A gruta é mais extensa do que a gruta

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    domingo, maio 02, 2004

    Kill Bill - Vol. 1 / Era uma Vez no Oeste

    Bang, bang, he shot me down. Bang, bang, I hit the ground. Bang, bang, that awful sound. Bang, bang, my baby shot me down.

    Antes de mais nada, acho terrível essa história de lançar só meio filme. Dizem que, originalmente, “Kill Bill” teria cerca de 3h30 de duração. Ora, é mais curto do que “Era uma Vez na América” e “...E o Vento Levou” e praticamente da mesma duração de “Apocalypse Now Redux” e “Ben-Hur”. Então que #!&*%$ é essa de dividir em dois? Ainda bem que não sou mulher, senão estaria com mais raiva ainda...

    Tudo bem que o final de KB1 é tão impactante que até parece fim de penúltimo capítulo de novela da Janete Clair. Sim, quem diria, KB1, no fundo, não passa de um novelão, assim como “Cães de Aluguel” _embora, se eu me lembro bem, um tom mais sentimental, porém menos “dramático”, era o que predominava em “Jackie Brown" (taí um filme que preciso rever). A diferença é que “Kill Bill – Vol. 1” é mais “pra macho”.

    Pois, então. O Taranta é um cara muito inteligente. Espertalhão, mesmo. Ele faz filmes legais. Divertidos, mesmo. A gente sabe que vai sorrir quando vê um filme dele. E sorri, mesmo. Eu sorri várias vezes durante a primeira parte de “Kill Bill”. Cheguei a dar gargalhadas. Em dois momentos bem específicos, os mais engraçados do filme: o primeiro é a Daryl Hannah de enfermeira-pirata (aquele tapa-olho é de matar). O segundo, a piada mais genial do filme, é quando a noiva (cujo nome é dito por Bill na primeira cena do novelão _mas Tarantino é esperto e deixa tudo ambíguo) desperta do coma, olha para a linha da vida de sua mão esquerda e grita, desesperada/furiosa: “Four years!”. Esse é o tipo de sacada brilhante que vai ser lembrada no documentário de comemoração dos 30 anos de “Kill Bill”...

    O Taranta, antes de tudo, é um humorista _e ele é o primeiro a admitir. “Pulp Fiction”, o primeiro dele que vi (e o que mais se aproxima do primeiro volume de “Kill Bill”), também me fez gargalhar em dois momentos chave: um é quando Bruce Willis pega a espada de samurai (ãh? Espada? Samurai?); o outro (este me fez chorar e me doeu os músculos abdominais, de tanto rir) é quando Vincent Vega atira na cabeça de seu informante, sentado no banco de trás do carro, sem querer, fazendo aquela meleca.

    Agora, prestemos atenção em uma coisa: um tiro na cabeça é uma coisa grotesca. É talvez a maneira mais estúpida de se matar alguém. E olha que matar alguém não é bolinho, não, como bem disse o nosso amigo William Munny from Missouri, que manja muito dessas paradas. Mas o Taranta consegue fazer a gente gargalhar histericamente quando alguém leva um tiro na cabeça. É uma proeza. Diante disso, fica evidente que é preciso prestar atenção nesse garoto.

    Então, dez anos depois, ele volta com um filme muitíssimo mais trabalhado, em termos técnicos. Há um apuro infinitamente maior na cenografia, nos figurinos, na fotografia etc. Os enquadramentos são extasiantes, a trilha sonora impressiona muita gente (o que me impressionou, para falar a verdade, foram as 5, 6, 7, 8s _e eu nem sabia que eu tinha uma quedinha por japonesas roqueiras que tocam descalças...) e tudo colabora para que a gente nem preste muita atenção no enredo da tragicomédia shakespeareana/bruceleetica do quarto filme de Quentin Tarantino.

    É que Tarantino não precisa ser abertamente metido a intelectual. Ele é mais esperto do que isso. Sabe que é melhor não ter vergonha de misturar “O Poderoso Chefão”, “Alien – O Oitavo Passageiro” e “Monty Python em Busca do Cálice Sagrado” em uma mesma cena. Também sabe que bom gosto é uma coisa que não funciona tão bem no cinema. O século XXI clama por vulgaridade. E o Taranta (já falei que ele é esperto?) finge dar ao povo o que ele quer, mas joga pérolas aos porcos (sim, adoro esta imagem).

