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    quinta-feira, maio 14, 2009

    Um pouco de cinema nacional


    E começamos o oitavo ano deste absurdo ridículo tentando mudar de novo _mas sem essas viadagens de Twitter (que aqui ainda habitamos um mundo alfabetizado, onde há coisa melhor para fazer) ou de boicote à carne de porco (que aqui ainda habitamos um mundo onde não se dispensa um lombinho ou uma costelinha).

    Então, eu não sei se já disse isso por aqui, mas acho muito esquisito obras de arte competirem. É vulgar e estúpido, além de rebaixar os filmes (ou os livros, etc.), mas funciona perfeitamente na lógica do capitalismo, obcecado pela figura do "vencedor", do "número 1", essas coisas que até se aplicam ao esporte (embora aí também entrem variáveis "nada a ver" como patrocinador, estrutura, etc.), mas não às artes (onde, inclusive, fracassar pode ser "cool", "romântico", "charmosamente decadente", pff). Pois parece que agora (ou há alguns anos, não interessa) existe um prêmio de cinema brasileiro com nome de patrocinador (ridículo, ridículo; será este o mesmo que inventou o tal de prêmio para "product placement" e o deu pela primeira vez para um absorvente íntimo no primeiro "Seu Eu Fosse Você"?) e que inclusive, dizem, foi exibido pela TV (não sei em que canal ou horário, a divulgação foi aparentemente péssima), talvez por vontade de se igualar ao Oscar (não lembro quem foi o gênio _Inácio Araújo, para variar?_ que disse que o troféu, em vez de se chamar Grande Otelo, deveria se chamar Oscarito).

    Se premiaram o melhor filme ou não, é questão que não deixa de ter sua relevância, mas não é a que me interessa no momento. O interessante é que não se premiou uma bomba, mas "Estômago", a estreia de Marcos Jorge em longas de ficção. Até tem atores já cooptados pela TV, mas é claramente um filme de baixo orçamento (sem ser prejudicado por causa disso), com jogo de cintura. A história, narrada em vaivéns temporais, não tem frescura e não causa confusão _pelo contrário, o enredo é bastante previsível, sem que isso seja um defeito. O filme aposta quase tudo em seu protagonista e fica muito difícil imaginá-lo sem João Miguel, que o carrega nas costas, apoiado por bons coadjuvantes (destaque óbvio para Fabiula Nascimento); curiosamente, o que mais me incomodou foram algumas piadas infames mal integradas à narrativa (já os palavrões são ótimos, embora eles não combinem tanto com o dono do restaurante italiano _ficou parecido demais com o do boteco das coxinhas).

    Por outro lado, é com certa tristeza que me deparo com "Não por Acaso", outra estreia em longa, mas de um diretor mais hypado no mundinho paulistano. Só vi dois dos seus elogiados curtas, um bem bom e outro bem fraco; o longa infelizmente pende para o lado mais fraco. Sem dúvida ele se encaixa na seara dos filmes "certinhos e bem feitos", cheio de planos bonitinhos (os bons mesmo são os que mostram panorâmicas da cidade), que tanto agradam a quem gosta apenas superficialmente de cinema (entre eles uma boa parte dos curadores e jurados de festivais) mas que não causam grande impacto em cinéfilos mais ou menos dignos do nome. E é este talvez o maior defeito do filme: não traz nenhuma surpresa (o roteiro é esquemático, mas claro que isso foi proposital), os momentos que deveriam ser mais emocionantes mal arranham a casca do espectador. E a trilha sonora é um horror _o filme ganharia muito se ela fosse eliminada. Caramba, se o diretor queria fazer um melodrama, que enfiasse o pé na jaca mole, pois ainda estamos fartos do lirismo comedido; se queria fazer um filme "cerebral", que deixasse totalmente de lado seus rasos ensaios folhetinescos e fosse mais severo, limando os planinhos bobinhos com musiquinha apelativa. Tá na hora de mais ousadia e mais coragem, sem vergonha de ser proscrito (inclusive do tal prêmio caipira). Promessas que não se cumprem só têm graça quando foram feitas para sacanear alguém.

