A gruta é mais extensa do que a gruta

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    quarta-feira, fevereiro 06, 2008

    Eram quase meia-noite, num domingo de janeiro, e o soldado observava minha conversa com a senhora, divorciada e septuagenária (não perguntei sua idade; olhei disfarçadamente um xerox plastificado do seu RG, que o rapaz segurava junto a uma ficha), obviamente abalada pelo desastre. Ela estava mais preocupada em xingar os ex-inquilinos, que, após meses sem pagar o aluguel, deixando uma dívida de uns R$ 50 mil e obrigando-a a ordenar o corte de eletricidade e de água, fugiram, deixando o imóvel imundo e com 14 cães e 3 gatos abandonados. Fico interessado pela história dos animais, pergunto uma série de detalhes (mas não tantos quanto gostaria, nunca há tempo), enquanto percebo a impaciência do jovem aspirante a autoridade, que precisava terminar o boletim de ocorrência. Deixo ele fazer uma ou duas perguntas protocolares (afinal, era eu o forasteiro, ali no DP) e, para sua irritação contida, tomo de volta, com voz mansa, o controle da conversa. A velhinha me conta que adotou a gata ("Teve cria esses dias, a coisa mais linda") e deixou os outros dois bichanos no imóvel abandonado, os quais ela ia alimentar duas vezes por dia (os cães foram levados pela prefeitura). Foi aí que, obviamente constrangida, ela finalmente assumiu sua culpa na história (para nossa surpresa): ao levar o jantar dos gatos, esqueceu, acesa, uma pequena vela. O soldado sorriu levemente, satisfeito por eu ter feito o seu trabalho. Minutos antes, no local do incêndio ("um fogão", segundo uma vizinha espevitada, aparentemente feliz por estar na rua em vez de estar vendo o "Fantástico"), o capitão dos bombeiros havia me dito: "Deu PT". Findo um mistério, restou outro: e os gatinhos?

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    Como de costume, estou totalmente por fora do Oscar (quando eu digo que gente que gosta de cinema não precisa gostar necessariamente do Oscar, todo mundo me olha como se eu fosse um E.T.). Dentre os indicados na categoria principal (só sei quais são os indicados porque o Milton do Prado me mandou um e-mail com convocatória para um divertido bolão, do qual infelizmente sou obrigado a declinar), assisti (graças a uma folga numa segunda-feira, após três semanas ininterruptas de trabalho) apenas a "No Country for Old Men", que a princípio soou como uma tentativa de voltar a um cinema da época em que a história se passa (fim dos anos 70), mas esta impressão acabou se enfraquecendo (mesmo que algumas elipses me lembrem de Peckinpah). Gosto muito dos maneirismos dos Irmãos Coen (adoro "Raising Arizona" e "The Ladykillers", por exemplo _e uma das cenas que mais me marcaram em seus filmes está em "The Great Lebowski"), mas a falta de boa parte deles aqui não é um defeito. Não lembro se o Bardem foi indicado como coadjuvante, por seu Anton "Sugar" Chigurh, e não vi o filme do Paul Haggis pelo qual Tommy Lee Jones (cujo Ed Tom Bell é o protagonista, e não o Llewelyn Moss do Josh Brolin, como muitos andam pensando) foi indicado. Belo filme, mas ainda não chegou ao nível de "Barton Fink".

    De resto, os filmes mais recentes (daqui a pouco trato de algumas velharias, apelidadas de "clássicos", que não interessam a ninguém) que vi foram "Last Days" (fascinante e irritante ao mesmo tempo), "Casino Royale" (bom porque não parece um filme de James Bond _o que é uma faca de dois gumes: por exemplo, a falta de sexo é um revés; é também o filme no qual a Eva Green está mais bonita) e "Happy Feet" (decepcionante, mas ainda melhor do que "Moulin Rouge"). Também passou pelas minhas retinas tão fatigadas as três primeiras temporadas de "Battlestar Galactica", boa série de ficção científica (gênero que não é muito minha praia, especialmente quando se passa num "futuro distante" ou algo que o valha) que consegue fazer referências as mais diversas (de filmes de guerra a novelas, obviamente passando por "Star Trek" e "Star Wars" e até "Indiana Jones") e sair razoavelmente incólume. Meus episódios preferidos são os poucos em que a história deixa de ser seguida, e vemos algo mais localizado dentro de um universo construído até que cuidadosamente. A assinatura da produtora é um pequeno show à parte.

