A gruta é mais extensa do que a gruta

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    domingo, outubro 16, 2005

    O Auto da Compadecida / O Coronel e o Lobisomem / Senta no Meu que Eu Entro na Sua

    Pra ver pesar na balança, cinco véio não dá um quilo, mais de cem grama de grilo no bucho de uma criança.

    Guel Arraes (ao lado de Jorge Furtado e de alguns outros, responsável por algumas das obras mais interessantes da TV aberta nos últimos anos) admitiu, sem problema algum, em entrevista recente, que é um cineasta muito mais da palavra do que da imagem. Talvez isto explique seu trabalho na adaptação de uma série de obras populares da literatura brasileira para as telas _como é o caso deste "O Auto da Compadecida" (1999), feito em película e lançado em cinema (numa versão desnecessariamente editada, já que a minissérie original tem apenas 2h35 de duração, a mesma de "Pulp Fiction") graças ao produtor Daniel Filho. Mas não só isso.

    No filme (tratemos filme e minissérie como sinônimos), temos umas das edições mais "ágeis" (não concordo muito com o termo, já consagrado) dos últimos tempos (talvez bem mais adequada mesmo para a TV do que para o cinema), que acompanha os diálogos, também rápidos, disparados como tiros, um atrás do outro. Não é necessariamente ruim, mas o ritmo frenético é cansativo, e a gente acaba mais ouvindo do que vendo. Como o texto é bom (embora dito naquele sotaque nordestino que nem sei se existe fora da Globo), o estrago não é tão grande; mas o maior trunfo do projeto é mesmo o elenco, com destaque especial para Denise Fraga, talvez em seu melhor papel (o que ocorre também com Selton Mello, que se destacou aqui, mas nunca mais foi tão bom _com possível exceção de "LavourArcaica", cuja revisão não deve tardar, graças ao lançamento em DVD).

    No recém-lançado "O Coronel e o Lobisomem" (que, a exemplo de "Lisbela e o Prisioneiro" e "Deus É Brasileiro", já tinha ganhado versão anterior para a TV _neste caso, o coronel Ponciano era Marco Nanini), co-produzido por Arraes e Paula Lavigne, o falatório também não dá uma trégua, embora o ritmo da edição seja mais lento e permita que alguns planos sejam contemplados com mais calma. Novamente, a estrela é o texto, na boca principalmente do protagonista, desta vez interpretado por Diogo Vilela (a quem tive o prazer de ver no teatro, numa bela montagem de "Tio Vânia"), que faz o padeiro em "Auto". Selton Mello também está aqui, mas desta vez errou o ponto da interpretação, assim como Andréa Beltrão (que também vi no teatro _em "A Prova", peça recém-filmada nos EUA, com Gwyneth Paltrow_, onde estava ótima); quem se dá melhor são Tonico Pereira (eterno coadjuvante; um ator da qualidade e da intensidade dele merecia mais destaque) e Francisco Milani, a quem o filme é dedicado.

    Ambos os projetos investem num humor supostamente mais refinado, embora o tipo de sátira apresentado seja secular (talvez milenar); o resultado dificilmente arranca gargalhadas, pois choques cômicos, típicos de piadas, são evitados. Muitíssimo diferente é o que ocorre em "Senta no Meu que Eu Entro na Sua" (1986), um dos filmes que atestam a melancólica decadência da Boca do Lixo paulistana. Apesar de ser um filme de sexo explícito (gênero que conheço pouquíssimo, talvez porque a produção é gigantesca demais e tudo seja muito parecido, embora clássicos sejam notórios, a começar pelo recém-recuperado "Garganta Profunda", tema de documentário e tudo), dirigido por Ody Fraga (1927-1987), um dos mais prolíficos da época, ele vale a pena somente como comédia. Talvez o desencanto com o nível a que os cineastas da época tiveram que descer tenha sido a mola propulsora para a esculhambação _quem me disse isso, há mais de dez anos, foi José Mojica Marins, que definiu seu "24 Horas de Sexo Ardente" como uma tentativa de ridicularizar o cinema pornô. Neste aqui (aliás, o primeiro filme do gênero que vi num cinema, e não numa sala qualquer, mas na da Cinemateca, numa sessão inacreditável), Fraga adota um caminho menos radical, mas tão imaginativo quanto: no primeiro dos dois episódios, sutilmente intitulado "Alô, Buça!", uma mulher descobre que tem uma vagina falante (e também cantante: a cena em que ela entoa, no chuveiro, "Tic Tic Nervoso" deveria entrar para uma antologia da comédia no cinema nacional); no segundo, cujo título não me lembro agora (alguém vai acabar me socorrendo nos comentários, espero), um segundo pênis brota da cabeça de um homem, cujo escritório fica de frente para a... Embrafilme!