    Padrinho do Philippe Barcinski, Fernando Meirelles também filma São Paulo (inclusive perto de casa _e alguns planos foram filmados do apê de uma amiga, que ganhou uns R$ 300) em "Blindness". Não li este livro de Saramago (autor que nunca me entusiasmou, com exceção daquela paráfrase bíblica), então não sei se a culpa é do Meirelles, mas a metáfora de uma epidemia de cegueira representando a cegueira moral da humanidade é bastante simplória, e o filme nunca vai por caminhos inesperados ou impressionantes. É uma pena que tal banalidade inunde o projeto, que nunca chega a ser muito pesado ou desagradável (o "Antes Que o Diabo...", do Lumet, vai muitíssimo mais fundo). As imagens são bem pouco interessantes (pensei que Meirelles ia ousar mais). E o fato de não ser um "filme de personagem" atrapalha: eles são muitos e pouco desenvolvidos (sequer têm nome, apenas a profissão), dificultando demais a empatia. Será que não foi um erro ter retirado a narração da personagem de Danny Glover? Foi o único momento no filme em que consegui entrar na cabeça de um dos personagens, já que o diretor falha (ou nem se preocupou) em nos mostrar isso visualmente.

    Melhor é "Cão sem Dono", embora seja o pior longa do Beto Brant que vi (só falta o "Ação entre Amigos"). Feito de sequências muito bem separadas, sem uma cronologia 100% linear, com os atores (nem todos profissionais) improvisando bastante (excelente o trabalho de Roberto Oliveira numa cena especialmente tocante; outro destaque é a conversa bêbada entre Marcos Contreras e Júlio Andrade), peca mesmo pelo protagonista (não pelo ator), que é muito, mas muito chato (provavelmente é culpa do autor do livro). Depois do ótimo "Crime Delicado", espera-se que Brant dê a volta por cima...

    Na favela dos clássicos, revisitei "Boca de Ouro", de Nelson Pereira dos Santos, só para confirmar o quanto o texto de Nelson Rodrigues é maravilhoso e como Jesse Valadão e Odete Lara eram excelentes. O resto do elenco também é ótimo (Daniel Filho, Ivan Cândido, Maria Lúcia Carneiro, Georgia Quental e Wilson Grey, entre outros), mas não tem jeito, o texto sempre se sobressai. E vi pela primeira vez "Os Fuzis" (alguma relação com o "Les Carabiniers" do Godard?), o segundo longa de Ruy Guerra, que mostra uma capacidade impressionante e infelizmente rara de movimento de câmera (na mão, praticamente o tempo todo). Também conta com um elenco fantástico (Átila Iório, Nelson Xavier, Maria Gladys, Hugo Carvana, Ivan Cândido, Pereio em seu primeiro filme, uma participação especial de Joel Barcellos e muitos outros). Representante bastante óbvio do Cinema Novo (especialmente do que se convencionou chamar de "estética da fome"), prefere criar um painel (revoltante, da humanidade) a contar uma história, embora dilemas apareçam aqui e ali. Mesmo muito datado (na época devia ser muito moderno), ainda conserva o brilho, daí merecendo a alcunha de "crááássico", como se diz por aí.

    E calhou também de eu ver o início de "Cinderela Baiana", se não me engano a última produção de Antonio Polo Galante. Digo que vi o início porque quando a protagonista cresce e vira a Carla Perez e fica amiga do Lázaro Ramos e aí aparece o Perry Salles de bigode, deu pra mim (com o bônus de perder o Alexandre Pires). Mas o impressionante é que o início do filme não é tão ruim _em especial aquelas cenas em que a mãe da protagonista vai para a beira da estrada com uma pá para tapar buracos no asfalto com terra e disputar com crianças moedas que os caminhoneiros atiram pela janela (eu mesmo não vi isso na viagem que fiz pela Bahia, o que tinha mesmo era vendedores de cacau e de bichos silvestres, estes ilegais). Curioso também que, embora o filme seja do final dos anos 90, ele parece muito mais antigo.

    ***
    Eu comecei a me interessar mesmo por música popular com o punk rock (antes, gostava de algumas coisas que chegavam a meus ouvidos, invariavelmente roqueiros, como Eramos Carlos _do Roberto, nem tanto_ e Raul Seixas. Também gostava do Ney Matogrosso, não pela música, mas pelo visual exuberante, parecia um super-herói). E descobri que existia punk no Brasil com o "Crucificados pelo Sistema", registro clássico do Ratos de Porão na fase puramente hardcore, com pouca influência de metal. Daí pra frente virei colecionador e ainda tem vários vinis de selos independentes em algum lugar da casa de meus pais, material de museu. Portanto, não ia perder por nada deste mundo uma das exibições de "Guidable - A Verdadeira História do Ratos de Porão", de Fernando Rick e Marcelo Appezzato. Fui gentilmente convidado para a pré-estreia, com a presença da banda, mas como era em dia de trabalho, fui à lotada sessão a R$ 1. Na fila, dominada por cheiro de sovaco de roqueiro, um pessoal atrás de mim comentou que o conjunto de pagantes lembrava um "asilo do rock" (a média da idade do público era mesmo de 30 pra cima). A sala lotou, o que me deixou contente _nem me lembrava mais de minha última sessão lotada, que provavelmente ocorreu também no Olido.