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    Até que gosto do termo "obra-prima doente" (se não me engano, cunhado pelo Truffaut ao falar de "Marnie"). Gosto muito quando filmes me deixam com uma espécie de pulga atrás da orelha, porque me parecem muito bons, mas de uma maneira tão imperfeita que transborda humanidade. Neste período, tive a felicidade de trombar com alguns desses filmes. Dois são de Nicholas Ray: o principal é "On Dangerous Ground", razoavelmente incomum (e não por usar câmera na mão em algumas cenas, o que na época era muito raro); é especialmente interessante como, num filme tão curto (80 minutos), o enredo principal demora a chegar, porque passamos um bom tempo conhecendo o protagonista interpretado por Robert Ryan _os coadjuvantes Ida Lupino (que dirigiu o filme por vários dias em que Ray esteve doente) e Ward Bond só aparecerão bem depois. As cenas finais são fortes e amarram muito bem o filme (mesmo não sendo o final que Ray queria). A trilha sonora de Bernard Herrmann (cuja melodia me lembra um pouco a de "O Dia em Que a Terra Parou", embora os arranjos sejam bem diferentes) é outro destaque. E "The Lusty Men", mesmo sendo bem mais convencional, é um belíssimo drama no mundo dos rodeios estrelado por Robert Mitchum, Susan Hayward e Arthur Kennedy _mas quem rouba a cena é Arthur Hunnicutt (de "Broken Arrow").

    Outro filme impressionante e que vem crescendo na minha memória é "Angel Face", de Otto Preminger, produção de Howard Hughes com Robert Mitchum e Jean Simmons. É mais complexo do que parece a princípio, chega a ser bastante romântico (mas de uma maneira distorcida e moderna _só os modelos dos carros dão a impressão de que o filme é antigo). E é quase milagroso como uma mesma ação é repetida de maneira praticamente idêntica, sem que ela perca sua capacidade de chocar. O final é de tirar o fôlego. E o que dizer de "O Rio Sagrado", de Jean Renoir? Muito polêmico, longe de ser uma unanimidade, me deu a impressão de ser um filme único, apesar de muitas falhas (talvez a maior delas a falta de naturalidade do elenco). Tem um conceito muito bem definido, no entanto é bastante diversificado. A fotografia é belíssima (dizem que o trabalho no laboratório durou 5 meses), e há momentos claramente documentais; em outros, alguns dos mais fortes, simplesmente contemplamos: plantas, pipas no céu, uma bailarina. Foi o último filme de Thomas E. Breen (o Captain John) e de Radha, e o único da feiosa Patricia Walters (a protagonista chatinha) e do produtor Kenneth McEldowney. Satyajit Ray foi assistente. "The day ends, the end begins."

    Outro filme com rio no nome é "O Rio da Aventura" ("The Big Sky", no original), de Howard Hawks, que, a exemplo de vários outros do diretor, parece uma espécie de "auto-remake" _neste caso, da obra-prima "Rio Vermelho". Novamente, Arthur Hunnicutt, abençoado com os melhores diálogos, ofusca a todos, e a beleza de Elizabeth Threatt (infelizmente em seu único filme) é inesquecível. O sutil conflito final é muito bom (e ficamos esperando o filme acabar, e ele não acaba _é bem longo e prolixo, quase pretensioso, embora muito bem-humorado). Ainda nos EUA (e falando em prolixo), fiquei bastante decepcionado com "A Place in the Sun", do qual sempre ouvi falar muito. Curioso é saber que se trata de remake de um filme de Sternberg _que quase foi dirigido por ninguém menos que Eisenstein_, o qual não vi, mas aparentemente é bem diferente deste. A versão de Stevens, feita em 1949, mas lançada apenas dois anos depois, não é original, não trabalha bem com a emoção e não chega a um final satisfatório. Mas tem pelo menos uma cena antológica: a do balcão onde Montgomery Clift e Elizabeth Taylor trocam declarações de amor e se beijam sutilmente _o fato de a câmera não mostrar direito o beijo dá força à cena. E ficou bem claro onde Janete Clair se inspirou para escrever "Selva de Pedra". Ainda entre as decepções à primeira vista, um western de Andre de Toth com Randolph Scott e e um número musical de Tennessee Ernie Ford, "Man in the Saddle", e um morno filme de Anthony Mann, "The Tall Target".