    A exemplo de "Deep Throat", o filme de Fraga é de uma época em que o cinema pornô (ou pelo menos parte dele) não apenas se preocupava em ter algum esboço de roteiro como era feito em película (por sinal, nos créditos aparecem nomes como Aloysio Raulino na direção de fotografia e Ozualdo Candeias como fotógrafo de cena) _será que o avanço do cinema digital fará com o "cinemão" o mesmo que fez com o pornô? Mas o absoluto destaque vai, assim como nos filmes de Arraes e sua turma, para o texto: os diálogos, recheadíssimos de palavrões, não têm sutileza nenhuma e ganham muito com a evidente canastrice dos elenco. Um exemplo: homem chega do trabalho e vai ler o seu jornal. Mal passa os olhos sobre a capa da Folha de S. Paulo e exclama: "Puta que pariu! Estamos fodidos"! Aí ele chama a empregada e pede uma bebida. Mas rapidamente muda de idéia e fala com um sorriso no rosto e a maior naturalidade do mundo: "Pensando melhor, acho que vou querer um suco de buceta!". O resto da cena, não preciso descrever... Fraga arranja até um modo de abordar a famosa luta de classes, ao mostrar que o marido pode comer a empregada (e quem da classe média nunca comeu?) o quanto quiser, mas se ela tenta trepar com o jardineiro (um anão negro chamado Chumbinho, que, dois anos antes, protagonizou "As Taras do Mini Vampiro", de José Adalto Cardoso, já viram? O pessoal que vive entrando aqui através do Google, procurando por "sexo com anões", deve conhecer...), é um escândalo, somente por que se trata de um empregado. A senhora não se faz de rogada e manda um discurso do gênero "Essa classe média é uma bosta, mesmo!", para chegar a uma solene conclusão: "Pau não tem classe social.". E não só: por mais de uma vez, a atriz se dirige à platéia, chegando a nos chama de "bando de filhos da puta"... Curiosíssimo exemplo de filme (supostamente) erótico que não dá tesão nenhum, mas que arranca gargalhadas durante quase o tempo todo. Se tirassem as cenas de sexo, melhorava e muito...

    P. S. Faz tempo que não cito textos sobre cinema aqui, não? Reflexo da vida corrida, plena de atividades... Mas como falei de edição neste texto, vamos de Walter Murch, "Num Piscar de Olhos" (neste trecho em particular, ele contradiz muita gente que se diz entendida por aí...):

    "O corte ideal (para mim) obedece simultaneamente aos seis critérios que seguem: 1) reflete a emoção do momento; 2) faz o enredo avançar; 3) acontece no momento 'certo', dá ritmo; 4) respeita o que podemos chamar de 'alvo de imagem' (eye trace) _a preocupação com o foco de interesse do espectador e sua movimentação dentro do quadro; 5) respeita a 'planaridade' _a gramática das três dimensões transpostas para duas pela fotografia (a questão da linha de eixo, stageline etc.) e 6) respeita a continuidade tridimensional do próprio espaço (onde as pessoas estão na sala e em relação umas com as outras).
    1) emoção: 51%
    2) enredo: 23%
    3) ritmo: 10%
    4) alvo de imagem 7%
    5) plano bidimensional da tela: 5%
    6) espaço tridimensional da ação: 4%"

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