A gruta é mais extensa do que a gruta

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    terça-feira, julho 13, 2004

    Cazuza - O Tempo Não Pára / Amadeus

    Ouça-me bem, querida: preste atenção, o mundo é um moinho. Vai triturar teus sonhos tão mesquinhos, vai reduzir as ilusões a pó.

    Talvez seja mesmo uma característica dos povos cristãos essa mania de endeusar ídolos mortos precocemente. Na música, então, os exemplos são múltiplos: de Raul Seixas a John Lennon, de Jimi Hendrix a Elvis Presley, de Cazuza a Renato Russo. Este dois últimos, então, ganham força não apenas por terem morrido em conseqüência da Aids, a grande praga incurável que muitos já chamaram de "flagelo de Deus" e que vem apavorando o mundo há mais de 20 anos (o que contribui para que, até inconscientemente, muitos os encarem como mártires, de certa forma), mas principalmente por terem feito sucesso nos anos 80, década na qual a população jovem adulta da atualidade se criou e, compreensivelmente, tem grande parte de suas memórias afetivas enraizadas. Então, uma cinebiografia de qualquer um deles certamente encontraria respaldo razoável no público; fazer filmes sobre esses ídolos é uma esperteza comparável à de Mel Gibson e sua "Paixão de Cristo".

    Pois foram lá, a Globo e mais um pessoal, pegaram dinheiro dos nossos impostos e fizeram uma cinebiografia do Cazuza. OK, legal. Que ele merece, ninguém discute. Ainda mais eu, que sou fã (bem mais dele do que do Russo, por sinal; ora, a diferença de qualidade das letras de ambos é abissal, mas não é isso que vai se debater aqui). Só que, justamente por isso, eu acho que ele merecia coisa muito melhor do que este filme de Sandra Werneck e Walter Carvalho, de longe o pior que vi nos cinemas este ano. De longe.

    O filme acabava, e eu me perguntava, numa grande e lotada sala de cinema de São Paulo: "por que isto existe? Qual a razão desta coisa existir?". Eu não sei. Talvez consolar a Lucinha Araújo, que experimentou a dor inconcebível de ver seu único filho, um artista popular amado em seu país, agonizar e morrer ainda bem jovem (como Maria teria visto Jesus morrer na cruz _mas vamos parar com a comparação antes que algum maluco qualquer venha me xingar de tudo quanto é nome). O filme foi baseado num livro da Lucinha, "Só as Mães São Felizes", e a própria aparece no filme, não apenas (bem) encarnada por Marieta Severo, mas em pessoa, em vários closes durante aquele show que a Globo exibiu e que se tornou clássico. É a única explicação que consegui encontrar (tirando a óbvia, a de fazer a máquina capitalista girar).

    Uma das letras de Cazuza diz que "só não há perdão para o chato". Pois este filme é pior do que isso. Sequer nos cutuca. Não há pungência. Impera a caretice, formal e de conteúdo. O filme tem a intenção de relatar a verdade dos fatos, mas não passa verdade nenhuma; mesmo correspondendo aos fatos, os mesmos são retratados, em sua maioria, de forma grotescamente falsa, mas sem beleza, sem sonho, sem delírio. Antes fosse alegórico de vez ou então um documentário; mas fazer um filme que não faz falta alguma sobre um artista que faz muita falta é um pecado, quase um crime.

    "Cazuza - O Tempo Perdido" é um filme que não acrescenta nada a coisa nenhuma; mesmo a atuação de Daniel Oliveira (esforçadíssimo, não há como negar) dá com os burros n'água, embora melhore bastante no final. Mas não o suficiente para salvar esta obra da indigência. Daqui a pouco, ninguém mais vai lembrar que este filme existiu; aí, talvez façam um retrato decente sobre o ídolo e sua época, que, apesar de ter cultuada, nos anos 2000, grande parte do que produziu de pior, foi mais rica do que se supõe.