    O documentário é mais simples que uma canção dos Ramones. Entrevistas (aparentemente gravadas com cada um em apenas uma sessão _curiosamente, as dos ex-integrantes os mostram tomando umas Brahmas, será que foi proposital?) com todo mundo que passou pela banda, em ordem cronológica de entrada no grupo, e com colegas; fartíssimo material de arquivo (incluindo clips, aparições na TV, vídeos caseiros _o João Gordo parece adorar andar com uma câmera pra tudo quanto é lado nas turnês_, shows _alguns bem antigos_, fotos e até bastidores das gravações do "Carniceria Tropical") e aparentemente pouca coisa a mais gravada especialmente para o filme, como o show que precedeu uma operação de hérnia do Gordo e que registra o reencontro com os ex-RDP Spaghetti e Jabá. Quem já conhece os Ratos sabe que eles são divertidos e têm muita história pra contar; o resultado é que o filme, de 2 horas, passa voando e ainda assim deixa muita história de fora (senti falta especialmente de algumas coisas bem curiosas, como os gibis mensais feitos pelo Marcatti que mostravam os integrantes do grupo como ratões antropomorfizados e alguma menção sobre como a entrada do Gordo na MTV e seu consequente "emburguesamento" _lembremos que ele fez propaganda de carro, refrigerante e sei lá mais o quê, além de ter aparecido na capa da Ilustrada confessando que teve depressão e tomou "prozaquinho"_ afetou o grupo, o que certamente ocorreu). Independentemente disso, o filme vale a pena para os fãs e é um justo testemunho da rara qualidade do RDP, sem dúvida uma de minhas bandas brasileiras preferidas (se não for a preferida).

    Por coincidência, dias antes tinha visto o "Botinada: A História do Punk no Brasil", do ex-VJ da MTV Gastão Moreira, que é sobre o "movimento" punk (acima de tudo na Região Metropolitana de São Paulo, embora apareçam representantes de Brasília e Rio Grande do Sul). Este, por ser mais abrangente, dá uma versão interessante da história, que volta a ser resumida no início do filme do Ratos pelo Redson do Cólera: de maneira patética, a molecada roqueira da periferia paulistana recebeu uma versão distorcida (por uma mídia que sofria censura da ditadura ou que era tosca mesmo) do que seria o punk rock _ou seja, vômitos, brigas, cuspes, alfinetes na cara, um monte de bobagens. No filme de Gastão, mais uma revelação que chega a ser chocante: essa história de gangues na capital e no ABC surgiu porque um bando de cretinos viu o "Warriors", belo filme de Walter Hill, e achou que seria divertido se matarem de porrada (João Gordo resume bem quando compara com a cena do metal, que tinha "mais mulheres, mais shows e não tinha briga"). É deprimente tamanha ignorância, e infelizmente ainda estamos longe de ultrapassá-la, porque o nosso sistema educacional é ridículo e a mídia em geral continua a idiotizar o povo (soa ingênuo como uma letra de banda punk, mas é verdade). Mas não deixa de ser emocionante que jovens pobres da periferia (não tão pobres como seus sucessores, os rappers) tenham se esforçado para criar alguma coisa (no filme do Ratos, Jão fala da ingenuidade de suas boas intenções e que ganhou "só xingo e cuspida" do público que queria atingir). E sobrou a música, feia, suja, tosca e muito legal, melhor do que boa parte do que foi feito no mesmo período, muito mais pretensiosa, muito mais superficial.

    ***
    Também feios, sujos e toscos são alguns filmes com sexo explícito feitos no Brasil no início dos anos 80 e que prometi abordar aqui. Um deles teria sido um grande sucesso de bilheteria (estaria em alguma lista da Embrafilme? Duvido...), talvez o maior de José Mojica Marins: "24 Horas de Sexo Explícito", de 1985. E lembra as pornochanchadas dele: embora longe do melhor do diretor, é possível ver sua marca em alguns momentos. Lembro dele dizendo em entrevistas que a primeira imagem que viu no cinema em que seu pai trabalhava era um close de um órgão sexual feminino com gonorreia, daqueles filmes educativos sobre doenças venéreas: ele quase reproduz aqui o plano (sem a moléstia, claro), para horror (palavra invariavelmente ligada a Mojica) do personagem gay. Há outro plano que eu nunca tinha visto em nenhum outro filme do gênero: uma subjetiva da atriz mostra esperma caindo na lente. Também se destacam o papagaio comentarista e a fantástica "roda de bundas". O tão falado trecho do bestialismo é uma pérola da picaretagem: o cachorro não vai às vias de fato com a moça, cujo noivo, após pegá-la no flagra, decide "provar que é machão". E o que ele faz? É um primor de subversão da lógica... De resto, mulheres feias ("para desacreditar o cinema pornô", ele me disse em uma entrevista em 1995) e frases grosseiras e impagáveis _mas aí estamos no denominador comum do pornô nacional da era da película.