    Na Itália, a obra-prima do pacote: "Europa '51" figura como, até o momento, meu preferido do Rossellini com Ingrid Bergman (brilhante _nem Giulietta Masina a ofusca). Um melodrama poderoso e de forte cunho social (e ético), de influência monumental. Longe de ser tão bom é "Umberto D.", de De Sica, atacando de velhinho doente, tema popular até hoje. Com os dois principais atores (e o cãozinho Flike também), Carlo Battisti e Maria-Pia Casilio, iniciantes (mas muito bons), é um filme muito desigual, cuja fama, creio, se deve principalmente ao final. Muitíssimo melhor é seu antecessor, "Miracolo a Milano", um delírio alegre que foge totalmente do neorealismo, embarca na fantasia (teria influenciado Fellini de alguma forma?) e carrega uma mistura de sentimentalismo, ingenuidade e graça que lembra bastante algo de Chaplin (impressão reforçada pela atuação de Francesco Golisano, o Geppa, que morreu jovem e atuou apenas em meia dúzia de filmes _destaque também para a Brunella Bovo e para a aparição da belíssima bailarina argentina Alba Arnova). O início, com muito poucas falas, me pareceu bem sofisticado; a música é inesquecível. E passei ainda por De Sica (sempre eficientíssimo como galã) como ator em "Madame de...", penúltimo filme de Öphuls (cuja fase americana, hoje, me agrada mais _neste aqui, a câmera me parece menos rigorosa do que de costume), que parece muito mais antigo. Charles Boyer, Danielle Darrieux (viva e trabalhando, aos 90 anos) e De Sica formam o triângulo amoroso nesta história que gira em torno de um par de brincos e da falta de pronúncia do sobrenome da protagonista.Adoro duelos, desde pequeno.

    Para encerrar, aquela passadinha básica no Japão: a fama de "ocidentalizado" de Kurosawa talvez se deva a filmes como "Viver", que, simplificando temerariamente, parece inspirado pelos filmes mais famosos de Frank Capra. Longo, demora a engrenar; mas, após o ponto de virada da trama, a sucessão de sutis flashbacks e flashforwards é ótima. A morbidez como valorização da vida. É o filme de estréia de Miki Odagiri e um dos mais de 200 feitos pelo Takashi Shimura, colaborador constante de Kurosawa. Outro japa visitado foi Kenji Mizoguchi, com "Oharu - A Vida de uma Cortesã", óbvia adaptação de um romance clássico, gerando um melodrama idem. Também me lembra algo de grandes produções americanas, como "...E o Vento Levou" (não pelo orçamento, é claro). A atriz principal, Kinuyo Tanaka, foi a primeira a diretora japonesa (ou seja, o machismo...).

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    De Nelson Ascher, em artigo chamado "Perguntar Não Ofende", publicado na Ilustrada de 11 de fevereiro: "Há filmes que, de tão descaradamente manipuladores e demagógicos, tão mecânicos e transparentes na sua má-fé, levam o espectador atento a se sentir a um tempo vítima e cúmplice de uma trapaça. Foi esse o caso de 'Sociedade dos Poetas Mortos', a que assisti em 1990. Para agravar meu mal-estar, tão logo os créditos começaram a aparecer na tela, boa parte da platéia aplaudiu de pé aquela abominação. Soube logo que essa reação se tornara demasiado freqüente e, quando meu comentário foi publicado, passei a receber cartas que por pouco não me ameaçavam de morte. Como ninguém, ao que parece, desejava que seu suspeito vínculo emocional com o filme fosse questionado, descrever-lhe o mecanismo soava para muitos como ofensa pessoal."

    Acho que eu tinha 12 ou 13 anos quando vi "Sociedade dos Poetas Mortos". Fiquei tremendamente ofendido; abomino filmes que tentam me fazer de idiota.

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    Dos 325 filmes elegíveis para o Alfred 2007, eu assisti a 27 (alguns deles, em 2006). Até que não está tão mal...

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