A gruta é mais extensa do que a gruta

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    sábado, abril 30, 2005

    O Evangelho Segundo São Mateus / A Última Tentação de Cristo

    If you strip away the myth from the man, you will see where we all soon will be.

    Saindo da sessão de "A Paixão de Cristo", perguntei a um dos amigos que encontrei lá (coisa meio rara, vários amigos comparecendo à mesma sessão sem combinar nada _se tivéssemos combinado, provavelmente não teria dado certo): "E aí, foi convertido?". Claro que era brincadeira, porque um filme daqueles não converte ninguém a nada, só assusta, aterroriza ou, no meu caso, entorpece.

    Muito diferente é o caso de "Il Vangelo Secondo Matteo" (1964), de Pier Paolo Pasolini. Não que eu tenha sido convertido à alguma coisa ou que fazer um filme que "evangelizasse" (pelo menos, religiosamente _quando partimos para o lado político, a coisa muda de figura) tenha sido o propósito do diretor (sempre tachado de ateu, comunista e gay _"herege" também costuma ser usado para classificá-lo). É muito interessante ver que o filme de um descrente (dedicado ao papa João XXIII, o "papa bom" _este Bento XVI não é a cara do Imperador Palpatine?) é muito mais cristão do que o de um crente.

    Mas é muito difícil um filme baseado nos evangelhos dar totalmente com os burros n'água (caso do filme do Mel Gibson e de alguns outros, como o "Jesus de Montreal", daquele chato do Denys "As Invasões Bárbaras" Arcand), porque a história é simplesmente boa demais. Tem drama, romance, política, ação etc. Tem tudo. Mas Pasolini, em vez de buscar emocionar as platéias por meio do drama, encena o primeiro dos evangelhos com certa frieza, que, paradoxalmente, acaba atingindo em cheio o espectador _muito por causa da música e dos acertos de casting.

    Já começamos o filme com um plano dos fantásticos olhos (e da estranha boca, que nunca fala) de Margherita Caruso (em seu único filme); outra presença extremamente marcante é a do espanhol Enrique Irazoqui, perfeito como um Cristo jovem, bonito porém exótico (aquela monocelha...). Pasolini, de certa forma, mostra que a santidade é bela, mas muito esquisita.

    O Jesus de Pasolini tem muito pouco de humano (como convém a filmes que agradem ao Vaticano); prega com dureza, deixa claro que quem ama a sua família mais do que o Filho de Deus não é digno de segui-lo; que não veio para trazer a paz, e sim para trazer a espada (frase que também aparecerá no filme de Scorsese); que sua mensagem é definitiva e deve ser espalhada por todas as nações. Considerado por muitos como um marxista "avant la lettre", o Jesus de Pasolini insiste na idéia de que é mais fácil um camelo passar por um buraco de agulha do que um rico ganhar a vida eterna. Mas também deixa bem claro que é preciso ser como as crianças, e demonstra com sutileza a importância da fé na belíssima cena em que anda sobre as águas.

    Diferentemente do filme de Gibson, Pasolini entende que o que move é a palavra (e agora me lembro de que preciso escrever um dia sobre o filme do Dreyer...), e deixa seu Jesus em primeiro plano, por minutos a fio, desfiando o evangelho de Mateus. Em outro momento importante, nos mostra o julgamento de Cristo por meio dos olhos de Pedro, numa subjetiva incrível (a maioria dos cineastas trabalharia com cortes e enquadraria Jesus com câmera baixa; Pasolini supera esta mediocridade e atinge momentos de grande cinema). Considerando a proposta do diretor, é de uma grandeza ética impressionante.

    Mas entre as muitas coisas que mais impressionam neste filme (até agora, o melhor que já vi a respeito da vida de Cristo _sim, bateu até o "Rei dos Reis" do Nicholas Ray, pelo menos até uma revisão deste) está a música. Pasolini foi extremamente feliz na escolha da trilha sonora; a música que abre o filme é ao mesmo tempo sacra e profana, com uma percussão que nos remete à África; sempre que ela aparece (e, aqui, a importância dos cortes bem feitos também é imensa) é para causar um tremendo impacto, seja na ressureição de Cristo ou, especialmente, na cura de um leproso que faz o Homem-Elefante parecer uma Miss Brasil. Outro momento acachapante é quando Jesus é condenado à morte e Judas se arrepende, jogando as moedas aos zelotes: começa a tocar um blues (!!!), daqueles bem rústicos e doloridos. É preciso ver para crer, homens de pouca fé.

    Já o filme que Martin Scorsese tanto lutou para realizar (Sidney Lumet andou interessado em adaptar o livro de Kazantzakis, mas era mesmo mais interessante que um católico o fizesse) deixa logo de cara que não é inspirado pelos evangelhos, e sim uma tentativa de compreender as contradições da carne e do espírito (tema que, de certa forma, aparece em todos os filmes do diretor). Willem Dafoe aparece como um Jesus que não inspira grande admiração, pelo contrário: é uma vítima, um mero títere atormentado por vozes e sombras. Como ele próprio diz, seu deus é o medo. E o medo sempre foi algo tremendamente ligado ao sentimento religioso (Mel Gibson e esses pastores evangélicos salafrários que o digam).

    O Jesus de Scorsese, ao contrário do de Pasolini, se mostra contraditório, imperfeito, bem mais perto de ser humano: ele quer matar as pessoas que estavam apedrejando Maria Madalena, mas, quando abre a boca, o que sai é amor; mais tarde, quando vai ao templo acompanhado de seus seguidores, o que ele prega é o uso do machado, para derrubar a árvore da maldade dos homens; mas, ao final, sua sina é o sacrifício. Não ouvimos da boca dele palavras fortes; mesmo quando opera milagres, o faz às custas de muito sofrimento ou de certa soberba (quando transforma água em vinho, deixa transparecer fanfarronice). Quando deixa a cruz e vai viver como um homem, de repente passa a ver a beleza do mundo, mas de uma redoma imaginária, quebrada apenas quando se encontra com Paulo, que lhe informa que existe um Jesus muito mais importante, que morreu e ressuscitou. Quando decide voltar a ela e abraçar o seu verdadeiro destino, o filme... O que acontece com o filme? Ah...

    P. S. Falando em Scorsese (e em pais e filhos), vamos a ele, em mais um trecho de "Uma Viagem Pessoal pelo Cinema Americano":

    "Você não podia escapar do sistema; estava em dívida com a quadrilha por toda a vida; eles usavam você para sempre. Queriam que você sacrificasse sua própria família. Essa demência culminou em 'O Poderoso Chefão', de Francis Coppola. Como Al Pacino descobria ao voltar da Segunda Guerra Mundial, o filho tinha que seguir o caminho criminoso de seu pai. Quando você era um Corleone, não havia como despir o uniforme. Era uma família infeliz, unida pelo medo e dilacerada pela traição, mas você a servia sem nem sequer qustionar sua legitimidade _como se ela fosse seu país. Os valores americanos _família, livre iniciativa, patriotismo_ eram virados do avesso. O próprio individualismo estava morto. A organização era um estado dentro do estado; o gângster, um presidente de conselho; e o crime, um meio de vida."

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