A gruta é mais extensa do que a gruta

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    sábado, julho 24, 2004

    Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban / Shrek 2 / Homem-Aranha 2

    Eu sou a lâmpida, e as muié é as mariposa, que fica dando volta em volta de mim, toda noite, só pra me beijar.

    Não sou (e, pelo que me lembro, nunca fui) de torcer o nariz para os blockbusters hollywoodianos e suas seqüências. Detesto ambos os extremos: gente deslumbrada que fica falando de "arte" como se fosse algo transcendental, quase mágico (e não trabalho duro, duríssimo, sem glamour algum), enquanto segura o copo de uísque com o dedo mindinho ereto e deixa o olhar perdido no vazio, e gente insensível que acha que quem critica Hollywood são uns "chatos".

    Mas confesso que fui assistir à adaptação para as telas do terceiro volume da série do Harry Potter só porque estava muitíssimo bem acompanhado de um belo, gentil e querido exemplar do sexo feminino (e porque era o filme aparentemente "menos pior" dentre as opções disponíveis). Não li nem vou ler nenhum dos livros (até leria se tivesse 8 anos de idade...), assim como não vi o segundo filme da série _o primeiro, vi por pura curiosidade ou por falta de coisa melhor pra fazer ou por que também estava acompanhando uma beldade, já não me lembro mais. Ou seja, para deixar bem claro: acho o Harry Potter ótimo para as crianças (se ele é um agente do capitalismo ou um ativista antiglobalização, não só não sei e sequer chego a ter raiva de quem sabe como acho isso secundário, mera punheta de intelectual de meia tigela), mas acho muito, muito esquisito ele ser lido por gente com mais de 14 anos... Mas deve-se respeitar as diferenças, e vocês sabem que eu respeito.

    Voltando ao filme: não sei se o fato de Chris Columbus ter deixado a direção para Alfonso Cuarón (parece que até o Kenneth Branagh e o Spielby estiveram na briga para a vaga) fez grande diferença; apesar de este filme ser considerado mais "dark" que os outros (mas não é por que os livros também vão ficando mais pesados?), a impressão que tive foi de que pouca coisa mudou, além do envelhecimento evidente do protagonista e de seus dois amigos. Ah, e a personagem de Gary Oldman (cuja presença é uma das coisas que mais me deixou curioso em relação ao projeto) me decepcionou um pouco, ficou meio artificial por causa de uma transição um tanto brusca demais, que deixou o conjunto meio frouxo. Mas a brincadeira com os paradoxos temporais a la "Back to the Future" ficou interessante, assim como aquelas cenas em que Potter cavalga o grifo e a do ônibus. Enfim, talvez eu veja o próximo, se novamente eu estiver acompanhado de uma bela fã da série...

    Quanto a "Shrek 2", é mais um caso de curiosidade que vitima o gato. Gostei bastante do primeiro filme, divertido, e este é ainda melhor; mesmo assim, já não me entusiasma tanto a lucrativa franquia (a seqüência parece que já entrou no top 5 das bilheterias americanas, e a parte 3 já está engatilhada). Em parte porque o impacto do excelente trabalho da animação digital (melhorado nesta seqüência) diminuiu; também porque o melhor personagem da série, interpretado pelo melhor ator envolvido (Burro Falante/Eddie Murphy), foi muito mal aproveitado desta vez. De longe, a melhor cena do filme é logo no início, quando o Burro empata a lua-de-mel de Shrek e sua Fiona...

    Mas a qualidade do filme, não só na forma, mas também no conteúdo (até que o roteiro é esperto) fica evidente, por exemplo, na cena musical da Fada Madrinha, aqui transformada em gangster (boa sacada), e em algumas outras pequenas piadas, espalhadas aqui e ali. Impressionante mesmo é a trilha sonora, justamente o ponto fraco do primeiro filme; eu nunca imaginei que fosse ouvir Nick Cave e Tom Waits numa obra tão pop...

    Mas, em termos de comédia e de piadas eficientes, o filme do ogro verde perde feio para o da aranha azul e vermelha. O que há de mais impressionante no segundo longa do Sam Raimi sobre o cabeça de teia é que se trata de uma baita comédia! Depois de um bom filme, mas que pecava pela falta de personalidade, iniciando a série, o diretor finalmente resolve botar sua assinatura no projeto; e eis que temos uma cena num hospital que é puro "Evil Dead", além da hilária participação especial de Bruce Campbell como um porteiro de teatro.

