A gruta é mais extensa do que a gruta

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    terça-feira, setembro 28, 2004

    Minha Esperança É Você / A Vila / O Garoto Selvagem / Cama de Gato

    E isso é ameaça de quem pensa em você desde que nasceu.

    Meu aparente desprezo pela humanidade é apenas um disfarce mal-ajambrado do imenso amor que nutro por ela. Mas disso vocês já sabem.

    O que alguns de vocês talvez não saibam é que tive uma certa convivência, desde a infância, com pessoas portadoras de deficiências mentais, de casos de síndrome de Down a paralisias cerebrais mais graves. E, apesar de pessoas como estas serem, em geral, as mais carinhosas e confiáveis que você pode conhecer, elas ainda sofrem um tremendo preconceito e raramente são tratadas com a dignidade que merecem (por sinal, se tenho um mínimo de simpatia pela Xuxa é porque ela sempre fez um esforço, em seus programas, de incluir estas crianças, ajudando a combater tais preconceitos. Não é pouco).

    Pois "A Child Is Waiting" (1963), produção de Stanley Kramer dirigida por John Cassavetes, é justamente um raro exemplo de como retratar deficientes mentais com dignidade extrema. E para isso é preciso uma baita coragem. Porque não só no cinema, como na TV e no teatro de todo o mundo, atores que representam papéis de pessoas com algum tipo de deficiência ou de desordem mental acabam deixando as platéias impressionadas (como se a caricatura fosse o maior desafio para um ator)... Mas trazer para a tela pessoas com deficiências reais?

    Pois Cassa não teve medo e, com extrema sensibilidade, realiza um filme notável (também em termos formais: os enquadramentos e os movimentos de câmera são sofisticadíssimos, apenas o uso da trilha sonora me incomodou um pouco), com um elenco de renome (Burt Lancaster, Judy Garland e Gena Rowlands à frente), mas que não rouba a cena dos verdadeiros protagonistas da história.

    Já em "A Vila", Adrien Brody, oscarizado por "O Pianista", é o Geoffrey Rush (ou Russel Crowe ou Edward Norton ou...) da vez. Mas o diretor Shyamalan está longe de ser bobo, e utiliza tal clichê (e todos os outros contidos no filme) com eficiência, quase com maestria. "The Village" é, talvez, seu melhor filme (gostaria de rever "Corpo Fechado" para tirar a teima), mas, estranha e saborosamente, entrou para a categoria dos filmes que ou são amados ou são odiados. Por que será, hein?

    O filme é quase tão carregado de símbolos quanto os últimos trabalhos de Kubrick, e Shyamalan também se mostra extremamente competente ao criar e sustentar suspense (com direito até a pelo menos dois grandes sustos, também deliciosamente eficientes), sem ser desagradavelmente metido a inovador. "A Vila" é quase clássico, e se destaca justamente por não utilizar meros truques para manipular seu espectador. O brilhantismo (com duplo sentido) desta obra vem justamente do fato de ela não surpreender nem um pouco: dá para adivinhar o final do filme até mesmo antes de vê-lo (como eu o fiz), e é esta previsibilidade que potencializa o prazer de assistir a este filme.

    Como bônus, ainda temos William Hurt e o destaque para Bryce Dallas Howard (a verdadeira "surpresa" do filme, também interpretando uma deficiente...), que, ainda bem, pegou o papel que originalmente seria de Kirsten Dunst, num momento muito, muito feliz. Quero muito revê-lo, recomendo a quem não gostou que também o faça. Ah, e "Sinais" não teria sido muito mais legal se os tais não tivessem sido feitos por alienígenas? Mal aí.

    O caso de "O Garoto Selvagem" (1970) não é exatamente deficiência (mental ou física), mas as conseqüências do isolamento da sociedade (mas não como no filme de Shyamalan), como já vimos em outros personagens, reais ou fictícios, como Tarzan, Mowgli, Kaspar-Hauser etc. Baseada em uma história real, o drama de Victor, o menino que é encontrado vivendo nas matas de Aveyron, no final do século XVIII, e é educado pelo médico Jean Itard, nos é mostrada por François Truffaut com simplicidade, num filme de baixo orçamento, mas que nem por isso é descuidado (especialmente por ser "de época").

    O roteiro, baseado nos relatos do dr. Itard, é bastante inteligente. Truffaut foge do sentimentalismo barato não somente como diretor, mas também como ator, e faz um interessante paralelo com sua biografia ao dedicar o longa a Jean-Pierre Léaud. Não está entre os filmes mais conhecidos do francês, mas é um pequeno glóbulo duro, brilhante e nacarado.

    Falando em selvageria (ou em deficiência mental), "Cama de Gato" é um filme que tem dado o que falar no mundinho fashion do cinema já há alguns anos. Eu tenho certa ojeriza a manifestos artísticos e gosto mais de obra do que de discurso; o filme de Alexandre Stockler contém bem mais do segundo, mas isso não surpreende. Quanto a questões de honestidade (intelectual inclusive), não sabemos como foram captados os "depoimentos espontâneos" que iniciam e finalizam o filme (e que nos mostram o que a gente já está careca de conhecer _talvez este seja um filme adequado somente a maiores de 40 anos?), assim como todo o projeto foi financiado (questão que se torna mais interessante por o baixo custo da produção independente, cerca de R$ 13 mil, ter sido destacada pelo realizador). Infelizmente, não tem nada a ver com "A Bruxa de Blair" (será que "A Bruxa de Apucarana" teve mais sorte?), mas até que a tentativa de fazer algo "minimamente audacioso" não dá totalmente com os burros n'água; o início do filme, até pouco depois dos créditos, nem era tão ruim... Mas uma tentativa é apenas uma tentativa.