    Saindo radicalmente deste denominador comum, chegamos ao polêmico Sady Baby. Vi quatro de seus filmes (em parceria com Renato Alves), todos variações sobre o mesmo tema: em uma história meio sem pé nem cabeça e repleta de diálogos sem noção (exemplo: em "No Calor do Buraco", Sarampo, um velho barbudo e nojento que vive bebendo leite em uma mamadeira e tem a voz fininha, está pegando "de quatro no ato" uma sorridente mulher em um chiqueiro. Sady Baby e outro ator passam por ali carregando enxadas e param para comentar a bucólica cena: "Sarampo tá metendo", diz Sady; "É um viado, mesmo", responde o outro ator, meneando a cabeça em tom de censura; "É um filho da puta!", retruca Sady, completando o elaborado raciocínio), com o protagonista sempre querendo se vingar de alguém (exemplo: em "Emoções Sexuais de um Jegue" ele é um bandido soropositivo que se diverte infectando suas vítimas) e, no meio tempo, torturando, matando (com direito a "gore" que não faz vergonha a outros clássicos de baixo orçamento) e incendiando algum imóvel. E as cenas de sexo geralmente são ou ao ar livre, em belas locações na zona rural, ou em um lugar fechado e improvisado (com nomes do tipo "Mocó do Traficantes") com uma porção de gente (sem diferenciar héteros e gays, o que por um lado poderia ser democrático, mas acaba impedindo seus espectadores de entrarem no "clima" que a maioria das produções pornôs buscam). Por cima de tudo, uma trilha sonora pirateada que não segue lá grande lógica e pode misturar Abba e músicas caipiras do Rio Grande do Sul (com direito a barulhos de animais como galinha, vacas e cavalos nas cenas de sexo de "No Calor do Burado", o mais rural de seus filmes _o que em certos trechos faz lembrar uma versão hardcore dos filmes de Bethel Buckalew).

    Mas não é só isso: Sady também busca filmar o sexo de maneira diferente, como em "Emoções Sexuais de um Jegue", no qual ele simula o orgasmo de um cavalo (outro caso de picaretagem zoófila) e filma o que seria o sexo visto "de dentro" usando um pedação de carne que suponho ser bovina. Além da zoofilia, taras como incesto e necrofilia estão associadas a quebras da quarta parede: o ator/diretor Baby costuma fazer charme e dar umas piscadelas para o público quando comete algum ato revoltante, o que acontece com frequência. Mas é em "A Máfia Sexual" (filme que traz a participação especial de Pedro de Lara) que ele soa até profético em um desses momentos. Após mostrar recortes de jornal falando sobre ele mesmo (destacando a cena de zoofilia picareta de "Emoções Sexuais de um Jegue"), ele diz algo como: "Nesse país não dá pra fazer filme de putaria, que dá cadeia." Sábias palavras, sádico Baby.

    P.S. Vai aí o link para o blog do meu colega Rubens, proprietário da Rub Records, o selo de DVDs mais alternativo do Brasil.

    P.P.S. O homem que me ensinou a ler e a escrever morreu. Não tenho palavras.

    sexta-feira, agosto 08, 2008

    Estou começando a escrever este texto em 08/08/08, dia da estréia de "Encarnação do Demônio", o aguardadíssimo filme de José Mojica Marins (eu precisava achar a transcrição da entrevista de quatro horas que fiz com ele em 1995, na qual ele me ensinou a como fazer uma mulher trepar com uma tartaruga, para reproduzi-la aqui). Li uma declaração sobre o filme (não lembro se do próprio Mojica; provavelmente é do roteirista e diretor-assistente Dennison Ramalho), falando que a modernização do gênero passa pela questão da desintegração do corpo, vista em filmes como "Saw" (que tentei ver duas vezes e não consegui, achei os primeiros dez minutos muito ruins), "O Albergue" (do qual gostei), filmes de Takashi Miike (que adoro _dos que vi, o único que não me entusiasmou foi o "Sukiaki"). Daí que há poucos dias aconteceu um assassinato grotesco em Goiânia, que vem excitando a morbidez do povo e fazendo lembrar do Crime da Mala, de Chico Picadinho etc. Bem, gente que mata e depois esquarteja o corpo da vítima para melhor se desfazer dele não é nenhuma novidade (quantas HQs de "Cripta do Terror" não foram feitas sobre o assunto?). O que me chama a atenção nesse caso é que o assassino fotografou o cadáver para mostrar aos amigos e parentes... Isso dá um pano pra manga gigantesco (até me lembrou de "Peeping Tom").