    Não, o cinema de Tarantino não é violento. “Pulp Fiction” não merece ser chamado de “Tempo de Violência”. O público de Tarantino não suportaria violência. O público de Tarantino é o mesmo de “Comichão e Coçadinha” _vocês sabem que não sou chegado em frases de efeito, mas vou abrir uma rara exceção e mandar uma, apesar de achar que bem pouca gente vai entender: o público dos filmes de Quentin Tarantino se divide em Barts e Lisas. Quem gosta de violência é quem gosta de “Elefante”. Taranta, esse cara tão esperto, abre seu “Kill Bill” com uma cena violenta. Assusta, mas depois o espectador só ganha lambida e cócega (a não ser durante o anime que conta a origem de O-Ren Ishii _talvez a personagem da vida de Lucy Liu_, que quebra impiedosamente a estética e o ritmo do filme), como aquele lindo jardim de inverno que me lembra “Cidadão Kane” e a melhor frase de todo o filme, dita pelo dono do impagável Pussy Wagon: “My name is Buck and I’m here to fuck”. Vai demorar muito pra alguém fazer uma camiseta?

    Mas, apesar de eu já ter escrito um texto considerável até aqui, acho bem difícil dizer qualquer coisa sobre meio filme. Se “Kill Bill” fosse só o volume 1, seria fácil o pior filme de Tarantino. Como não é, é preciso aguardar para fazer qualquer afirmação mais categórica. Então que venha o volume 2, quando a noiva “will be back for the final cut”.

    Vamos passar para um nível superior e olharmos para Sergio Leone, provavelmente um dos heróis do Taranta. “Once Upon a time in the West” (1968) também se configura como o máximo de apuro técnico/estético de um cineasta. Um orçamento maior, que permitiu a Leone brincar no Monument Valley, o playground de John Ford, fez a diferença. E que diferença: é o melhor western de Leone, bastante superior a “Três Homens em Conflito”, por exemplo. Dá até vontade de dizer besteiras como “trata-se de um metawestern” ou “é uma ópera da morte” ou qualquer outra redundância do tipo.

    É uma história de vingança, e aqui nem precisamos de um antigo provérbio klingon para deixar isto bem claro. Até porque demora um tempão (o filme tem 2h45 de duração, que passam voando, apesar da deliciosa lentidão da narrativa) para ficarmos sabendo quem está se vingando de quem e por quê.

    O homem sem nome da vez é Charles Bronson (a quem, por sinal, “Kill Bill – Vol. 1” é sabiamente dedicado), que perspassa todo o filme de modo sobrenatural. Seu nêmesis é, quem diria, Henry Fonda _normalmente o símbolo da integridade, Fonda interpreta um vilão tremendamente maligno e covarde, mas que, diante de um inimigo letal, demonstra respeito e honra dignos de samurai). O pivô da história é Claudia Cardinale _uma das atrizes preferidas de Lucchino Visconti, aqui no auge da beleza (aliás, porque essas belas italianas, quando envelhecem, ficam todas com cara de Sophia Loren?). Completa o time de protagonistas um bandido romântico com nome de índio, interpretado por Jason Robards (o pai de Tom Cruise em “Magnolia” _curiosidade: tanto ele quanto Fonda lutaram na Segunda Guerra Mundial, na Marinha, e voltaram condecorados). Um elenco incomum em um filme ímpar.

    O domínio que Leone tem do tempo é assombroso. A beleza dos planos (abertos ou fechados), idem. A trilha sonora de Morricone, um tema para cada um dos quatro protagonistas, é inesquecível. E os diálogos, sem nenhum pingo de verossimilhança, soam como falas de bardo: seja Bronson dizendo “dentro dos casacos havia três homens. Dentro dos homens, três balas” ou Robards aconselhando Cardinale a ir “lá fora, servir uma bebida aos homens que trabalham na ferrovia. E, se algum deles passar a mão na sua bunda, faça de conta que não foi nada; eles merecem”. Logo no espetacular início do filme (Leone sempre foi genial ao iniciar um filme), somos brindados com um diálogo absurdamente suculento: Bronson chega para o que deveria ser um encontro com um homem e se depara com três capangas armados; ao indagar sobre o cavalo que deveria levá-lo para o tal encontro, um dos homens (que, na versão original do roteiro, deveriam ser interpretados por Clint Eastwood, Lee Van Cliff e Eli Wallach, ou seja, “the good, the bad and the ugly” _pena que não rolou) responde, ironicamente: “Parece que estamos com um cavalo a menos"; Bronson, impassível como um fantasma, retruca: “Parece que vocês estão com dois cavalos a mais”. Rú!

