail"). Apesar de tudo, o filme é bonito e vale a pena. Mas quem é fã de Hitchcock em sua fase áurea não vai necessariamente se interessar por estes filmes.

    Coincidentemente, fui convidado para escrever alguma bobagem sobre "The 39 Steps", no momento meu filme preferido do diretor nesta fase inglesa (alguns expressaram preferência por "The Lady Vanishes", que não é tão bom), no contexto do ranking dos anos 1930 da Liga. Cinco dos meus escolhidos entraram no top 20 e outros cinco de 21 a 50.

    ***

    Falando em comédias românticas, que delícia é "Kiss Me Stupid", que Billy Wilder e seu parceiro de roteiro, I. A. L. Diamond, criaram também a partir de uma peça de teatro. É uma grande comédia de erros (que demora um pouco para engrenar, mas depois vai de vento em popa), extremamente sexual, cheia de trocadilhos ("If it weren't for Venetian blinds, it'd be curtains for us" é um dos muitos exemplos), ironias e frases de duplo sentido antológicas (o que me faz lembrar de "O Esporte Favorito dos Homens"). E também funciona, à moda de Frank Tashlin, como ótima crônica do seu tempo (a exemplo de seu "Crepúsculo dos Deuses", Wilder volta a ser inclemente com o mundo do show business e faz com Dean Martin algo muito parecido com o que ele tinha feito com Gloria Swanson), inclusive com umas três ou quatro piadas em cima dos Beatles. O elenco é excelente, com Dean Martin interpretando sua persona fílmica, Kim Novak em uma de suas melhores performances (sexy, engraçada e tocante ao mesmo tempo), Felicia Farr, bastante adequada em um papel originalmente escrito para Marilyn Monroe (que talvez ficasse melhor no papel de Polly The Pistol) e Ray Walston como o protagonista, que se sai bem num tremendo desafio, o de substituir o ator original, Peter Sellers, que teve de sair do projeto após um dos seus vários ataques cardíacos.

    E longe de ser tão bom, mas também gostoso de assistir, é "Sex and the Single Girl" _que me lembre, o único filme de Richard Quine que vi até o momento. A princípio parece que vai ser uma pouco memorável comédia romântica de erros sessentista, mas o filme cresce e traz vários momentos engraçados (além de uma longa e antológica sequência, a da perseguição na rodovia _com direito a contramão e pretzels). O elenco de primeira aproveita para relaxar e criar ótimos momentos, como Henry Fonda reconhecendo mulheres pelas pernas e Lauren Bacall alternando extremos como megera e mulher amorosa. Tony Curtis (quase numa espécie de versão cômica e romântica de sua personagem em "A Embriaguez do Sucesso") e Natalie Wood fazem várias referências engraçadas a Jack Lemmon, com quem trabalhariam poucos meses depois em "The Great Race".

    Mas a obra-prima vista desde o texto passado é mesmo "La Religieuse", de Rivette. Enquanto a Nouvelle Vague tinha seus anos de ouro, ele não filmava: levou seis anos até lançar o sucessor de "Paris Nous Appartient", adaptando um romance de Diderot que ele já havia levado ao teatro. Estrelado por Anna Karina, é rigoroso e sóbrio, de planos abertos e emoção contida. E cresce muito em um de seus últimos atos (com a participação marcante da sueca Liselotte Pulver), quando se torna provavelmente o mais belo "filme gay" já feito. Coroado com um final belo e impactante, mesmo sendo previsível.

    ***

    A esta altura, "Gran Torino" foi comentado à exaustão, então só vou citar duas ou três coisas: assim como "Million Dollar Baby" (que me parece superior), é bastante católico. São abordados temas como confissão, morte, racismo e armas, nada que dê para aprofundar sem "spoilers". Mas vale a pena citar a que provavelmente é a cena cômica do ano e que não vi comentada em nenhum outro texto: o velho vizinho ranzinza vai tentar ensinar seu pupilo descendente de asiáticos a "falar como um homem", levando-o a um barbeiro boca suja (John Carroll Lynch, ótimo). É o tipo de coisa que quem é pai ou é filho sabe reconhecer como muito especial.

    Sempre que eu vejo um filme adaptado de um livro que já li, é quase inevitável que me decepcione (e entendo que isso aconteça com quem leu o roteiro de "A Volta do Regresso" _um filme teimoso que deve passar de novo em São Paulo e no Rio, antes de estrear na TV_, embora também entenda que isso aconteça com quem também não o leu). No caso de "Entre les Murs", isso acontece, mas de uma forma distinta: o grande problema nem é do Cantet, mas do Bégaudeau, que não escreveu um romance e sim um roteiro (o livro é só rubrica e diálogos, bem chatinho; pede para ser filmado porque não é boa literatura, não é um texto admirável). Ah, e a tradução brasileira é nojenta (o que não é novidade; as editoras pagam uma merreca pornográfica e quem é suficientemente bom para o serviço normalmente trabalha com coisa melhor, então os parcos leitores neste pasto têm de se virar com essas versões revoltantes, estupidamente literais, como as dublagens de TV). O livro, embora obviamente resumido, é seguido bem de perto; dessa forma, como não há ousadia na adaptação, o filme cai no meu conceito. Mas pelo menos dá para destacar uma das últimas cenas, que alguns podem considerar talvez a mais óbvia e menos sutil do filme, como geradora de alguma emoção mais concentrada, ao mesmo tempo que faz um questionamento premente e aparentemente infrutífero.