    Pois foi nos anos 80 que Milos Forman adaptou para o cinema a peça teatral "Amadeus". Um filme extremamente competente e bem-feito (ótima recriação de época e trilha sonora), mas nunca brilhante. Quem brilha, aqui, são os atores: F. Murray Abraham e Tom Hulce estão soberbos como Salieri e Mozart. Trechos da vida deste último são narrados pelo primeiro, que, a partir de um delírio de inspiração religiosa, teria vindo a causar a morte de Mozart. Um retrato da contraposição entre o medíocre bem-sucedido e o gênio miserável, um tema clichê (porque tão real quanto perene; a vida vem nos mostrando isso há milênios), aqui encarado com certo frescor.

    O Mozart de Hulce é um popstar: usa uma peruca meio "Ziggy Stardust", é rebelde, extravagante e petulante, se dá bem com as "groupies" e vive na boemia, torrando tudo o que ganha. No final das contas, de forma também meio cristã, seu fracasso representa seu triunfo. Salieri, o casto amante da arte, pergunta a si mesmo se o talento (divino?) de Mozart poderia ser percebido apenas com o contemplar de sua face; horrorizado, ele o reconhece num homem que considera vulgar, obsceno, ridículo. É uma idéia muito boa que, se não foi traduzida em imagens à altura, pelo menos não foi totalmente desperdiçada.

    P. S. Falando em rock'n'roll, vamos voltar a Paulo Emilio Salles Gomes e seu "Cinema: Trajetória no Subdesenvolvimento" (1973), num trecho em que ele fala do que de mais punk o nosso cinema produziu:

    "Desintegrado o Cinema Novo, os seus principais participantes, agora órfãos de público catalizador, se dispersaram em carreiras individuais norteadas pelo temperamento e gosto de cada um, dentro do condicionamento estreito que envolve todos. Nenhum deles, porém, se instalou na falta de esperança que cercou a agonia desse cinema. A linha do desespero foi retomada por uma corrente que se opôs frontalmente ao que tinha sido o cinemanovismo e que se autodeterminou, pelo menos em São Paulo, Cinema do Lixo. O novo surto situou-se na passagem dos anos sessenta para os setenta e durou aproximadamente três anos. A vintena de filmes produzidos se situou, com raras exceções, numa maior ou menor área de clandestinidade decorrende de uma opção fortalecida pelos obstáculos habituais do comércio e da censura. O Lixo não é claro como a Bela Época, a Chanchada ou o Cinema Novo, onde se formou a maior parte de seus quadros. Estes poderiam, em outras circunstâncias, ter prolongado e rejuvenescido a ação do Cinema Novo, cujo universo e tema retomam em parte, mas agora em termos de aviltamento, sarcasmo e uma crueldade que nas melhores obras se torna quase insuportável pela neutra indiferença da abordagem. Conglomerado heterogêneo de artistas nervosos da cidade e de artesãos do subúrbio, o Lixo propõe um anarquismo sem qualquer rigor ou cultura e tende a transformar a plebe em ralé, o ocupado em lixo. Esse submundo degradado percorrido por cortejos grotescos, condenado ao absurdo, mutilado pelo crime, pelo sexo e pelo trabalho escravo, sem esperança ou contaminado pela falácia, é porém animado e remido por uma inarticulada cólera. O Lixo teve tempo, antes de perfazer sua vocação suicida, de produzir um timbre humano único no cinema nacional. Isolada na clandestinidade, essa última corrente de rebeldia cinematográfica compõe de certa forma um gráfico do desespero juvenil no último qüinqüênio. Não foi porém somente através do Lixo que o nosso filme se vinculou de maneira aguda às preocupações brasileiras do período. O setor documental com intenções culturais e didáticas reassumiu, em nível de consciência e realização mais alto, a função reveladora que o gênero desempenhara anteriormente. Focalizando sobretudo as formas arcaicas da vida nordestina e constituindo de certa forma o prolongamento, agora sereno e paciente, do enfoque cinemanovista, esses filmes documentam a nobreza intrínseca do ocupado e da sua competência. Quando se voltou para o cangaço, esse cinema o evocou com uma profundidade de que a melhor ficção fora incapaz."

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