A gruta é mais extensa do que a gruta

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    sábado, fevereiro 26, 2005

    O Aviador / Alice Não Mora Mais Aqui / Depois de Horas / Quem Bate à Minha Porta?

    Just like a car, you're pleasing to behold. I'll call you Jaguar, if I may be so bold.

    Em 2004, Martin Scorsese olha para uma personalidade do passado que olhava para o futuro. Howard Hughes, transformado em lenda até por Orson Welles em seu absolutamente brilhante "F for Fake", tornou-se famoso mais pela suposta "esquisitice" (hoje melhor compreendida, já que até Luciana Vendramini e Roberto Carlos falam em transtorno obsessivo-compulsivo, e o Jack Nicholson levou um Oscar por uma de suas piores atuações só porque brincou de ter TOC) de seus últimos anos de vida do que por suas realizações em Hollywood, no campo da aviação ou no da putaria.

    Até uma revisão, "The Aviator" é um grande filme, grande com G maiúsculo (bem diferente de "Alexandre", um elefante branco desgovernado, embora acima da média, considerando a obra de Oliver Stone), muito melhor do que eu esperava. Não só pelos aspectos de produção, mas, principalmente, pelo roteiro: em cerca de três horas, conseguiu erigir um retrato interessantíssimo de Hughes, cuja verossimilhança não importa nem um pouco. Neste contexto, a escolha de Leonardo DiCaprio para o papel parece adequadíssima, numa história tão fascinante que até parece real (não sei se todo mundo vai entender, mas como isto não é jornalismo _nem mesmo jornalismo gonzo...). Alguém aí lembrou de "Tucker"?

    Retrocedemos 30 anos no passado e reencontramos Scorsese olhando para o presente, hoje distante. Assim como "The Aviator", "Alice Doesn't Live Here Anymore" não era um projeto original de Scorsa, mas oferecido a ele por outrem. Numa época pré-"Star Wars" (estou devendo um texto sobre a trilogia original, um dia rola), o que, hoje, poderia até significar "pré-tudo" (uma grande besteira, é claro), o diretor consegue pegar um roteiro que, à primeira vista, não tinha nada a ver com o seu universo de novaiorquino descendente de italianos, e conseguir imprimir suas marcas: uns toques de cinefilia (como a evidente homenagem a "O Mágico de Oz" no prólogo), de paixão pela música pop (a trilha sonora é ótima, como esperado num filme em que a protagonista se pretende cantora), Harvey Keitel quebrando tudo e um rascunho do que Jodie Foster, então moleca, faria em "Taxi Driver" (que, não à toa, também cita Kris Kristofferson).

    Mas há algo neste "road movie" que o faz "menor" (é importante que este "menor" esteja entre aspas) do que muitos dos filmes posteriores de Scorsese, e me parece que não se trata necessariamente de falta de experiência, mas sim de ambição. "Alice..." parece ter sido um desses exercícios saudáveis que certos diretores mergulham de tempos em tempos, como que para se testarem. Tenho a impressão de que foi um filme mais gostoso de fazer do que de assistir (o molequinho Alfred Lutter, hoje um engenheiro trabalhando com informática _bem, cara de nerd ele já tinha_, é muito engraçado), embora esteja longe de configurar um trabalho desprezível. Há sensibilidade de sobra durante praticamente todas as cenas, além de uma evidente disposição do diretor em mergulhar mais profundamente do que a média no dito "universo feminino", a princípio não muito associado ao homem. Belo filminho, que deveria ser mais conhecido, apesar de ter virado série de TV...

    Cerca de dez anos depois, Scorsese estava numa pior: "A Última Tentação de Cristo", filme que ele queria fazer desde o início dos anos 1970, teve sua produção cancelada. Seu filme anterior, "O Rei da Comédia", tinha sido uma experiência bastante desagradável, e o diretor sentia que nunca mais faria outro filme. É até irônico que ele tenha vindo a dirigir "After Hours" (o título em português é um dos mais idiotas da história), que mostra uma espécie de calvário novaiorquino numa noite que parece não ter fim.