    Também é impressionante vermos funcionar o discurso de Tia May (Rosemary Harris, agora com mais espaço, chega muito perto de roubar o filme) sobre heroísmo; felizmente, estamos longe do patriotismo babaca e maldoso de Bush e seus asseclas. Outro momento marcante vem logo após a cena do trem; juro que me deu vontade de chorar, algo raro no cinema e muito inesperado num filme como este. E, para arrematar, o fato de as cenas de ação serem, sabiamente, praticamente deixadas de lado; o que vemos, o tempo todo, é o drama de Peter Parker _a máscara do Aranha torna-se, cada vez mais, um acessório descartável.

    P. S. Aí vai o trecho final de "Cinema: Trajetória no Subdesenvolvimento" _que, lamentavelmente, ainda tem certa atualidade, após mais de três décadas. Mas voltaremos ao Paulo Emilio em breve...

    "Se, em determinado momento, o Cinema Novo ficou órfão de público, a recíproca teve conseqüências ainda mais aflitivas. O núcleo de espectadores recrutados na intelligentsia _particularmente em seus setores juvenis_ tendia, por um lado, a se ampliar socialmente e, por outro, a se interessar por outras faces do filme brasileiro, além da cinemanovista. A deterioração da conjuntura estimulante dos inícios de 1960 fez com que o público intelectual que corresponde hoje ao daquele tempo se encontre órfão de cinema brasileiro e voltado inteiramente para o estrangeiro, onde julga, às vezes, descobrir alimento para sua inconfidência cultural. Na realidade, ele encontra apenas uma compensação falaciosa, uma diversão que o impede de assumir a frustração, primeiro passo para ultrapassá-la. Rejeitando uma mediocridade, com a qual possui vínculos profundos, em favor de uma qualidade importada das metrópoles com as quais tem pouco o que ver, esse público exala uma passividade que é a própria negação da independência a que aspira. Dar as costas ao cinema brasileiro é uma forma de cansaço diante da problemática do ocupado e indica um dos caminhos de reinstalação na ótica do ocupante. A esterilidade do conforto intelectual e artístico que o filme estrangeiro pródigo faz da parcela de público que nos interessa uma aristocracia do nada, uma entidade em suma muito mais subdesenvolvida do que o cinema brasileiro que desertou. Não há nada a fazer a não ser constatar. Este setor de espectadores nunca encontrará em seu corpo músculos para sair da passividade, assim como o cinema brasileiro não possui força própria para escapar ao subdesenvolvimento. Ambos dependem da reanimação sem milagre da vida brasileira e se reencontrarão no processo cultural que daí nascerá."

    terça-feira, julho 13, 2004

    Cazuza - O Tempo Não Pára / Amadeus

    Ouça-me bem, querida: preste atenção, o mundo é um moinho. Vai triturar teus sonhos tão mesquinhos, vai reduzir as ilusões a pó.

    Talvez seja mesmo uma característica dos povos cristãos essa mania de endeusar ídolos mortos precocemente. Na música, então, os exemplos são múltiplos: de Raul Seixas a John Lennon, de Jimi Hendrix a Elvis Presley, de Cazuza a Renato Russo. Este dois últimos, então, ganham força não apenas por terem morrido em conseqüência da Aids, a grande praga incurável que muitos já chamaram de "flagelo de Deus" e que vem apavorando o mundo há mais de 20 anos (o que contribui para que, até inconscientemente, muitos os encarem como mártires, de certa forma), mas principalmente por terem feito sucesso nos anos 80, década na qual a população jovem adulta da atualidade se criou e, compreensivelmente, tem grande parte de suas memórias afetivas enraizadas. Então, uma cinebiografia de qualquer um deles certamente encontraria respaldo razoável no público; fazer filmes sobre esses ídolos é uma esperteza comparável à de Mel Gibson e sua "Paixão de Cristo".

    Pois foram lá, a Globo e mais um pessoal, pegaram dinheiro dos nossos impostos e fizeram uma cinebiografia do Cazuza. OK, legal. Que ele merece, ninguém discute. Ainda mais eu, que sou fã (bem mais dele do que do Russo, por sinal; ora, a diferença de qualidade das letras de ambos é abissal, mas não é isso que vai se debater aqui). Só que, justamente por isso, eu acho que ele merecia coisa muito melhor do que este filme de Sandra Werneck e Walter Carvalho, de longe o pior que vi nos cinemas este ano. De longe.

