A gruta é mais extensa do que a gruta

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    sexta-feira, março 23, 2007

    Queria muito ver "Marie Antoinette" (mesmo que agora um monte de gente esteja falando bem, depois que o filme só levou paulada), mas o desgraçado não estreou perto de casa, o calor ainda está alto e a preguiça e outros compromissos venceram; vocês gostaram?

    Teria sido bom ver aquele contexto retratado por uma estrangeira contemporânea, após ter visto outros filmes históricos da França neste último mês, como o "Orphans of the Storm" (1921), do Griffith (que explicita em letreiros sua posição política, soltando os cachorros na então recente Revolução Russa, e traz algumas cenas impressionantes, como uma orgia dos aristocratas e os festejos do povo com a queda da monarquia; também há um clássico exercício de suspense baseado na montagem paralela, que ainda funciona), e o "Napoleón" (1927), do Abel Gance (quatro horas que passam voando, apesar de o ritmo cair quando chegamos ao romance com Joséphine. Vários momentos lembram certas experiências russas do período, como a metáfora da águia e a montagem rápida, feita pelo próprio Gance, que vai além e impressiona ao usar três câmeras para compor quadros grandiosos, criando o formato retangular _dizem também que ele chegou a filmar em cores e em 3-D, mas não teria usado estes trechos para não distrair demais o público. Talvez o maior filme da França? Há quem diga que é "Les Enfants du Paradis", outros vão de "Acossado"...). Agora, revolucionário mesmo é "Zéro de Conduite", do Jean Vigo, repleto deste espírito ao mostrar a reação de alguns garotos bagunceiros às autoridades escolares com o apoio de efeitos como câmera lenta, animação, stop-motion etc., homenageando Chaplin e inspirando Truffaut.

    Ainda na França, conferi duas parcerias entre Jean Renoir e o sempre genial Michel Simon, notável e inesquecível em suas caracterizações: "A Cadela" (1931) e "Boudu Salvo das Águas" (1932). O primeiro é uma lúcida obra-prima, introduzida pela clássica cena com os fantoches, que abre o caminho para a história, a mais antiga do mundo, narrada com brilhantismo raro (se o equipamento fosse mais ágil, que movimentos ainda mais ousados Renoir não teria realizado?); o segundo tem um belo final e alguns ótimos momentos, mas quem segura as pontas é mesmo Simon (também produtor; o grande Jacques Becker é assistente de direção e faz uma ponta). Completando o passeio pela terra de Astérix, "Jeux Interdits", de 1952 (um neorealista de René Clement, concentrado num microcosmo: fantasias infantis num ambiente rural), e o recente e bem-sucedido documentário "Ser e Ter", superficial, lento e que às vezes passa a impressão de ser covarde.

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    Andei visitando outros diretores, europeus em sua maioria (e a eles voltarei mais vezes). Um deles é o meu amigo Ernst Lubitsch, que apareceu no texto passado e volta com "Monte Carlo", de 1930 (mais um musical altamente escapista, mas não tão bom quanto "The Love Parade", do ano anterior), e duas obras-primas (nas quais felizmente abandona os musicais), "Ladrão de Alcova", de 1932, e "Sócios no Amor", de 1933, na qual o diretor exibe sua marca registrada: encadeamento perfeito de cenas curtas, sutis e que respeitam a inteligência do espectador (o que costuma ser raridade), sem privá-lo das gargalhadas.

    Outro mestre da época é o Rouben Mamoulian, em dois projetos excelentes e bem distintos. Um deles é o "Love Me Tonight" (1932), no qual ele rouba de Lubitsch a dupla Maurice Chevalier e Jeanette MacDonald e investe na comédia romântica musical; como Renoir em "A Cadela", passa por cima do enredo mais do que batido (nobre se apaixona por plebeu) e cria momentos clássicos, como a seqüência inicial, na qual Paris acorda com o som dos trabalhadores. Decupagem e montagem são irrepreensíveis, e as piadas não perderam o viço (gargalhei várias vezes). O grande problema mesmo é Chevalier, que não tem 10% do carisma de um Gene Kelly e não tem muita química com MacDonald _que não faz feio, mas que neste filme tem a cena roubada pela coadjuvante Myrna Loy, muito mais bonita e divertida. O outro, do ano anterior, é "Dr. Jekyll and Mr. Hyde", a melhor adaptação de "O Médico e o Monstro" que já vi. Mamoo mais uma vez nos dá um filme impressionante e tecnicamente perfeito (o que o faz parecer bem à frente de seu tempo). As seqüências subjetivas geraram filhos famosos (impossível não lembrar do início do "Halloween", do Carpenter, e do trecho imediatamente pós-transformação de "O Professor Aloprado", do Lewis), as transformações de Jekyll em Hyde e vice-versa são de cair o queixo (as feitas com filtros parecem mágica), e Fredric March está perfeito em ambas as caracterizações; já Miriam Hopkins (que, aos 60 anos, trabalharia com Russ Meyer, que não era bobo) está absolutamente deliciosa e dá ao filme uma carga gigantesca, quase inacreditável, de erotismo (uma tragédia que sua cena de nudez tenha sido cortada).