    Vi o filme na Globo, quando era criança, e me lembro de ter achado tudo muito esquisito e angustiante _ou seja, as lembranças que eu tinha do coitado do Griffin Dunne não era nada agradáveis. Agradável foi rever o filme e descobrir que ele é simplesmente hilariante, com uma câmera fantástica (e uma Linda Fiorentino que faz jus a seu prenome), e que consegue se manter moderno mesmo sendo muito fiel ao seu zeitgeist (com direito a Cheech & Chong e tudo). Difícil imaginar o que teria saído se Tim Burton tivesse mesmo realizado o filme, mas provavelmente não teria ficado tão bom quanto a versão de Scorsese. A trilha sonora também é um deleite.

    Voltando lá para trás de novo, "Who's That Knocking at my Door" é uma gratíssima surpresa. Praticamente todo mundo que conheço havia falado mal do filme, mas ele mostra que as raízes de Scorsese já estavam todas ali (não é à toa que o filme começa com a mãe do diretor). Ruas de NY, violência, Harvey Keitel (descoberto através de anúncio em jornal), música, cinefilia (com destaque adequadíssimo para John Ford), catolicismo (e mesmo um pouco de nouvelle vague _Godard, em especial), até parece que o diretor queria colocar tudo o que tinha em um só filme, coisas da juventude. Feito durante anos, a princípio como filme estudantil, mas que acabou se profissionalizando, é natural que "Quem Bate à Minha Porta?" seja quase uma colcha de retalhos (o trecho em que toca "The End" foi filmado quatro anos depois do resto do filme, só pra colocar mulher pelada e deixar tudo mais comercial), mas ainda assim é uma obra que empolga pela evidente paixão empregada em sua produção, mesmo que Scorsese ainda não soubesse contar direito uma história. E quem pensa que contar histórias é fácil e que esta não é a função do cinema, sinceramente, vá pastar.

    P. S. Falando no homem, vamos citar um trecho de seu "Uma Viagem Pessoal pelo Cinema Americano", recentemente lançado por aqui na forma de livro pela CosacNaify. Aqui, ele fala de um John e acaba citando outro:

    "Cassavetes encarnou a emergência de uma nova escola de cinema de guerrilha em Nova York. Seus filmes eram feitos literalmente na base da confiança. John era destemido _um verdadeiro renegado montando um psicodrama atrás do outro com a cumplicidade de um pequeno grupo de amigos. Ele insistia em ter 'prazer' ao fazer filmes _enquanto buscava algum tipo de verdade, talvez mesmo uma reveleção.

    John Cassavetes (1984): Ter uma filosofia é saber como amar e saber onde colocar o amor. Você não pode colocá-lo em toda parte. Teria que ser um sacerdote para dizer: 'Sim, meu filho, ou sim, minha filha, Deus te abençoe'. Mas as pessoas não vivem desse jeito. Elas vivem com raiva e hostilidade e problemas. E falta de dinheiro, sabe, decepções tremendas na vida. Então o que elas precisam é de uma filosofia. O que eu acho que todo mundo precisa é de uma maneira de dizer: 'Onde e como eu posso amar e ser amado de modo a viver com algum grau de paz?'. Então é por isso que eu preciso que os personagens realmente analisem o amor, discutam o amor, matem-no, destruam-no, firam-se uns aos outros, façam tudo aquilo, naquela guerra, naquele discurso polêmico e naquele retrato polêmico do que é a vida. E o resto da coisa realmente não me interessa. Pode interessar a outras pessoas, mas eu tenho uma mente monotemática. Só tem uma coisa que me interessa. O amor.

    Martin Scorsese: Todos os filmes de Cassavetes são 'épicos da alma humana'. Ao assisti-los, me vem à mente um comentário feito por John Ford a um colaborador que estava se queixando das péssimas condições do tempo quando eles tentavam rodar um filme no deserto. O homem perguntou: 'Olhe, sr. Ford, o que é que podemos filmar aqui?'. E Ford respondeu: 'O que podemos filmar? A coisa mais interessante e empolgante que existe no mundo: um rosto humano'."