    O filme acabava, e eu me perguntava, numa grande e lotada sala de cinema de São Paulo: "por que isto existe? Qual a razão desta coisa existir?". Eu não sei. Talvez consolar a Lucinha Araújo, que experimentou a dor inconcebível de ver seu único filho, um artista popular amado em seu país, agonizar e morrer ainda bem jovem (como Maria teria visto Jesus morrer na cruz _mas vamos parar com a comparação antes que algum maluco qualquer venha me xingar de tudo quanto é nome). O filme foi baseado num livro da Lucinha, "Só as Mães São Felizes", e a própria aparece no filme, não apenas (bem) encarnada por Marieta Severo, mas em pessoa, em vários closes durante aquele show que a Globo exibiu e que se tornou clássico. É a única explicação que consegui encontrar (tirando a óbvia, a de fazer a máquina capitalista girar).

    Uma das letras de Cazuza diz que "só não há perdão para o chato". Pois este filme é pior do que isso. Sequer nos cutuca. Não há pungência. Impera a caretice, formal e de conteúdo. O filme tem a intenção de relatar a verdade dos fatos, mas não passa verdade nenhuma; mesmo correspondendo aos fatos, os mesmos são retratados, em sua maioria, de forma grotescamente falsa, mas sem beleza, sem sonho, sem delírio. Antes fosse alegórico de vez ou então um documentário; mas fazer um filme que não faz falta alguma sobre um artista que faz muita falta é um pecado, quase um crime.

    "Cazuza - O Tempo Perdido" é um filme que não acrescenta nada a coisa nenhuma; mesmo a atuação de Daniel Oliveira (esforçadíssimo, não há como negar) dá com os burros n'água, embora melhore bastante no final. Mas não o suficiente para salvar esta obra da indigência. Daqui a pouco, ninguém mais vai lembrar que este filme existiu; aí, talvez façam um retrato decente sobre o ídolo e sua época, que, apesar de ter cultuada, nos anos 2000, grande parte do que produziu de pior, foi mais rica do que se supõe.

    Pois foi nos anos 80 que Milos Forman adaptou para o cinema a peça teatral "Amadeus". Um filme extremamente competente e bem-feito (ótima recriação de época e trilha sonora), mas nunca brilhante. Quem brilha, aqui, são os atores: F. Murray Abraham e Tom Hulce estão soberbos como Salieri e Mozart. Trechos da vida deste último são narrados pelo primeiro, que, a partir de um delírio de inspiração religiosa, teria vindo a causar a morte de Mozart. Um retrato da contraposição entre o medíocre bem-sucedido e o gênio miserável, um tema clichê (porque tão real quanto perene; a vida vem nos mostrando isso há milênios), aqui encarado com certo frescor.

    O Mozart de Hulce é um popstar: usa uma peruca meio "Ziggy Stardust", é rebelde, extravagante e petulante, se dá bem com as "groupies" e vive na boemia, torrando tudo o que ganha. No final das contas, de forma também meio cristã, seu fracasso representa seu triunfo. Salieri, o casto amante da arte, pergunta a si mesmo se o talento (divino?) de Mozart poderia ser percebido apenas com o contemplar de sua face; horrorizado, ele o reconhece num homem que considera vulgar, obsceno, ridículo. É uma idéia muito boa que, se não foi traduzida em imagens à altura, pelo menos não foi totalmente desperdiçada.

    P. S. Falando em rock'n'roll, vamos voltar a Paulo Emilio Salles Gomes e seu "Cinema: Trajetória no Subdesenvolvimento" (1973), num trecho em que ele fala do que de mais punk o nosso cinema produziu:

