A gruta é mais extensa do que a gruta

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    segunda-feira, agosto 30, 2010

    A morte do senhor dos sonhos

    Pela pouca idade e pelo grande talento, a morte de Satoshi Kon, no dia 24, deixou-me especialmente chocado. Desde a de Michael Jackson eu não era tão afetado pela partida prematura de um artista.

    Kon fez apenas quatro longas (um quinto está em produção) e uma série televisiva em 13 episódios; desses, vi apenas dois, mais que suficiente para virar fã. O primeiro, visto em 2006, foi Tokyo Godfathers (2003): um impressionante auto de Natal, embalado por uma versão japonesa de "Noite Feliz" e pela Nona Sinfonia de Beethoven, no qual os Três Reis Magos são um mendigo, uma adolescente que fugiu de casa e um transexual. Nada de monstros ou ciborgues ou sociedades futuristas fascistoides ou artes marciais ou florestas encantadas (nada de errado com essas coisas; apenas fiquei impressionado por o filme fugir de todos esses clichês do anime). Junte-se a isso um grande senso de humor e sofisticação visual e temos um filme belíssimo.

    O outro foi visto dois dias depois da morte do diretor. É sua estreia, Perfect Blue (1998). Difícil saber qual dos dois é melhor, pois são tão diferentes. Tem decupagem e montagem impressionantes, um roteiro bastante complexo (que vive nos pregando peças, misturando ficção e "realidade") e uma trilha sonora contagiante. Não vi nem sei quando vou ver o "Inception" do Nolan, mas é bem duvidoso que seja tão interessante quanto este, "Paprika" (2006) ou seu último projeto a ser lançado, um road movie sobre robôs que sonham.

    ***

    Um último texto de Kon foi publicado em seu blog após sua morte. Difícil não se identificar com ele quando diz que "nunca se sentiu como parte de uma maioria", sentimento tão comum entre certos artistas. De não se emocionar quando sua mãe lhe pede desculpas por não tê-lo "trazido ao mundo com um corpo mais forte". De não se encantar com o tradicional sentimento japonês ao considerar "desrespeitoso morrer antes de seus pais". Uma carta-testamento digna, que exala sentimentos como "a gratidão por tudo de bom no mundo". Grande Satoshi Kon.

    Como bônus, ele também publicou uma lista de filmes que o influenciaram em seu trabalho mais recente. Não faltam obras-primas _ é claro que a gente perdoa um ou outro do qual não gosta.

    ***

    Nas duas vezes em que fui morar fora do país para estudar, tive colegas de classe do Japão. Baseado nessa convivência, posso dizer que o nome de Hayao Miyazaki, talvez a figura mais eminente da animação da atualidade no país (claro que não podemos nos esquecer da sumidade Osamu Tezuka e de muitos outros; temo que nós do Ocidente dificilmente teremos uma real noção da rica produção cultural asiática), não só é famoso como muito querido. "Meu Vizinho Totoro" (1988) já é um clássico, sempre lembrado com um sorriso pelos meus colegas. É um filme que, apesar de toda a fantasia, captura perfeitamente a infância (as meninas Satsuki e Mei são exemplares). Muito caloroso e bonito plasticamente, praticamente prescinde de roteiro - por mim, poderiam ser duas horas com as meninas brincando e já seria um grande filme.

    Feito 20 anos depois, "Ponyo", que teria sido inspirado por "A Pequena Sereia" da Disney, impressiona pela ambição das cenas subaquáticas (especialmente nos minutos iniciais). A trilha sonora grandiloquente (aparentemente, uma homenagem a Wagner e a seu "O Anel dos Nibelungos") do colaborador habitual Joe Hisaishi é outro destaque. A relação do peixinho dourado que se transforma em uma menina de 5 anos com o seu amado Sosuke também é um belo retrato dessa fase da vida, que provavelmente aproveitamos melhor quando somos pais, já que a memória não costuma reter muito bem esse período.

    ***

    Ontem foi meu aniversário. Curioso que sempre me considerei (e fui considerado por outrem) alguém com cabeça de velho (no sentido de sério, disciplinado, aplicado e obcecado pelo conhecimento) em corpo jovem, mas agora já começo a me sentir alguém com mente jovem (no sentido de irrequieto, agitado e ainda ávido por aprendizagem) em um corpo sem a mesma energia _ desconfio que se trata mais de reflexo da falta de exercício físico (preciso voltar à natação) que da idade, que ainda não é muita. Mas vale registrar dois belos presentes audiovisuais que ganhei (normalmente me dão livros, mas neste ano foi diferente): as caixas com as temporadas completas de "Monty Python's Flying Circus" e "Twin Peaks", duas pérolas. Grazie mille!

    7 comentários:

    Ana Paul disse...

    Wenn ist das Nunstruck git und Slotermeyer? Ja! Beiherhund das Oder die Flipperwaldt gersput!

    Marcelo V. disse...

    Ppppffffhahahahahaaaaaaaarrrrrgh! * CATAPIMBA *

    Ailton Monteiro disse...

    Fiquei emocionado com o seu texto, Marcelo. Dos filmes que devem ter servido de referência para PAPRIKA, a cena do Detetive no trem me remeteu a INTRIGA INTERNACIONAL e o corpo estendido no corredor, a O ILUMINADO. A sequência do sujeito rasgando o corpo de PAPRIKA para ver o corpo de Atsuka Chiba também me pareceu familiar...

    Marcelo V. disse...

    Pois é, um texto sobre um acontecimento tão triste e a Ana vem contar nos comentários a piada mais engraçada do mundo. Típico.

    Kon era um grande cinéfilo, como o link da lista de filmes demonstra. Não é de surpreender que seus filme sejam cheios de referências _e que poderiam muito bem ter sido feitos com atores de "carne-e-osso".

    Leandro Caraça disse...

    Uma cena de "Perfect Blue" foi copiada por Darren Aronofsky em "Réquiem para um Sonho". E vendo o trailer de "Black Swan" não consegui deixar de pensar no longa de estréia de Satoshi Kon.

    Marcelo V. disse...

    Li que o Aronofsky comprou os direitos de "Perfect Blue" só para copiar essa tal cena (que nem sei qual é, porque não vi o filme dele, mas suponho que seja a do estupro). /// O trailer de "Black Swan" (vaiado em Veneza, diz o Zanin no jornal de amanhã) me lembrou de "Os Sapatinhos Vermelhos". Talvez o Arô seja um Tarantino, ou melhor, um chupim mais discreto.

    Leandro Caraça disse...

    A cena copiada foi a da Jennifer Connely gritando dentro da banheira.

    Na platéia