    ***

    Escrevo agora no final de 11/08, tendo visto ontem o filme do Mojica, num Cinemark do Shopping D (por onde entrei pelo elevador de carga) com uma poltrona que mais parecia um instrumento de tortura (pena que não deu para aceitar o convite à queima-roupa do Vebis, no sábado), após um bom tempo longe das salas de cinema. Apesar de ter gostado bastante de vários trechos, é impossível conter uma certa decepção. É perfeitamente compreensível o grande problema decorrente da trágica morte de Jece Valadão (a costura com a personagem de Adriano Stuart é bem-feita, mas o filme não deixa de ser prejudicado). Criticar o trabalho de Mojica como ator também me parece chover no molhado _curiosamente, ele perde ao não ser dublado (e não é uma questão de preconceito lingüístico). Mas o encadeamento do roteiro de uma forma geral acabou deixando muito a desejar e é especialmente problemático no que tange a longa busca de Zé do Caixão pela mulher-superior-que-vai-gerar-o-filho-perfeito. A inserção da personagem na metrópole moderna poderia ter sido melhor explorada _boas sugestões não faltaram, como os encontros com travestis, crianças cheirando cola, a polícia violenta, mas não são aprofundadas (outras soluções mais ousadas e criativas poderiam ter encontrado a tela). Algumas questões fantásticas (em mais de um sentido) são apresentadas mas nunca muito bem resolvidas, como as aparições fantasmagóricas das vítimas que Zé fez nos outros dois filmes (a primeira delas, num cemitério, é minha cena preferida). E, pelo que li na Folha, foi desperdiçado um flashback maravilhoso, que mostrava como Josefel Zanatas passou de herói de guerra a sádico (tudo por causa de uma mulher, é claro), que fazia grande justiça ao personagem. Mas obviamente o filme vale a pena, não apenas por dar continuidade a uma obra tão importante do cinema brasileiro (e do gênero terror, em todos os tempos), mas por trazer interpretações antológicas, ainda que curtas, do já citado Valadão (sua primeira cena é excelente), de Luís Melo, que abre o filme (pena que desaparece _provavelmente será o meu coadjuvante do ano), e de Helena Ignez, perfeita como a bruxa cega (que poderia ter saído de "Macbeth"). Também me agrada muito o uso de planos que mostram o interior dos corpos (como o do coração de Zé, o rato na vagina, as imagens do início). Mas o grande serviço que o filme presta (lembrando que estas são apenas primeiras impressões, pretendo revê-lo assim que possível e repensar tudo isso) é o de recuperação do Mojica e de Zé do Caixão: o uso de cenas de filmes anteriores são sem dúvida os momentos mais emocionantes (sou suspeito para falar, meu envolvimento emocional com a personagem é muito grande), e a retomada do final de "Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver" (meu preferido) é excelente. Resumindo, fico muito feliz que este filme tenha sido feito (e muito triste com os resultados preliminares da bilheteria), mas fica o gosto de que poderia ter sido muito, muito melhor _o que é uma constatação muitíssimo comum.

    Se o filme do Mojica me causava uma expectativa e uma ansiedade gigantescas, eu não esperava absolutamente nada de "O Cheiro do Ralo", de Heitor Dhalia _cujo filme anterior, "Nina", tinha um erro de concepção muito sério: o de nos querer fazer acreditar que uma personagem absolutamente ordinária fosse extraordinária (esqueçamos que é uma adaptação de "Crime e Castigo", isso é ridículo). E realmente não estava gostando do filme em seus primeiros minutos, com aqueles planos de conjunto que pareciam querer emular, sem conseguir, o Paul Thomas Anderson de "Punch-Drunk Love"; mas o filme acaba engrenando, graças à atuação de Selton Mello (acima de sua média, embora, por breves momentos, ceda aos cacoetes do ator), e às boas montagem e trilha sonora. Novamente, o roteiro deixa um pouco a desejar (um final pungente e catártico foi infelizmente desperdiçado _coisa semelhante acontece com "O Céu de Suely" e "O Ano em Que Meus Pais Saíram de Férias"; será que os diretores não sabem mais a hora de terminar seus filmes?), mas fiquei positivamente surpreendido por esta obra, que acertou ao deixar a pretensão desmedida do filme anterior de lado e criar algo que parece estar bem mais próximo do diretor. E já que estamos falando em Selton Mello, comecei a ver "Meu Nome Não É Johnny" (o adiantado da hora me fez interrompê-lo) e acho que os 70% do filme que vi até o momento (agora é dia 18/08) me permitem dizer que é muito fraco; o elenco é bom, alguns diálogos são engraçados, mas o resto...

