A gruta é mais extensa do que a gruta

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    sábado, novembro 06, 2004

    Nina / Balanço da Mostra 2004

    "Para mim, o filme tem que ter sangue, machadada, capeta, Vietnã e ET, a mistura disso é o filme perfeito."

    A frase acima é do João Gordo e reflete a sabedoria popular. Inspirado por esta fórmula certeira de sucesso e pelas eleições, esbocei um argumento para um filme não menos do que sensacional. Sente o drama: grupo de soldados americanos perdidos nos cafundós do Vietnã depara-se com uma colônia alienígena. Os ianques e os ETs entram em guerra, mas um soldado acaba se apaixonando por uma ETéia, e eles têm um filho, que está destinado a ser o Messias. O menino vem parar em São Paulo, onde se torna pastor evangélico e lança campanha para vereador pelo Prona. O desgraçado ganha a eleição com votação recorde, graças a um pacto com o demônio. Daí, o próximo passo é a presidência do Brasil, não sem antes o protagonista comprar a Globo, com o dinheiro dado pelo povo em suas pregações num templo do tamanho de quinze Maracanãs. Chegando à presidência, é claro que o nosso herói construirá a bomba atômica. E onde é que o danado vai jogá-la, hein? Nova York, é claro! Toda sua trajetória até aqui não passa de uma vingança contra os americanos que mataram sua mãe e condenaram seu pai na corte marcial (eventos cruciais, mostrados num flashback emocionante). Óbvio que os ianques não vão deixar barato e se preparam para invadir o Brasil e prender o filho de uma ETéia, mas ele chama seus parentes ETs, que vão calcinar boa parte dos EUA, tipo "Independende Day". E como o Bush não era muito assíduo quando jovem e não serviu direito a aeronáutica, não vai poder subir num jatinho e acabar com a graça dos invasores. Derrotados, os americanos se tornam escravos dos brasileiros, que se mudam todos para Miami e conseguem mais de 90% de ocupação no Orkut, dando início a uma grande comemoração carnavalesca com direito a mulatas, muitas mulatas, e uma participação hitchcockiana do diretor, que aparece gritando, a plenos pulmões, "Viva Glauber Rocha!". Fim.

    Oscar não ganha, é claro. Mas Palma de Ouro é batata. Alguém aí tem sugestão para o título?

    Enquanto o cinema brasileiro não vira cachorro grande, temos um filme como "Nina" (engraçado, eu fui à festa de finalização das filmagens, há uns dois anos), estréia do Heitor Dhalia, cujo roteiro, co-escrito com Marçal Aquino, é inspirado no "Crime e Castigo", um dos livros que mudaram a minha vida. Direto ao ponto, o filme é melhor do que eu pensava (tem gente por aí falando mal, inclusive um colega meu que trabalhou nele vivia dizendo que não tinha ficado bom). Entretanto, fica uma certa sensação de vazio, parece que se trata de um curta esticado. A dramaturgia, o conflito, são mínimos, e o gosto pela estranheza e pela atmosférica gótica (alguns diriam expressionista) estilizadas não funcionou muito bem, embora não deixe de combinar com certos aspectos de São Paulo. Pra variar, é legal ver um filme brasileiro que não tenha cara de "Brasil", de turístico, para inglês ver.

    O destaque vai para o elenco, que está bem bom (as participações especiais de vários globais funcionam bem, embora algumas possam parecer meio gratuitas, como se estivessem apenas preenchendo espaço, sem grande influência sobre a trama central), e para as animações dos desenhos do Lourenço Mutarelli, um artista bastante interessante, conhecido de pessoas interessantes há muitos anos (tenho até livro autografado do cara, lá se vão mais de dez anos...). Enfim, vá ver, que vale a pena; mesmo não sendo nada sensacional, não está péssimo como filme de estréia.

    Agora vamos falar da velha Mostra, querida e disputada maratona dos cinéfilos paulistanos. Este ano, foi bastante atípica para mim, principalmente por dois motivos: primeiro, eu trabalhei para a Mostra, traduzindo para o inglês textos que o Leon Cakoff mandava de Veneza; segundo, estive presente ao acachapante número de 19 sessões, um recorde absoluto para mim (se me lembro bem, nunca tinha visto mais de dois filmes por Mostra _tenho alergia a filas, sabem?). Então, em vez de dedicar um textão inteiro a apenas três ou quatro obras, vai aí um relatório das breves impressões que tive a respeito de tudo o que vi nesta 28ª edição do evento, copiada de um texto que eu tinha colocado no Multiply (aliás, foi só eu resolver começar a usar o negócio que ele começa a sabotar os acentos e a ficar lerdíssimo):

    "Onde Fica a Casa do Meu Amigo?", Abbas Kiarostami: o primeiro e o melhor que vi nesta Mostra. É também o mais antigo... O último plano do filme chega perto de ser sublime e deixa marcas na alma. Ai, que viadagem.