    Fora toda a beleza e toda a diversão, tem gente que ainda vê no filme implicações políticas, embora não tão claras como em filmes de Sergio Corbucci ou Damiano Damiani. Mas a gente gosta de ver críticas ao capitalismo em tudo quanto é lugar (menos nos filmes do Taranta, né?), então deixa o menino brincar!

    P. S. O Tarantino até pode ser foda. O Leone é obviamente foda. Mas quem também é foda, já falei e vou repetir, é o Roger Corman. Quando ele filma com o Charles Bronson (que está longe de ser o mero brucutu retratado nos filmes dos anos 80 em diante), então, sai de baixo. “Machine-Gun Kelly” (1958) é um policial invulgar e interessantíssimo, mas não posso falar muito sobre ele sem estragar as surpresas que o filme traz. Trate de assistir, depois venha me dizer se não é uma pequena maravilha ou se eu sou só mais um paga-pau de filmes que quase ninguém que se considera "normal" viu.

    P. P. S. Falando em coisas assombrosas e fascinantes, não deixem de ler o impressionante artigo “Citizen Kubrick” _o nome já diz tudo!

    P. P. P. S. Pra variar, segue um trechinho (inicial) de “Cinema: Trajetória no Subdesenvolvimento”, talvez o mais importante ensaio já escrito sobre o cinema brasileiro. A reflexão feita aqui é de importância capital, não deixe de ler! O autor é o grande Paulo Emilio Salles Gomes, a data é 1973 (ano da morte do Bruce Lee):

    “O cinema norte-americano, o japonês e, em geral, o europeu, nunca fora subdesenvolvidos, ao passo que o hindu, o árabe ou o brasileiro nunca deixaram de ser. Em cinema, o subdesenvolvimento não é uma etapa, um estágio, mas um estado: os filmes dos países desenvolvidos nunca passaram por essa situação, enquanto os outros tendem a se instalar nela. O cinema é incapaz de encontrar dentro de si próprio energias que lhe permitam escapar à conjuntura do subdesenvolvimento, mesmo quando uma conjuntura particularmente favorável suscita uma expansão na fabricação de filmes.

    No caso da Índia, com uma produção das maiores do mundo. As nações hindus possuem culturas próprias de tal maneira enraizadas que criam uma barreira aos produtos da indústria cultural do Ocidente, pelo menos como tais: os filmes americanos e europeus atraíam moderadamente o público potencial, revelando-se incapazes de construir por si um mercado. Abriu-se assim uma oportunidade para os ensaios de produção local que durante décadas não cessou de aumentar e em função da qual teceu-se a rede comercial da exibição. Teoricamente a situação era ideal: uma nação ou um grupo de nações com cinema próprio. Tudo isso ocorria, porém, num país subdesenvolvido, colonizado, e essa atividade cultural aparentemente tão estimulante, na realidade refletia e aprofundava um estado cruel de subdesenvolvimento. (...)

    No Japão, que não conheceu o tipo de relacionamento exterior que define o subdesenvolvimento, o fenômeno cinematográfico foi totalmente diverso. Os filmes estrangeiros conquistaram de imediato uma imensa audiência e foram, de início, o estímulo principal na estruturação do mercado consumidor do país. Essa produção de fora era, no entanto, por assim dizer, ‘japonizada’ pelos benshis _os artistas que comentavam oralmente o desenrolar dos filmes mudos_, que logo se transformaram no principal atrativo do espetáculo cinematográfico. Na verdade, o público japonês também nunca aceitou o produto cultural estrangeiro tal qual, isto é, os filmes mudos apenas com os letreiros traduzidos. A produção nacional, ao se desenvolver, não encontrou dificuldades em predominar, principalmente depois da chegada do cinema falado, que dispensou a atuação dos benshis. Diferentemente do que ocorreu na Índia, o cinema japonês foi feito com capitais nacionais e se inspirou na tradição, popularizada mas direta, do teatro e da literatura do país.”

    P. P. P. P. S. Last, but least: me rendi ao MSN Messenger; o e-mail é o mesmo exibido neste site. Quem quiser bater boca, que se arrisque. Bill Gates venceu de novo, raios!

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