    ***

    Falei da Índia no texto anterior e há pouco me deparei com outro cineasta de lá, Ritwik Ghatak (que morreu jovem, mas fez mais de 20 filmes). Já havia procurado por "Ajantrik", sem sucesso, mas encontrei "Meghe Dhaka Tara": um belo drama familiar, calcado na um tanto folhetinesca figura da mulher (interpretada pela birmanesa Supriya Choudhury) que se sacrifica pelo bem-estar da família. Se não fosse propenso à um maior derramamento emocional (nada muito chantagista), seria até comparável a Ozu (não na forma, claro). Toda a família é composta de tipos bem específicos, que juntos funcionam muito bem, e a música tem um papel muito importante (tanto que inicia e termina o filme). Também de lá, claro, é Satyajit Ray, de quem vi o "O Mundo de Apu", último episódio de sua trilogia e seu quinto filme. A história é simples e poderosa, mas o destaque é a decupagem: planos belíssimos _em especial aqueles em que ele fala da obra que está escrevendo e a que mostra o destino final da mesma. É também o filme de estréia de Soumitra Chatterjee, que interpreta o protagonista na idade adulta e acabou se tornando ator profissional: trabalhou em quase metade dos filmes de Ray e segue na ativa.

    Mas vamos direto para o melhor filme que vi no período: "Le Testament d'Orphée, ou Ne Me Demandez Pas Pourquoi!". É o último filme de Jean Cocteau, no qual ele depura seu estilo (visto em filmes como "Le Sang d'un Poète"), usando de uma série de trucagens simples, e se coloca na tela (junto a uma série de amigos ilustres) para criar cenas de grande beleza _e o que é mais difícil: ser poético sem ser afetado. Também da França, foram conferidos o recente "Le Scaphandre et le Papillon" (Julian Schnabel de novo com uma cinebiografia; é bem melhor do que seu filme anterior e menos deprimente do que pensei que seria; o primeiro ato lembra "Dark Passage", belo noir de Delmer Daves; ainda assim, acho que está sendo superestimado), "O Sol por Testemunha" (muito mais conciso do que "O Talentoso Ripley" _o que, neste caso, é um defeito: sinto especialmente falta de testemunhar uma ligação maior entre as personagens de Alain Delon e Maurice Ronet; o filme de Minghella inclusive resvalava no homoerotismo) e "Tangos, l'Exil de Gardel" (feito em Paris pelo argentino Fernando Solanas e visto no encerramento do 3º Festival Latino-Americano de São Paulo, com a presença do diretor; também menos deprimente do que pensava, é um belo musical _que me fez voltar a ouvur Piazzola_, cheio de humor e sem ficar preso ao naturalismo _além de algumas atrizes bonitinhas, o que sempre ajuda). E, apesar de não ser falado em francês, cabe colocar aqui também o "Bonjour Tristesse" de Preminger (um dos raros que ele dizia gostar), que, durante boa parte do tempo, parece estar envolto em uma névoa de inverossimilhança _o que é reforçado pelas transições entre o presente (em preto-e-branco) e o passado (em cores), além da narração da protagonista. O hedonismo exagerado é retratado como algo bem desagradável, e o choque de realidade que acontece ao final estremece o filme e dá ao mesmo uma força que até então ele não mostra _mas não o suficiente para levantá-lo.