    "Detroit", Carsten Ludwig e Jan-Christoph Glaser: recente filme alemão que começa bem, mas termina mais ou menos, ao entrar numa onda pretensamente lynchiana. Alguns momentos deliciosamente cômicos, outros simplesmente vulgares. Mas dá para ver numa boa.

    "Temporada de Patos", Fernando Eimbcke: filme mexicano bem censura livre, que comentei no texto passado. Urbano, concentra-se praticamente num apartamento, com quatro personagens bem construídos: dois garotos que estão se despedindo, porque um deles vai se mudar, em razão do divórcio dos pais; a vizinha de 16 anos, gostosinha, que quer usar o forno para fazer um bolo; e um entregador de pizza que se recusa a ir embora porque os moleques não querem pagá-lo. Sessão da tarde divertida, melhor do que a encomenda. Em um preto-e-branco que faria Gabriel Figueroa ter engulhos...

    "Or", Keren Yedaya: garota israelense (como o filme), pobre e filha de uma puta (literalmente), também passa a se prostituir. Filme que pode até ser cruel, mas nunca sádico. Or, a protagonista (bonitinha), não fica de descabelando, chorando, se fazendo de vítima. Encara a vida e vai em frente (às vezes, vem de costas, também). Longe de ser deprimente, também não é isso tudo que andam falando... Mas vale a pena.

    "Perth", Djinn: o segundo melhor que vi nesta Mostra. "Taxi Driver" em versão made in Cingapura. Personagens figuraças (o que é aquele Angry Boy Lee?) em uma história até que razoavelmente previsível, mas que nunca deixa de ser divertida. Falado num inglês yakisobônico, contém a cena mais engraçada do festival: Angry Boy atendendo o celular durante um exercício militar na selva. Não deixem de perder.

    "Luzes Vermelhas", Cédric Kahn: filme francêsda safra "não-cabeça" (OK, estou sacaneando). A história dá voltas e termina de forma não muito satisfatória, fica a impressão de que poderia ter sido muito melhor. Mas há muitos bons momentos (e um ótimo susto, bem clichê, e o elenco está a contento (o protagonista tem cara de fodido e o vilão é uma mistura de Ben Affleck com um caminhoneiro). Daria um bom "Corujão".

    "Gosto de Cereja", Abbas Kiarostami: um dos filmes mais famosos do homem, pode ser visto como uma espécie de prelúdio para "Dez". Confesso que não gostei muito, mas o final, em vídeo, tem seu interesse.

    "Dez", Abbas Kiarostami: muito melhor do que eu pensava. Ver algo tão (relativamente) simples de ser feito se sustentar por mais de uma hora e meia é um alento. O garotinho é sensacional. A mãe é bonitona...

    "10 sobre Dez", Abbas Kiarostami: filme-aula, de interesse restrito a fãs do diretor e a estudantes de cinema (ou cineastas). Manoel de Oliveira disse que concordou com tudo... O último plano também é muito bom.

    "Éden", Amos Gitai: o pior filme que vi nesta Mostra é justamente do autor do cartaz da mesma. Falado em inglês, é preguiçoso, cai muito na segunda metade. O final lembra o superior "O Poder Vai Dançar", do Tim Robbins.

    "Alila", Amos Gitai: muito melhor do que o anterior, e falado em hebraico. Gitai anuncia os créditos iniciais e nos deseja um bom filme. E ele vem. Destaque para as atrizes, em especial a amante de peruca e a policial meio "The Nanny".

    "Terra Prometida", Amos Gitai: o mais recente filme do diretor israelense, exibido em Veneza. A estética se aproxima do documental, nesta obra que acompanha um grupo de garotas russas que são seqüestradas e vendidas como escravas sexuais. Bastante sóbrio, evita dramatização extremada. Interessante, mas não sei o quanto gostei... Bem melhor do que "Éden", de qualquer forma.