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    Quem também bateu ponto por aqui foi King Vidor, com "Hallelujah!" (1929), seu primeiro sonoro; traz aqueles probleminhas típicos da época, como interpretações bem acima do tom e má sincronia de som (que não foi captado diretamente, mas dublado após a filmagem), mas nada que o comprometa. Até porque é surpreendente: o que parece ser uma espécie de musical (quem dera a trilha sonora fosse lançada) retratando os agricultores de algodão (o elenco é 100% negro, o que acarreta alguns estereótipos também típicos da época, quando o racismo era mais tolerado, mas nada que chegue a ser escandaloso) vai ganhando ares de drama, depois parece que, fazendo jus ao título, se tornará um filme religioso (embora carregado de erotismo, apesar de não trazer cenas de sexo ou nudez), para virar uma tragédia e comentário moral, até fechar o ciclo. Em "The Champ" (obviamente fantasticotilhões de vezes melhor do que a xaroposa refilmagem do Zeffirelli _o Vebis cunhou muito adequadamente o termo "zefirelismo" em seu texto sobre "Rocky Balboa"), de 1931, os pontos fortes são o carisma de Jackie Cooper (o Perry White da série "Superman") e Wallace Beery, mas é a câmera (enquadramentos e movimentação) que rouba o show.

    Outro amigão da vizinhança é Yasujiro Ozu, que vem quietinho (ele só faria seu primeiro filme sonoro em 1936) com três obras: a primeira, "A Esposa da Noite" (1930), impressiona por parecer, a princípio, um filme de gângster, no melhor estilo "The Public Enemy"; mas não demora a se tornar um melodrama familiar, mais característico do diretor. Quatro atores (com destaque absoluto para Emiko Yagumo, que infelizmente teve carreira curta no cinema, menos de dez anos) em um cenário divinamente explorado por Ozu, mestre em decupagem e mise-en-scène. Os travellings são sempre perfeitos. Aproveitei para rever (e gostar ainda mais) de "Meninos de Tóquio" (título ruim; a tradução literal seria algo como "Eu Nasci, Mas..."), que já seria um grande filme se fosse apenas uma obra sobre a infância; ao tornar-se um drama familiar envolvendo os pais, segue atemporal e universal, mas amplia seu escopo _ poderia ser cruel, mas Ozu-san também era conciliador. Também vi "Dekigokoro" (não há título em português, seria algo como "ilusão passageira"), de 1933, que também investe no drama familiar causado pelo conflito de gerações (e de ambições entre pais e filhos), mas chega às beiras do dramalhão, o que eu nunca tinha visto nos filmes do diretor.

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    E não posso me esquecer de Fritz Lang, que compareceu com "M", de 1931 (no qual ele e Peter Lorre estão perfeitos, talvez em seus auges _Hitchcock, aprendiz de Lang, dizia que seu filme preferido era "A Morte Cansada", mas não há muita dúvida de que este também exerceu seu impacto sobre o britânico... de quem vi "Blackmail", seu primeiro sonoro, muito interessante especialmente pelas experiências técnicas de imagem e som, embora a atuação germânica de Anny Ondra também seja inesquecível), e "Das Testament des Dr. Mabuse", de 1933 (brilhante em vários momentos, mas um tanto arrastado em outros; melhora quando explora Rudolf Klein-Rogge, que interpreta a personagem-título, mas o cerne do filme é exatamente este, como a influência do mal (e em Mabuse cola-se perfeitamente o rótulo de "terrorista", na acepção mais abrangente do termo) pode contaminar... E não era o que estava acontecendo na Alemanha, com a ascensão dos nazistas ao poder?