    P. P. S. Agora, é hora de esculhambar. Republico aqui um dos monstros de Frankenstein costurados em uma singela comunidade do Orkut chamada, apropriadamente, Contos Tontos. Este aqui se chama "O Almeida" e foi escrito por Ana, Marcelo, Bruno, Alexandre e Maluco (todos os direitos reservados, é óbvio):

    "Almeida era uma das pessoas mais egoístas que já existiram. Do tipo que anda com espelhinho e só escuta a voz alheia se essa proferiu o seu articulado nome.
    Almeida quis ficar no escuro. Talvez para dormir e sonhar consigo mesmo. Mas não bastava desligar apenas a luz do seu quarto. Almeida desligou a chave-geral do prédio inteiro. Jamais iria passar pelo seu cérebro que tinha outras pessoas na edificação. E mais, que esses seres estivessem fazendo uso da energia elétrica. Almeida só percebeu seu erro quando uma pessoa EXATAMENTE idêntica a ele apareceu em sua frente e disse:
    _ Almeida! Arrependa-te de seus pecados!
    Ao que o Almeida, entre surpreso e satisfeito por finalmente ter encontrado alguém minimamente interessante para conversar, indagou:
    _ Mas quem és tu, ó insólita criatura?
    _ Ué, rapaz, não está me reconhecendo? Eu sou Deus, pô!
    _ Impossível _ replicou Almeida.
    _ Como assim, impossível?!? Se te digo que sou Deus, só posso ser DEUS. Achas que alguém seria louco de brincar com algo desta magnitude?
    _ Não só acho, tenho certeza. E te digo o porquê! EU sou Deus.
    _ Justamente... Sinal apenas de que sou onipresente...
    O Almeida (ou os Almeidas...) estava tão entretido em seu papo que nem ouviu as batidas insistentes na porta. Eram mais e mais ferozes, até que a madeira cedeu e entraram dezenas de moradores.
    Estupefatos de vê-lo discutindo com um espelho, desandaram a quebrar tudo na sala dele.
    Até que só sobrou o espelho. E foi do reflexo de Almeida, talvez assustado com a idéia de tomar uma sapatada e se ver tomado por rachaduras que iam estragar seu visual, que veio o alerta.
    - Ô, Almeidinha!!! Esses vizinhos mulambos que você tem estão destruindo seu apartamento. Faça alguma coisa!
    Almeida olhou toda aquela destruição e, em vez de se desesperar como prejuízo, deu um sorriso de canto de boca. Ele tinha um plano.
    Ajuntou toda a mobília destruída pelos vizinhos no centro da sala, formando uma pequena montanha de entulho. Colocou o espelho em pé, fincado no alto da montanha, de modo que continuava a ver seu reflexo. Pegou uma caixa de fósforos na cozinha e um litro de álcool na dispensa. Voltou para a sala e derramou metade do litro sobre a montanha de entulho, e a outra metade sobre seu corpo. E, olhando para o espelho, com a caixa de fósforos na mão, gritou:
    _ Cansei de ser Deus! A partir de agora, eu me tornarei Prometeu e trarei o fogo aos homens! Eu lhes devolverei a luz que outrora neguei à humanidade!
    Os vizinhos do Almeida, inertes diante de suas atitudes incompreensíveis, só esboçaram alguma reação depois que o dono do apartamento em frangalhos quebrou todos os palitos da caixa de fósforos, na vã tentativa de acendê-los: caíram na gargalhada.
    Impávido, o Almeida não perdeu as estribeiras. Dirigiu-se até a janela, que ficava no 18º andar e, antes de atirar-se aos ares, bradou para os vizinhos, novamente estupefatos:
    _ Eu sou a Fênix renascida! Meu destino é a glória eterna!
    Seu corpo nunca foi encontrado. Há quem diga que, naquela noite, o Almeida voou."

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