    Sessão de curtas brasileiros: vergonhosa. O melhor dos filmes, quem diria, é mesmo um do Carlos Adriano, "Um Caffé com Miécio", sobre o cartunista Miécio Caffé. O pior, um paranaense sobre uma velhinha assaltante que é simplesmente terrível, terrível. De resto, a mediocridade _em alguns casos, até que suportável (como num documentário sobre as pastoras da Portela e um falado em polonês que tem fotografia e direção de arte deslumbrantes, mas que peca pela falta de um bom roteiro)... Mas estamos maus na fita, galera.

    "Old Boy", Chan-wook Park: sul-coreano que, a princípio, pensei ser um "Kill Bill" da vida, mas é bem diferente. O protagonista é interessantíssimo, assim como seu antagonista; a trama é bizarra, mas no final, até que se encaixa, meio a marteladas (há um trocadilho aqui, quem viu o filme sabe do que estou falando). As cenas de briga são extasiantes. Mas não é tão sensacional quanto eu pensava que seria, para um filme vencedor do Grande Prêmio do Júri em Cannes. Culpa do Tarantino.

    "O Jogador de Cartas", Dario Argento: filme policial típico de "Super Cine". Clichês abundam, e o projeto acaba decepcionando. Por que cazzo é falado em inglês? Mas há bons momentos, como uma morte em um lugar paradisíaco, um tiro no rádio de um carro e, em especial, uma loira bunduda saindo de um banheiro.

    "Depois da Meia-Noite", Davide Ferrario: desta vez, um filme italiano falando em italiano. Triângulo amoroso entre um zelador de um museu, uma atendente de lanchonete e um ladrão de carros. Mistura de irmãos Lumière, Buster Keaton e François Truffaut (mas infinitamente inferior a qualquer um destes). Engraçadinho, feito por e para cinefilinhos, não mais. Mas a Francesca Inaudi é uma coisinha linda do pai.

    "Twinni", Ulrike Schweiger: longa de estréia desta jovem diretora austríaca. Draminha centrado numa pré-adolescente, num filme que poderia ser autobiográfico, mas, segundo a diretora (com quem bati um papinho depois da sessão), não é. Chatinho (típico filme do interior da Europa), mas podia ser muito pior...

    "Amor em Pensamentos", Achim von Borries: mais um alemão, só que produzido por uma major norte-americana, a Warner Bros. Como era de esperar, um filme bem convencional, "baseado numa história real", e estrelado pelo Daniel Brühl, aquele garoto de "Adeus, Lênin!" que está super-hypado. A curiosidade é uma rave ambientada nos anos 20.

    "Luz Fria", Hilmar Oddson: um dos melhores que vi nesta Mostra. Islandês (será que o Fabio Massari viu?), alterna o presente e a infância de um homem com um estranho e terrível talento para o desenho... Assim como o muito inferior "Twinni", há uma jovem personagem que tem visões premonitórias... Também é o portador da cena mais pungente de todo o (meu) festival.

    Ano que vem tem mais. Só não sei se será tanto...

    P. S. Finalmente, graças aos relançamentos em DVD, assisti a dois filmes que há muito queria ver. Um é "O Atalante" (1934), de Jean Vigo, considerado pelo Truffaut uma obra-prima; o outro é "Sciuscià" (1946), de Vittorio de Sica, batizado aqui no Brasil com o título meio besta "Vítimas da Tormenta" e considerado pelo Orson Welles uma obra-prima. São mesmo grandes filmes, embora o de Vigo tenha resistido bem melhor ao tempo. E eu adoro o Michel Simon.

    P. P. S. Pra não perder o costume, vai aí mais um trechinho de um livro sobre cinema. No caso, é de "Um Cinema Chamado Desejo", de Andrzej Wajda:

    "Certos diretores memorizam a decupagem. Estão errados. A decupagem serve para indicar o caminho que o filme tomará, mas não será uma auto-estrada de quatro vias. É preciso levar em conta o imprevisto: peripécias devidas aos atores, ao tempo, a tantas outras dificuldades. A estrada seguida pelo filme se transformará em caminho tortuoso ou desaparecerá nas brenhas. Não haverá mais mapa. Para não se perder, o diretor terá que se fiar na bússuola que para ele será a história, a trama do filme: quem age, com quem, contra quem, com qual objetivo? No decorrer da filmagem, não cesso de perguntar ao pessoal que me cerca: o que vem em seguida? Lembrem-me de como isso termina. Fazendo essas perguntas, verifico se tomei o caminho certo."

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