A gruta é mais extensa do que a gruta

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    domingo, novembro 13, 2005

    Balanço da Mostra 2005

    Amarrei o seu retrato no bigode do meu gato, ele não parou mais de miar.

    Ah, o tempo, este eterno inimigo imaginário. Sem mais delongas, vamos ao relatório do que consegui ver durante a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo: apesar de não ter trabalhado para esta edição do festival, consegui pegar 13 sessões (14 filmes ao todo), contra 19 do ano anterior. É pouco, perto do pessoal digno do rótulo de "cinéfilo", mas para mim vale como maratona. A seguir, breves observações sobre o pouco que vi:

    "A Dignidade dos Ninguéns", Fernando Solanas: uma coisa assim Michael Moore, mas sem o senso de humor. Documentário que sequer pretende ter algo de jornalístico, já que parte do pressuposto de que a imprensa é vendida (e também comprada, é claro). Se serve de algo (no sentido de "passar uma mensagem"), mostra que lutar pelos seus direitos às vezes vale a pena (desde que você more na Argentina?). Os velhinhos que cantam o hino são legais.

    "Trilogia - O Vale dos Lamentos", Theo Angelopoulos: filme que não tem medo de ser poético. Planos-seqüência longos, lentos, premeditadamente artificiais. Rimais visuais e elipses. Chegou a confundir as duas senhoras que estavam do meu lado e passaram boa parte do filme me perguntando o que estava acontecendo. Lindão, mas termina pior do que começa.

    "O Espelho Mágico", Manoel de Oliveira: maravilhoso, superior a "Um Filme Falado". E, apesar do evidente cuidado com enquadramento, mise en scène etc., mais uma vez é o texto que brilha. Ricardo Trêpa e Leonor Silveira interpretam personagens interessantíssimas, envoltas numa atmosfera pouco naturalista. Diferentemente de Angelopoulos (e à moda de Kiarostami), Oliveira mais uma vez termina com um plano sublime. Após o filme, quase duas horas de bate-papo com o diretor.

    "Refém", Constantinos Giannaris: meu segundo filme grego na Mostra (muito legal ouvir a língua e reconhecer várias raízes do nosso português). Típico filminho de refém em ônibus, misto de "Ônibus 174" com "Velocidade Máxima" (mas bem longe de "Eureka"), que poderia muito bem ter passado no Super Cine ou numa má Sessão do Comodoro. Sem muito interesse, não chegou sequer a irritar.

    "Todos Contra Zucker!", Dani Levy: comédia alemã que poderia muito bem ser brasileira. Malandro finge enfartes para ir jogar sinuca a dinheiro, enquanto também finge respeitar suas raízes judaicas (sendo comunista e ateu, tendo permanecido na antiga Alemanha Oriental) para botar a mão na herança da mãe. Passatempo bem agradável, com bom ritmo e elenco carismático. O público saiu da sessão elogiando.

    "O Inferno", Danis Tanovic: parecia impensável que se poderia fazer justiça a Kieslowski, mas o premiado cineasta bósnio (que colocou pelo menos umas 15 ou 20 referências diretas aos filmes do polonês), em seu segundo longa-metragem, conseguiu. A estrela é o roteiro, mas arte, fotografia e elenco (Emanuelle Béart impressiona numa das melhores e mais inverossímeis cenas do ano _e certamente a mais violentamente sexy) são de respeito. Não sei se este terá o sucesso de seu filme anterior (embora mereça), mas Tanovic se firma como promessa. Tive a oportunidade de conhecê-lo (e também ao seu produtor e sócio Cedomir Kolar, de "Antes da Chuva" e outros), parece ser um homem bastante ético, sério (embora com senso de humor, é claro) e claramente marcado pela guerra. E um viva a Edith Piaf!

    "Tirando o Véu", Angelina Maccarone: filme altamente indicado para quem sente atração fatal por iranianas lésbicas. Tem um plano muito bonito de uns pássaros voando, que o Fernando Meirelles teria dado um dedo para incluir em "O Jardineiro Fiel". Há algo de muito sexy no nome da diretora, deve ser uma baranga.

    "Napola - Antes da Queda", Dennis Gansel: esse subtítulo brasileiro obviamente quer tirar uma casquinha daquele filme em que Bruno Ganz interpreta o Adolf (será que ainda batizam alguém com este nome?). É filme de época (1942), mas não reconstituição histórica; o início prometia, mais pela direção de arte caprichada, mas o filme acaba se afogando em chavões (tem até plano que faz referência direta a "Titanic", pff). Convencional, previsível, desprezível (como alguns filmes germânicos exibidos no ano passado). Os alemães querem ser Hollywood?