    P. S. Andei esquecendo de colocar trechos de livros sobre cinema que gosto de colecionar por aqui. Segue, então, mais um do livro do Merten, que cita dois cineastas de renome:

    "Nesse cinema tão violento, onde o herói, via de regra, é tão criticado, Aldrich apreciava trabalhar com personagens contrastantes, mas não gostava de dividi-los em bons e maus absolutos. O bom podia até vencer, já que o cineasta, mesmo do contra, continuava preso a muitas das convenções hollywoodianas. (...) Aldrich, mais do que qualquer outro diretor, foi quem deu forma definitiva à paranóia americana no cinema.

    Por causa disso, ele costuma ser comparado a Samuel Fuller (...). Fuller dá, em 'O Demônio das Onze Horas', a sua definição de cinema: emoção. (...) Na guerra de Fuller não existem heróis, só sobreviventes. Na de Aldrich existem heróis amargurados, que não são confiáveis porque não se iludem: sabem que a sociedade que os condecora também os discrimina e marginaliza. Aldrich, no fundo, era ainda mais derrisório do que Fuller: desde 'Morte sem Glória' insistia na sua tese de que a guerra exalta o ímpeto de destruição que a sociedade civil pune em tempo de paz."

    sábado, setembro 11, 2004

    Barry Lyndon / Dr. Fantástico ou Como Aprendi a Parar de Me Preocupar e Amar a Bomba

    We'll meet again, don't know where, don't know when.

    O tempo urge, ruge etc. Pois "Barry Lyndon" (1975), filme que o nosso velho amigo Citizen Kuby dirigiu entre este e este aqui, ultrapassa três horas de duração, mas passa bem mais rápido do que muito curta-metragem de estudante de cinema metido a artista que já tive o excruciante desprazer de assistir (qualquer diretor que eu realmente prezo define-se, antes de tudo, como "contador de histórias". Se você conhece algum mané que insiste em fazer discurso contrário só porque "estudou" cinema, desconfie).

    Sem dúvida (e com duplo sentido), trata-se de um grande filme, mas não chega perto de ser o melhor Kubrick, apesar de existirem afirmações discordantes a este respeito (sabe como é, o filme não é tão popular, então é chique ficar dizendo que é o melhor só porque menos gente viu). Mas o que me agrada tremendamente neste filme, além do óbvio (sua fotografia absolutamente extasiante _é famosa a história das lentes especialmente desenvolvidas para esta obra, capazes de captar ambientes exclusivamente iluminados a luz de vela, saudável característica do velho nerd com cara de gnomo, essa a de contribuir com inovações técnicas, como um George Lucas menos nocivo), é o fato de ele possuir um tremendo, imenso senso de humor. É, talvez, o filme menos frio do Kuby.

    Claro que o melodrama (de características viscontianas, talvez?) também tem o seu peso na história do interessantíssimo personagem interpretado por Ryan O'Neill (então uma estrela hollywoodiana no auge da popularidade). Partes do enredo (inspirado no livro de William Makepeace Thackeray _autor recentemente adaptado pela indiana Mira Nair, cujo "Vanity Fair" foi exibido na Veneza que premiou Mike Leigh e seu "Vera Drake"), inclusive, chegam a lembrar o novelão-mor "...E o Vento Levou"...

    Já "Dr. Strangelove or: How I Learned to Stop Worrying and Love the Bomb" (um filme que, de certa forma, encerra uma fase na carreira de seu diretor), de 1963, é uma comédia assumida (é quase histérica _o que dizer diante de uma frase como "Vocês não podem brigar aqui, esta é a Sala de Guerra!"?), mas versa sobre um assunto tão pesado (ainda hoje, apesar de aquela loucura de Guerra Fria e sua corrida armamentista ter, aparentemente, terminado) que não me surpreenderia se fosse encarada por alguns (ou muitos, especialmente aqueles preocupados com seus fluidos corporais, Coca-Cola inclusive) como filme de terror.

    O que também impressiona é saber que Kuby, notório pelo seu perfeccionismo quase insuportável, deixou que Peter Sellers (que, inicialmente, interpretaria quatro papéis, mas um acidente o impediu de encarnar também o major Kong _inesquecivelmente interpretado por Slim Pickens, ex-palhaço de rodeio que acabou fazendo um monte de papéis de caubóis e militares, aqui juntando ambos num só. Por sinal, Kuby queria que Pickens tivesse atuado também em "O Iluminado", no papel que ficou com Scatman Crothers, mas o ator recusou por não querer ficar repetindo tomadas até chegar perto da loucura) improvisasse praticamente durante quase toda a filmagem. George C. Scott também dá o seu showzinho, além de Sterling Hayden (curiosidade: é o filme de estréia de James Earl Jones). Infelizmente, problemas técnicos impediram que a última cena prevista para o filme, que mostrava uma guerra de tortas em plena Sala de Guerra (que, dizem, Reagan pensava realmente existir, quando assumiu a presidência dos EUA), pastelão puro. Mein führer, I can walk!

    P. S. Pra não dizer que não falei de "Olga"... Sinceramente, é menos pior do que eu pensava (não chega a ser um "Cazuza...", ufa), mas ainda é ruim. A experiência de vê-lo foi muito parecida com a de ver "A Paixão de Cristo": trata-se de um filme extremamente apelativo, sem um pingo de sutileza, o que acaba tranformando-o num espetáculo de uma chatice atroz. Eu quase dormi. Cadê a "interessância"?

    Cena da semana (ou da quinzena ou do mês, sei lá): Ao som de "O Messias", de Händel, um mendigo sujo e desdentado dança embriagadamente, vestido de noiva ("Viridiana", de Luís Buñuel, 1961).

    Na platéia