    E já que falamos em nazistas, vamos dar uma olhada em "Salon Kitty", estrelado por Helmut Berger e Ingrid Thulin em 1976, na qual Tinto Brass confronta Eros e Tânatos, mostrando o sexo militarizado, usado como arma de guerra. Diferentemente de certos filmes rotulados de "nazixploitation" (como o horroroso "Ilsa, She-Wolf of the SS"), Brass não pretendeu fazer um mero filme erótico disfarçado de denúncia de atrocidades; vai bem mais fundo no horror não só daquele período, mas da psiquê humana, sem medo de mostrar imagens fortes. E pode-se não gostar do diretor, mas é inegável que ele tem estilo.

    Voltando de novo no tempo, faltou falar de Josef von Sternberg, que me mostrou dois de seus filmes com Dietrich: "Marrocos", de 1930, e "Desonrada", de 1931. O primeiro encena um triângulo amoroso no continente africano, mais de dez anos antes de "Casablanca" _muito menos tenso, até porque a personagem de Adolphe Menjou é um tremendo de um corno-manso, deixando barato a Marlene (mais uma vez fazendo um papel recorrente em sua carreira, a de cantora de cabaré _com direito a beijo lésbico) para Gary Cooper (fazendo o papel de legionário francês anos antes de "Beau Geste"), que nunca mais teria aceitadou um convite do Sternberg. O segundo é muito melhor, uma história de espionagem (no mesmo ano em que Garbo encarnava Mata Hari no filme homônimo) ambientada na Áustria da Primeira Guerra Mundial, onde Dietrich, mais linda do que nunca, interpreta a espiã X-27 e toca piano, muito piano... Tecnicamente, é perfeito: fotografia (que se aproveita bastante de efeitos como fusões) e mise-en-scène são deslumbrantes (a cena no Carnaval é linda), nem parece que é do início do período sonoro. Meu Sternberg preferido até o momento. E falando em fusões, poucos as usaram tão bem quanto Victor Sjöström em "Vento e Areia"...

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    Mas vamos parar um pouco com este domínio dos diretores e falar um pouco de um ator: ninguém menos que Boris Karloff. Mais conhecido como Frank, o homem com nome de vodca era considerado extremamente charmoso por todos, mas nas telas acabou marcado ou por monstrengos sem falas (além do mais famoso, temos também o mordomo mocorongo de "A Casa Sinistra", outro de James Whale) ou por personagens até que interessantes, mas um tanto unidimensionais, como o vilão de "O Gato Preto", do Ulmer (o primeiro dos vários filmes no qual Karloff encontra Lugosi), o gângster de "Scarface", do Hawks, ou o fanático religioso de "The Lost Patrol", do Ford. E aí fica a dúvida: foi um bom ator mal-aproveitado ou um mau ator muitíssimo bem-aproveitado? Minha tendência é balançar em direção à segunda alternativa.

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    Mas vamos falar de um assunto leve e agradável, como matança: por um lado, a barra pesa em "Você Também Pode Dar um Presunto Legal", média feito entre 1970 e 1973 (mas exibido somente a partir do ano passado) pelo documentarista Sérgio Muniz sobre o surgimento e a ascensão do Esquadrão da Morte e da tortura encampada pelo Sérgio Fleury; obviamente ele não tratou de entrevistar nenhuma autoridade (iria para o pau-de-arara rapidinho), mas filmou publicações jornalísticas e publicitárias da época (estas são o cúmulo do espírito de porco brazuca, fazendo gracinhas com a violência para vender aparelhos de TV e água sanitária), montagem de duas peças de teatro e outros atores (entre eles Abrahão Farc, Renato Consorte _ambos convidados para atuar em "A Volta do Regresso", mas o papel acabou ficando para o Ênio Gonçalves_, Othon Bastos e Gianfrancesco Guarnieri) interpretando figuras da época. A trilha é ótima (embora óbvia), bem irônica.

    Tortura e sangue também vemos em "King of Kings", belíssima adaptação do Novo Testamento dirigida por Nicholas Ray, mesmo que prejudicada pelas piores características das superproduções "históricas" (não que a exatidão da reconstituição seja uma necessidade) do período, como o excesso de assepsia e de artificialidade. Há cenas lindas (como o sermão da montanha e Jesus curando um cego), a narração (escrita por Ray Bradbury e lida por Orson Welles _foi a primeira vez que vi este filme, antigo campeão da "Sessão da Tarde" na época das Páscoas da minha infância, com som original e janela correta) funciona, e a trilha sonora de Miklós Rózsa é ótima (embora também restrita às convenções do gênero). Mas, apesar de todos os recursos (como a estonteante fotografia em 70mm) e talentos empregados, fica a anos-luz de distância do filme de Pasolini, feito meses depois.

