A gruta é mais extensa do que a gruta

    follow me on Twitter
    Mostrando postagens com marcador Ruy Guerra. Mostrar todas as postagens
    Mostrando postagens com marcador Ruy Guerra. Mostrar todas as postagens

    quinta-feira, maio 14, 2009

    Um pouco de cinema nacional


    E começamos o oitavo ano deste absurdo ridículo tentando mudar de novo _mas sem essas viadagens de Twitter (que aqui ainda habitamos um mundo alfabetizado, onde há coisa melhor para fazer) ou de boicote à carne de porco (que aqui ainda habitamos um mundo onde não se dispensa um lombinho ou uma costelinha).

    Então, eu não sei se já disse isso por aqui, mas acho muito esquisito obras de arte competirem. É vulgar e estúpido, além de rebaixar os filmes (ou os livros, etc.), mas funciona perfeitamente na lógica do capitalismo, obcecado pela figura do "vencedor", do "número 1", essas coisas que até se aplicam ao esporte (embora aí também entrem variáveis "nada a ver" como patrocinador, estrutura, etc.), mas não às artes (onde, inclusive, fracassar pode ser "cool", "romântico", "charmosamente decadente", pff). Pois parece que agora (ou há alguns anos, não interessa) existe um prêmio de cinema brasileiro com nome de patrocinador (ridículo, ridículo; será este o mesmo que inventou o tal de prêmio para "product placement" e o deu pela primeira vez para um absorvente íntimo no primeiro "Seu Eu Fosse Você"?) e que inclusive, dizem, foi exibido pela TV (não sei em que canal ou horário, a divulgação foi aparentemente péssima), talvez por vontade de se igualar ao Oscar (não lembro quem foi o gênio _Inácio Araújo, para variar?_ que disse que o troféu, em vez de se chamar Grande Otelo, deveria se chamar Oscarito).

    Se premiaram o melhor filme ou não, é questão que não deixa de ter sua relevância, mas não é a que me interessa no momento. O interessante é que não se premiou uma bomba, mas "Estômago", a estreia de Marcos Jorge em longas de ficção. Até tem atores já cooptados pela TV, mas é claramente um filme de baixo orçamento (sem ser prejudicado por causa disso), com jogo de cintura. A história, narrada em vaivéns temporais, não tem frescura e não causa confusão _pelo contrário, o enredo é bastante previsível, sem que isso seja um defeito. O filme aposta quase tudo em seu protagonista e fica muito difícil imaginá-lo sem João Miguel, que o carrega nas costas, apoiado por bons coadjuvantes (destaque óbvio para Fabiula Nascimento); curiosamente, o que mais me incomodou foram algumas piadas infames mal integradas à narrativa (já os palavrões são ótimos, embora eles não combinem tanto com o dono do restaurante italiano _ficou parecido demais com o do boteco das coxinhas).

    Por outro lado, é com certa tristeza que me deparo com "Não por Acaso", outra estreia em longa, mas de um diretor mais hypado no mundinho paulistano. Só vi dois dos seus elogiados curtas, um bem bom e outro bem fraco; o longa infelizmente pende para o lado mais fraco. Sem dúvida ele se encaixa na seara dos filmes "certinhos e bem feitos", cheio de planos bonitinhos (os bons mesmo são os que mostram panorâmicas da cidade), que tanto agradam a quem gosta apenas superficialmente de cinema (entre eles uma boa parte dos curadores e jurados de festivais) mas que não causam grande impacto em cinéfilos mais ou menos dignos do nome. E é este talvez o maior defeito do filme: não traz nenhuma surpresa (o roteiro é esquemático, mas claro que isso foi proposital), os momentos que deveriam ser mais emocionantes mal arranham a casca do espectador. E a trilha sonora é um horror _o filme ganharia muito se ela fosse eliminada. Caramba, se o diretor queria fazer um melodrama, que enfiasse o pé na jaca mole, pois ainda estamos fartos do lirismo comedido; se queria fazer um filme "cerebral", que deixasse totalmente de lado seus rasos ensaios folhetinescos e fosse mais severo, limando os planinhos bobinhos com musiquinha apelativa. Tá na hora de mais ousadia e mais coragem, sem vergonha de ser proscrito (inclusive do tal prêmio caipira). Promessas que não se cumprem só têm graça quando foram feitas para sacanear alguém.