    Também passeei pelas obras de alguns nomes clássicos, inclusive aqueles dois que morreram há pouco, Antonioni e Bergman. Do primeiro, fui de "L'Avventura", um romance muito mais linear do que esperava, com um grande cuidado em cada plano e uma Monica Vitti brilhante. Do sueco, toda aquela trupe de sempre (Max von Sydow, Ingrid Thulin, Gunnar Björnstrand, Bibi Andersson, Erland Josephson etc.) volta em "O Rosto", seu último filme nos anos 50; é mais uma história tragicômica e com toques de erotismo, e novamente a influência do teatro é bem evidente _talvez seu filme mais leve? Dois amigões da vizinhança não poderiam faltar: Fritz Lang, de volta ao idioma alemão, trouxe seu díptico "O Tigre de Bengala" e "Sepulcro Indiano", que têm cara de filme antigo _no sentido de cinema de espetáculo e também de um olhar típico de "colonizador sobre o colonizado", além da "cara" de estúdio, com efeitos especiais bem pouco convincentes; não à toa, têm seus melhores momentos quando o diálogo desaparece. O óbvio destaque é Debra Paget; nas duas cenas em que ela dança longamente em frente a uma peituda estátua de Shiva, fica claro que Lang sabia filmar mulher (lembra a também sensual dança em "Moonfleet", um filme bastante parecido com estes); o figurino da atriz também é escandaloso (no bom sentido) nessas cenas: a primeira traz um rubi de formato sugestivo em um local mais sugestivo ainda; na segunda, ela provavelmente inspirou gerações de rainhas de bateria do Carnaval com seu tapa-sexo, deixando a cobra louquinha (a canção do Jorge Mautner seria uma boa opção de trilha sonora). E Buñuel, notoriamente anticlerical, trouxe "Nazarín", feito no ultracatólico México. A história demora a decolar, mas os dois últimos terços do filme são sublimes. Francisco Rabal está ótimo como o padre que, por decidir seguir à risca os ensinamentos de Cristo, passa a ser desprezado por todos os outros que se dizem cristãos. Muito irônico, o filme também critica a postura pouco humana de seu protagonista, que tem como discípulas uma prostituta e uma quase-suicida romântica. Um dos momentos mais intensos é quando o padre se depara com um bandido, e este conclui: "Você é todo bom, e eu, todo mau. Ambos não valemos nada". A Bíblia e todo o seu imaginário são parodiados durante boa parte do tempo, e o final é simplesmente maravilhoso. Tenho a impressão de que exerceu influência sobre o cinema brasileiro. E falando nele, quem diria, vi "Rio Zona Norte", o segundo longa de Nelson Pereira dos Santos. Claro que seu protagonista, Espírito da Luz (Grande Otelo), rouba o filme (mesmo com Jece Valadão, Paulo Goulart e até mesmo Ângela Maria). Inevitavelmente datado (especialmente nas cenas mais melodramáticas e dialogadas), alterna vaivéns no tempo, planos com e sem som e documenta a periferia carioca. É muito interessante analisar este filme como um contraponto (nem tão "contra" assim) das chanchadas.

    Fechando com o o país de Hussein Obama, vamos logo para os dois westerns do período: "Man of the West", apesar da cor e do scope, é talvez o filmes mais feio (e também o mais violento e sujo) de Anthony Mann. Não consegui deixar de implicar com o fato de Gary Cooper ser meio velho para interpretar o herói e Lee J. Cobb, muito jovem para o vilão _Julie London está em idade satisfatória. Muito melhor é "The Bravados", um dos últimos filmes de Henry King. Distinto, traz Gregory Peck num papel à primeira vista pouco simpático _o de vingador, cujos propósitos vão sendo elucidados bem aos poucos, garantindo uma aura de mistério durante boa parte da obra. O filme cresce e ao final, deixa marcada sua moral. De Mann, também vi "O Pequeno Rincão de Deus", que mais uma vez traz Robert Ryan e Aldo Ray. Começa como comédia e muda bastante de tom lá pelo final. Chama muito a atenção o erotismo do filme (ajudado pela presença das beldades Tina Louise e Fay Spain _e de seus generosos decotes); lembra até uma espécie de versão mais leve de "Mudhoney", do grande Russ Meyer. Falando em "sexploitation", "The Naked Venus", que Edgar G. Ulmer dirigiu sob pseudônimo em 1958, é um caso interessante de um filão criado para driblar a censura: inserir em uma trama cenas em campos de nudismo _é ótimo ficar mostrando um bando de gente pelada e depois fazer a defesa da prática como parte do "american way of life". Curiosamente (ou não), os planos com gente nua são o que há de melhor neste filme: a história é meio boboca (com exceção do fato de a heroína ser não apenas uma modelo artístico, mas também nudista), e o elenco é péssimo _mas a filha do diretor, Arianne, é bem bonita e tem "presença".