    Temos também a primeira temporada da série "Dexter", exibida nos EUA no ano passado (aqui, sabe-se lá quando): adaptação literária (não muito fiel, segundo li por aí) ambientada em Miami (o que a deixa bem menos dark do que poderia ser _há sol de montão, praia e muita música caribenha, o que confere bastante humor a tudo) que, apesar da premissa um tanto diferente (um legista da polícia na verdade é um serial killer que mata apenas outros assassinos que escaparam da lei), a série começa como mais um mero show policial; mas melhora bastante ao se aprofundar no passado de seu protagonista (há algumas grandes surpresas, e a maior delas fica bem para o finalzinho), interpretado pelo ótimo Michael C. Hall (o papa-defunto gay de "Six Feer Under"), acompanhado de Jennifer Carpenter (mais conhecida como Emily Rose, aquela do exorcismo). Destaque para a abertura, na qual as atividades mais corriqueiras do dia-a-dia, como fazer a barba, passar fio-dental, vestir-se e fazer o café-da-manhã tornam-se carregadas de morbidez (mesmo assim, a série poderia ter um clima bem mais pesado, de pesadelo).

    E como citei pesadelo, vamos aproveitar para meter o pau numa porcaria safada que tive o desprazer de ver neste mês, o tal "Me and You and Everyone We Know", da Miranda July. É pior do que uma bobagem pretensiosa, porque sequer consegue chegar neste nível: adequadamente classificado como "lixo indie", este filme parece não ter a menor vergonha de atingir cúmulos de ridículo (como a cena com o peixinho dourado), o que não seria necessariamente ruim, se fosse uma comédia (aliás, dei muitas risadas durante o filme, pena que não era seu objetivo arrancá-las). Para piorar, a trilha sonora é abominável, mas o que preocupa mesmo é a sensação de que a diretora deveria urgentemente procurar um psicólogo, porque ela parece ser alguém com a alma aleijada... Pelo menos o garotinho Brandon Ratcliff está OK. Já "A Lula e a Baleia", produção do Wes Anderson dirigida por seu roteirista em "...Steve Zissou", não é uma droga, mas também não passa muito de sub-Woody Allen (ou seja, sub-sub-Bergman). Deixa-se assistir sem sofrimento, mas passa muito pouca personalidade (dá a impressão de que o roteiro foi filmado com uma tremenda preguiça). O elenco está muito bem, o final é óbvio e bem fraquinho.

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    Chegou até aqui? Cansou? Então vamos encerrar, por hora: revi os dois primeiros episódios de "Star Wars" (quero dizer, o I e o II, mais recentes), e não entendo muito a implicância com esta nova trilogia que "inicia" a saga. Os filmes não só "rimam" com seus antecessores, como ganham muito visualmente. A grande importância destes dois filmes foi o investimento no cinema digital (a transição do Mestre Yoda fantoche para o totalmente animado foi um grande avanço, assim como o chatíssimo Jar Jar Binks). Lucas será lembrado como pioneiro pelas próximas gerações, não tem jeito.

    P. S. OK, só mais uma coisinha. Eu esqueci no mês passado e quase ia me esquecendo de novo de comentar a imperdível mostra do Anish Kapoor no CCBB de São Paulo: ouvindo a Lucrécia Martel dar uma palestra no mês passado, ela insistiu muito na questão do som em seus filmes, concentrando muito na vibração dos tímpanos a sensação física que o cinema proporciona, e, curiosamente, deixou (pelo menos naquele dia) a imagem em segundo plano; pois as obras do Kapoor são visualmente sensacionais justamente por gerarem uma concretitude do olhar como manifestação física. O reflexo do que captamos na retina se espalha por todo o corpo, coisa que as crianças sabem experimentar muito bem, mas que quando crescemos acabamos nos dessensibilizando; ali, me senti como numa Casa Maluca de um parque de diversões, e foi impossível não lembrar do final de "A Dama de Shanghai". Quem não for ver é mulher do Bento 16!

    P. P. S. Era também para eu falar do Proust (inspiração para uma peça de teatro que comecei a escrever), mas acho que fica para outra vez...

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