    "Desintegrado o Cinema Novo, os seus principais participantes, agora órfãos de público catalizador, se dispersaram em carreiras individuais norteadas pelo temperamento e gosto de cada um, dentro do condicionamento estreito que envolve todos. Nenhum deles, porém, se instalou na falta de esperança que cercou a agonia desse cinema. A linha do desespero foi retomada por uma corrente que se opôs frontalmente ao que tinha sido o cinemanovismo e que se autodeterminou, pelo menos em São Paulo, Cinema do Lixo. O novo surto situou-se na passagem dos anos sessenta para os setenta e durou aproximadamente três anos. A vintena de filmes produzidos se situou, com raras exceções, numa maior ou menor área de clandestinidade decorrende de uma opção fortalecida pelos obstáculos habituais do comércio e da censura. O Lixo não é claro como a Bela Época, a Chanchada ou o Cinema Novo, onde se formou a maior parte de seus quadros. Estes poderiam, em outras circunstâncias, ter prolongado e rejuvenescido a ação do Cinema Novo, cujo universo e tema retomam em parte, mas agora em termos de aviltamento, sarcasmo e uma crueldade que nas melhores obras se torna quase insuportável pela neutra indiferença da abordagem. Conglomerado heterogêneo de artistas nervosos da cidade e de artesãos do subúrbio, o Lixo propõe um anarquismo sem qualquer rigor ou cultura e tende a transformar a plebe em ralé, o ocupado em lixo. Esse submundo degradado percorrido por cortejos grotescos, condenado ao absurdo, mutilado pelo crime, pelo sexo e pelo trabalho escravo, sem esperança ou contaminado pela falácia, é porém animado e remido por uma inarticulada cólera. O Lixo teve tempo, antes de perfazer sua vocação suicida, de produzir um timbre humano único no cinema nacional. Isolada na clandestinidade, essa última corrente de rebeldia cinematográfica compõe de certa forma um gráfico do desespero juvenil no último qüinqüênio. Não foi porém somente através do Lixo que o nosso filme se vinculou de maneira aguda às preocupações brasileiras do período. O setor documental com intenções culturais e didáticas reassumiu, em nível de consciência e realização mais alto, a função reveladora que o gênero desempenhara anteriormente. Focalizando sobretudo as formas arcaicas da vida nordestina e constituindo de certa forma o prolongamento, agora sereno e paciente, do enfoque cinemanovista, esses filmes documentam a nobreza intrínseca do ocupado e da sua competência. Quando se voltou para o cangaço, esse cinema o evocou com uma profundidade de que a melhor ficção fora incapaz."

    sábado, julho 03, 2004

    Tróia / Gladiador / Coração Valente

    Help them to learn songs of joy instead of burn, baby, burn. Let us show them how to play the pipes of peace.

    Eu nunca consegui compreender a necessidade que certas pessoas têm de partir para a porrada, em vez de resolverem suas míseras diferenças por meio do diálogo. A última vez que me lembro de ter saído no braço com alguém foi quando eu tinha 8 ou 9 anos de idade. Eu era razoavelmente bom de briga (acho que é de família), inclusive era capaz de bater em moleques maiores do que eu com certa facilidade, mas nunca fui valentão; sempre tive verdadeiro horror a violência e só batia em último caso, para me defender. Desde muito cedo, aprendi que a melhor maneira de derrotar seus inimigos é torná-los seus amigos.

    Agora, vai fazer a mesma coisa no cinema; em vez de um blockbuster, sai um filme do Rohmer. A galera quer ver sangue, gafanhoto. É paradoxal: fora das telas (ou dos palcos, dos livros etc.), a violência é grotesca, feia, bruta, abominável; em certas obras, é como um balé, coreografada, edulcorada, empolgante. Vira arte. Some um grande orçamento, capaz de comprar belas locações, cenógrafos e figurinistas, compositores e técnicos, dublês (d)e astros de Hollywood e pronto: salta uma superprodução com ares de épico histórico.

    No caso de "Tróia" (visto no Cine Votuporanga, o pulgueiro mais importante do Brasil), filme que superou minhas expectativas, a inspiração vem da "Ilíada". A adaptação é extremamente livre (o poema homérico começa com a discussão entre Aquiles e Agamênon, nas praias de Tróia, após quase dez anos de batalha, e termina com os funerais de Heitor _ou seja, o filme começa bem antes e termina bem depois), o que é ótimo; por mais que o antipático Aquiles de Brad Pitt apresente (exageradamente _o que são aqueles pulinhos?) características sobre-humanas, a ausência dos deuses (e de muitos outros personagens _os que sobraram estão bem representados: digno de nota é o Príamo de Peter O'Toole, assim como o Páris de Orlando Bloom, de quem muitos reclamaram, mas que se ajustou bem ao papel; Eric Bana convence como Heitor, causa empatia, o que não é pouco, e a Helena... bem, claro que ela é uma coisinha tão bonitinha do pai, mas uma beleza hollywoodiana comum, nada tão marcante) foi bastante inteligente.

    O filme também é muito menos violento do que o poema; este fornece descrições extremamente detalhadas da ação do ferro contra ossos e carnes. Se a versão para o cinema lhe fosse minimamente fiel neste aspecto, seriam poucos os que teriam estômago para vê-la. Não tive, como muitos têm (ou poderiam ter), a impressão de que se trata de uma grotesca glorificação da guerra ou de que existe uma agenda política por trás de tudo, mas de mais uma produção industrial que se apóia em clichês para alcançar o lucro certo. O capitalismo tem dessas coisas, o show tem de continuar; o tempo passa, o filme, também.