    Ainda nos EUA, mas nas mãos de um alemão, Douglas Sirk (seu nome verdadeiro era Hans), temos "A Time to Love and a Time to Die", outra adaptação de Erich Maria Remarque (que faz aqui sua única aparição como ator), que novamente enfoca a guerra _desta vez, a Segunda, mas com um final razoavelmente semelhante ao de sua obra mais famosa, "Nada de Novo no Front". Claro que o melodrama se impõe, na história do jovem soldado (John Gavin, uma espécie de Rock Hudson menos corpulento) que volta para casa de licença e encontra seu mundo destruído (Klaus Kinski, bem jovem, participa de uma cena). Mas muito melhor é "The Tarnished Angels", também é adaptação de um romance (William Faulkner) e, até onde me lembro, é seu primeiro filme em preto-e-branco que vejo. Rock Hudson, novamente acompanhado de Dorothy Malone, volta em um filme sensibilíssimo e eficiente nas cenas de ação envolvendo os aviões. É também um primor de roteiro e de construção de personagens, mas chama especialmente a atenção o brilho da mise-en-scène: os planos são de uma beleza rara. Belíssimo também (e retratando o pós-guerra) é "Some Came Running" ("Deus Sabe o Quanto Amei"), de Vincente Minnelli. Shirley MacLaine é o grande motivo para vê-lo, embora Frank Sinatra e Dean Martin não sejam de jogar fora. Também estrelado por um trio é "The Crimson Kimono", mais uma gema de Samuel Fuller _mesmo não sendo um de seus melhores. Começa como um policial bem sórdido (a primeira cena é um strip-tease) e aos poucos vai crescendo ao se tornar um inesperado romance (com uma cema belíssima que envolve um piano). Há também uma discussão sobre o racismo e a mistura entre o Ocidente e o Oriente e, bem mais sutil, sobre o papel da arte. Completa o pacote uma porção de planos que exploram uma variedade bem grande de signos _mas tudo sem frescura, é claro, porque Fuller era bad muthafucka.

    Falando em bad muthafuckas, os melhores momentos da segunda temporada de "Roma" são quando Lucius Vorenus (Kevin McKidd) e Titus Pullo (Ray Stevenson) resolvem as coisas com derramamento de sangue, muito sangue. Há também uma cena muito bonita com o Brutus de Tobias Menzies. James Purefoy, como Marco Antônio é outro grande destaque, assim como Lyndsey Marshal (Cleópatra), Zuleikha Robinson (Gaia) e Simon Woods (Otávio adulto) _e, claro, Polly Walker (Atia) e Lindsay Duncan (Servilia). Novamente, a HBO chutou bundas _desta vez, calçando sandálias.

    ***

    Para finalizar, curtas (não metragens): Recebi um gentil convite de Ailton Monteiro para entrar no Karagarga, onde é possível achar uma porção de filmes (e discos e livros) que não dão as caras no E-Mule, que eu insisto em usar. Creio que vai demorar um bom tempo até eu puder fazer uploads por lá, mas, assim que rolar, devo colocar ali o DVD de "A Volta do Regresso". Enquanto o dia não chega, o filme continua circulando por aí: passou, no mês passado, em uma mostra no Centro Cultural São Paulo (da qual eu só fiquei sabendo depois que rolou), e estará em Santos no mês que vem.

    David Lynch veio ao Brasil. Não pude ir ao encontro do topetudo meditabundo, mas uma galera foi, furou a fila simulando uma gravidez e tiraram fotos e pediram autógrafos ao figura. Recebi algumas, mas não reproduzo aqui porque não são minhas. O mais legal foi a pergunta feita pelo Vebis: "Do you like rockabilly?". Óbvio que o diretor de "Wild at Heart" respondeu (repetindo várias vezes, como um mantra): "I love rockabilly!".

    Outro que está por aqui é Win Wenders. Não vou ao encontro dele com o Walter Salles e o Alcino Leite Neto (para quem fiz uns frilas quando ele era o editor do "Mais!"), mas uma coisa me chamou a atenção: o seu próximo projeto é uma adaptação de um livro do Murakami, a ser filmada em Tóquio. Será que vai ficar boa?

    Morreu Dorival Caymmi. Sou muito mais fã das letras do que das músicas, mas sem dúvida foi um gigante. Agora, não me esqueço mesmo daquela tira do Angeli em que um casal está na praia e, de repente, o home começa a cantar: "O mar, quando quebra na praia, é bonito...". A mulher, injuriada: "Credo, que coisa brega!". O homem, mais puto ainda: "É do Caymmi, porra!". E ela, não sei se irônica ou apaziguada: "Ah! Então é lindo!".

    Trabalhar em uma empresa centenária sem dúvida dá no que pensar. Vejam este parágrafo que saiu há mais de 100 anos, em 17 de julho de 1908 _uma sexta-feira: "Existe, na rua Direita, um cinematographo gratuito de réclame. Há, todas as noites, grande agglomeração de gente alli, e alguns garotos, occultando-se atraz de um andaime das immediações, divertem-se a atirar pedras nas pessoas que por ali passam. À polícia compete impedir a continuação desses abusos da garotagem."

    Mas deixei para terminar com a frase do século, proferida pelo efelentífimo sr. presidente da República: "Nossos filhos já não querem mais o carro e, sim, o computador novo. É a paixão deles, para passar a noite namorando sem ver a mulher, coisa que a nossa geração não fazia".

    Na platéia