    Já o piorzinho entre os filmes recentes que vi é "[Rec]", de Jaume Balagueró e Paco Plaza, que aparentemente fez sucesso suficiente para ser refilmado nos Estados Unidos (estrelado pela "Emily Rose" e irmã magrela do "Dexter", aparentemente fazendo carreira de "scream queen") e também deve ter agradado uma boa parte dos fãs de filmes de terror, mas comigo não funcionou. É tremendamente derivativo, mas sem chegar aos pés de qualquer filme do Romero ou de "A Bruxa de Blair" (para citar as obras-primas) ou mesmo do "Extermínio" do Danny Boyle (do qual não gostei) ou de "O Silêncio dos Inocentes" (dá para ver que ele chupa uma série de sucessos anteriores). O filme termina quando estava começando a ficar interessante (vem uma sequência por aí, mas não estou otimista), o que ajuda a deixá-lo ainda mais decepcionante. E também peca pela imensa falta de ritmo, o tédio se instala várias vezes... Para falar a verdade, a melhor parte mesmo do filme são seus primeiros dez minutos, quando há alguma graça (praticamente sustentada pela boa atriz Manuela Velasco).

    ***

    Falta-me tempo para escrever e, creio, falta saco a muita gente para ler os textos longos para o "padrão Twitter" que saem aqui (não que eu me importe, vejam bem). Então vou apenas citar o que andei vendo (filmes e séries de TV) recentemente e que deixei de comentar. Quem se interessar pode trocar ideias no nobre espaço para comentários: "Operazione Paura", "Terrore nello Spazio", "Sei Donne per l'Assassino" e "La Ragazza Che Sapeva Troppo", de Mario Bava; "Texas, Addio", de Ferdinando Baldi; "7 Women", de John Ford; "The Knack ...and How to Get It", de Richard Lester; "Bad Girls Go to Hell", de Doris Wishman; "Baby the Rain Must Fall", de Robert Mulligan; "Hatari!", de Howard Hawks, "Damages" (segunda temporada); "Putney Swope", de Robert Downey Sr., "The Velvet Underground and Nico", de Andy Warhol; "House M.D." (temporadas 4 e 5), "The Thin Red Line", de Andrew Marton; "The Wire" (primeira temporada); "Homicidal", de William Castle; "Lilith", de Robert Rossen; "X-Men Origins: Wolverine", de Gavin Hood; "The Mindscape of Alan Moore", de ??? (não anotei e não vou checar); "The Office" (temporadas 2 e 3); "Kiseichuu: kiraa pusshii", de Takao Nakano; "The Damned", de Joseph Losey; "Toute la Mémoire du Monde", de Alain Resnais, e "Les Statues Meurent Aussi", de Resnais e Chris Marker; "Nightmare", de Freddie Francis; "Rififí en la Ciudad" e "Gritos en la Noche", de Jesus Franco; "Dexter" (temporada 3); "För att inte tala om alla dessa kvinnor", de Ingmar Bergman; "Rabbits", de David Lynch.

    P.S. Internet é ferramenta. Não entro em sites da moda a não ser que descubra uma serventia para eles. Acabei de descobrir uma serventia para o Twitter (ou seja, defini o que dá para escrever em 140 toques) e acabei de entrar lá. É aqui.

    P.P.S. Mudaram a câmera de lugar, ufa. Alívio imenso de não mais aparecer na TV. Tristeza dos meus pais, que assistiam para matar a saudade.

    P.P.P.S. Assim como os textos no Estranho Encontro, vale a pena ler esta entrevista da Andrea Ormond feita pelo Marcelo Miranda.

    P.P.P.P.S. Se eu não me esquecer, nos próximos textos gostaria de citar alguns trechos do livro "Hollywood - A Meca do Cinema", de Blaise Cendrars. Ia começar pelo trabalho nos estúdios, mas esta notícia me fez escolher este outro:

    "Nunca tomo notas em viagem. Não quero cumular o espírito com uma multidão de detalhes contraditorios. Quero poder relatar somente o essencial das coisas vistas.

    Um repórter não é um simples caçador de imagens, deve saber captar as visões do espírito.

    Se seu olho deve ser tão rápido quanto a objetiva do fotógrafo, seu papel não é registrar passivamente as coisas. O espírito do autor deve reagir com agilidade, com seu temperamento de escritor, seu coração de homem.

    É nesse sentido, mas somente nesse sentido, que uma reportagem pode ser um documento sensacional, sem se perder em exageros.

    Nada é tão comovente para um jornalista que acaba de partir incógnito para o exterior quanto relatar esse mergulho numa atualidade viva, palpitante e recalcitrante, mas de significação geral, e que é o único testemunho real que podemos dar da vida do universo, esse desconhecido. É por isso que os jornais existem e são publicados a cada 24 horas.

    Não se trata de ser objetivo. É preciso tomar partido. Sem introduzir algo de seu, o jornalista jamais conseguirá transmitir essa vida atual, que é também uma visão do espírito.

    Por isso, quanto mais verdadeiro é um artigo, mais tem de parecer imaginário. De tanto se colar às coisas, o jornalista está fadado a influenciá-las, e não a decalcá-las. E é também por isso que a escrita não é uma mentira nem um sonho, mas a realidade, e talvez tudo o que jamais poderemos conhecer do real."

    P.P.P.P.P.S.

    R.I.P. Fritz

    Na platéia