    O mesmo não ocorreu com o "Gladiador" de Ridley Scott. Quando eu ainda trabalhava na redação da Ilustrada, tive de editar um artigo do Marcelo Coelho sobre o filme; o título que escolhi (naquela época, era eu quem intitulava os textos dele) causou polêmica não só entre os leitores (teve carta publicada que clamava: "deixem Hollywood nos entreter!" _será que era ironia?), mas também em parte da equipe do caderno, porque condensava a surra implacável que o meu xará dava na produção. O mote era justamente essa história de que "Gladiador" glorificava o imperialismo americano etc. E olha que isso foi mais de um ano antes do 11 de setembro de 2001...

    Eu nem vejo muito por esse lado; tenho uma admiração imensa por essas superproduções, justamente pelo aspecto da (super)produção; é uma proeza de vulto dar forma a tais filmes. Trabalho e investimentos colossais. No caso de "Gladiador", todo o fausto e toda a competência formal estão evidentes; o que impressiona é que elas fazem parte de um filme muito, muito pequeno (o bom documentário histórico sobre gladiadores romanos que vem no DVD de extras _e faz interessantes analogias com a contemporaneidade_ vale mais do que a obra principal). A gloriosa exceção é a interpretação de Richard Harris como o imperador Marco Aurélio.

    Diferentemente de "Tróia", "Gladiador" investe na romantização da vida após a morte, com direito a trilha sonora apelativa de praxe. Coisa parecida ocorre em "Coração Valente" (no qual o herói também tem a amada assassinada), mas Mel Gibson a retrata de uma maneira muito mais talentosa. Fica também evidente a coerência do diretor (e a competência do produtor; a primeira grande cena de batalha, com direito a cavalos mecânicos e tudo, é, literalmente, de arrepiar); comparando a saga de William Wallace com "A Paixão de Cristo", não dá para ninguém dizer que Gibson não tem estilo (ou não capricha; o que não falta são planos belos e bem encadeados, aliados a caracterizações marcantes _até o Brian Cox aparece, antes de ser tão hypado na tela grande...). Até o fantasma da personagem da bela Catherine McCormack é retratada da mesma forma que o Satanás da Rosalinda Celentano...

    "Coração Valente" é um filme obviamente cristão (bem mais do que o seu sucessor _que, apesar dos problemas já discutidos aqui, nunca chega ao ponto de ser uma porcaria), e Gibson faz questão de deixar isto bem claro. O título do making of de seu filme, "A Paixão de um Cineasta", deixa ainda mais claro qual tema é a obsessão do ator/diretor. Vem mais por aí, a gente vai ver.

    P. S. Mais um trecho do livro do Merten, sobre dois grandes diretores que também fizeram suas superproduções históricas (lembrando que, quando faço essas citações aqui, não quer dizer que eu concorde com elas; é apenas mais material para discussão):

    "Jean-Luc Godard, nos seus tempos de crítico, escreveu que, se fosse possível fundir Nicholas Ray e Anthony Mann, o resultado seria o maior diretor de cinema do mundo. Ninguém sabia revelar um personagem no plano interior como Ray, ninguém era melhor no plano externo do que Mann. Ray escolheu para personagem central de seus filmes o homem ferido. Criou obras de um lirismo imenso, de grande riqueza sociológica: 'Juventude Transviada' é um de seus filmes definitivos. Mann destacou-se no cinema de ação, primeiro no thriller policial de inspiração noir, depois numa memorável série de westerns interpretada por James Stewart até criar, com 'El Cid', o mais grandioso dos épicos.

    Os westerns de Mann são o que de mais perfeito e puro o gênero produziu, escreveram Bertrand Tavernier e Jean-Pierre Coursodon. Pode ser que a 'pureza' de Mann não fosse a mesma dos westerns de John Ford ou de Budd Boetticher. Mann será quase sempre o psicanalista do western. Ray teve um final de carreira melancólico após o fracasso, de público e de crítica, de duas superproduções sucessivas, 'Rei dos Reis' e '55 Dias de Pequim'. É o cineasta dos atormentados. A paz de Jesus Cristo não é material para ele. Mann saiu-se melhor: 'El Cid' é sublime, e 'A Queda do Império Romano', que antecipa 'Gladiador', é, no seu desfecho extraordinário, o mais glauberiano dos filmes que Glauber Rocha não realizou. Mann fez o 'Terra em Transe' da Antigüidade clássica."

    P. P. S. Raul Seixas cantou que "lá em Nova York todo mundo é feliz. Vi o Marlon dançando o último tango de Paris". Agora, o povo quer saber: qual a melhor atuação do Brandão no cinema?

    Na platéia