    "St. Francis Bird Tour", Clemens Klopfenstein: descompromisso quase total deste suíço malucão, que, com equipe de quatro pessoas (incluindo sua esposa), fez este longa com câmera digital. Klopfenstein, com mais de 40 anos de cinema, interpreta a si mesmo e registra as aventuras de dois amigos (que também interpretam a si mesmos _um deles é um rockstar local, o Serguei deles) que acabam se perdendo numa floresta. Apesar do senso de humor, é difícil de acompanhar _na verdade, achei um saco. Como ele conseguiu torrar 500 mil euros com isso?

    "Allegro", Christoffer Boe: belíssimo filme, este dinamarquês que dá uma banana para o Dogma foi a mais agradável surpresa deste festival. A princípio, tinha tudo para ser mais um melodrama razoavelmente convencional, mas torna-se uma ficção científica kafkiana absolutamente fantástica, fazendo referências claras ao "Stalker" do Tarkovski. Fiquei com vontade de conhecer outros trabalhos deste jovem cineasta.

    "Primeiros Passos", Evaldo Mocarzel: curta bonito, mas um tanto pretensioso, a partir de um poema de Augusto dos Anjos. Inofensivo e suficientemente agradável.

    "Do Luto à Luta", Evaldo Mocarzel: como não havia gostado muito de "À Margem da Imagem", não esperava grandes coisas deste filme, o que talvez tenha colaborado para o fato de eu ter gostado. Mas sou suspeito para falar, porque tenho um carinho especial por certos portadores da Síndrome de Down, que são pessoas maravilhosas. O filme acerta ao evitar o tom puramente didático e dar voz aos "Downs", com o apropriado senso de humor (inclusive com as músicas dos Beatles "Don't Let Me Down" e "I'm Down" _poderia ter ficado com gosto de piada infame, mas encaixou). A seqüência em que um casal de "Downs" dirige uma cena (levando o Carlos Ebert à loucura) é quase antológica.

    "Snowland", Hans W. Geibendörfer: dramalhão convencional e deprimente, típico daquela região inóspita durante o inverno. Longo e baixo astral, não se destaca de forma alguma, diferentemente de um filme muito bom que vi no ano passado, chamado "Luz Fria". Tem mulher pelada, mas é feia.

    "Al Outro Lado", Gustavo Loza: sabem esses filmes de criancinha? Pois é, este é mais um do tipo, só que não se contenta em ser sobre apenas uma criancinha, mas sobre três, todas em busca do pai, que teve de abandonar a família para trabalhar. Uma das histórias se passa no México, outra no Marrocos e na Espanha, e a outra... hmm, já me esqueci. Ano que vem tem mais e promete, será a 30ª edição do evento.

    P. S. Vi, há pouco tempo, o maravilhoso "O Tesouro de Sierra Madre", do meu amigo John Huston. Em homenagem ao velho aventureiro, mais um trecho do livro do Walter Murch:

    "O problema da comparação entre filmes e sonhos é que ela é interessante, provavelmente verdadeira, mas relativamente infrutífera. Sabemos tão pouco sobre a natureza dos sonhos que não há o que acrescentar à observação, depois de feita.
    Um aspecto a ser considerado, porém, é a possibilidade de existir uma parcela da nossa realidade que, mesmo acordados, vivenciamos como cortes cinematográficos, quando as imagens das realidade se agrupam numa justaposição mais descontínua do que parece.
    Comecei a pensar nisso por ocasião do primeiro filme que editei _'A Conversação'_, quando reparei que Gene Hackman piscava em momentos muito próximos dos pontos em que eu decidia cortar. Era interessante, mas eu não sabia o que fazer com isso.
    Foi então que certa manhã, depois de ter virado a noite trabalhando, saí para tomar acafé e, passando em frente a uma sala de leitura da 'hristian Science, vi que a primeira página da 'Monitor' trazia uma entrevista com John Huston. Parei para ler e uma coisa me chamou a anteção, porque tinha exatamente a ver com a questão do piscar de olhos:
    'Para mim, o filme perfeito é aquele que se desenrola como que por trás do seus olhos, como se os seus olhos o projetassem, e você estivesse vendo o que quer ver. Filme é como pensamento. De todas as artes, é a mais próxima do processo de pensar.
    Olhe para aquela lâmpada ali. Agora olhe para mim de novo. Viu o que você fez? Você piscou. Isso são cortes. Depois de ver uma primeira vez, você sabe que não precisa fazer um movimento contínuo entre mim e a lâmpada porque já sabe o que tem no meio. A sua mente corta a cena. Primeiro você olha a lâmpada. Corta. Depois olha para mim.'"

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