    Padrinho do Philippe Barcinski, Fernando Meirelles também filma São Paulo (inclusive perto de casa _e alguns planos foram filmados do apê de uma amiga, que ganhou uns R$ 300) em "Blindness". Não li este livro de Saramago (autor que nunca me entusiasmou, com exceção daquela paráfrase bíblica), então não sei se a culpa é do Meirelles, mas a metáfora de uma epidemia de cegueira representando a cegueira moral da humanidade é bastante simplória, e o filme nunca vai por caminhos inesperados ou impressionantes. É uma pena que tal banalidade inunde o projeto, que nunca chega a ser muito pesado ou desagradável (o "Antes Que o Diabo...", do Lumet, vai muitíssimo mais fundo). As imagens são bem pouco interessantes (pensei que Meirelles ia ousar mais). E o fato de não ser um "filme de personagem" atrapalha: eles são muitos e pouco desenvolvidos (sequer têm nome, apenas a profissão), dificultando demais a empatia. Será que não foi um erro ter retirado a narração da personagem de Danny Glover? Foi o único momento no filme em que consegui entrar na cabeça de um dos personagens, já que o diretor falha (ou nem se preocupou) em nos mostrar isso visualmente.

    Melhor é "Cão sem Dono", embora seja o pior longa do Beto Brant que vi (só falta o "Ação entre Amigos"). Feito de sequências muito bem separadas, sem uma cronologia 100% linear, com os atores (nem todos profissionais) improvisando bastante (excelente o trabalho de Roberto Oliveira numa cena especialmente tocante; outro destaque é a conversa bêbada entre Marcos Contreras e Júlio Andrade), peca mesmo pelo protagonista (não pelo ator), que é muito, mas muito chato (provavelmente é culpa do autor do livro). Depois do ótimo "Crime Delicado", espera-se que Brant dê a volta por cima...

    Na favela dos clássicos, revisitei "Boca de Ouro", de Nelson Pereira dos Santos, só para confirmar o quanto o texto de Nelson Rodrigues é maravilhoso e como Jesse Valadão e Odete Lara eram excelentes. O resto do elenco também é ótimo (Daniel Filho, Ivan Cândido, Maria Lúcia Carneiro, Georgia Quental e Wilson Grey, entre outros), mas não tem jeito, o texto sempre se sobressai. E vi pela primeira vez "Os Fuzis" (alguma relação com o "Les Carabiniers" do Godard?), o segundo longa de Ruy Guerra, que mostra uma capacidade impressionante e infelizmente rara de movimento de câmera (na mão, praticamente o tempo todo). Também conta com um elenco fantástico (Átila Iório, Nelson Xavier, Maria Gladys, Hugo Carvana, Ivan Cândido, Pereio em seu primeiro filme, uma participação especial de Joel Barcellos e muitos outros). Representante bastante óbvio do Cinema Novo (especialmente do que se convencionou chamar de "estética da fome"), prefere criar um painel (revoltante, da humanidade) a contar uma história, embora dilemas apareçam aqui e ali. Mesmo muito datado (na época devia ser muito moderno), ainda conserva o brilho, daí merecendo a alcunha de "crááássico", como se diz por aí.

    E calhou também de eu ver o início de "Cinderela Baiana", se não me engano a última produção de Antonio Polo Galante. Digo que vi o início porque quando a protagonista cresce e vira a Carla Perez e fica amiga do Lázaro Ramos e aí aparece o Perry Salles de bigode, deu pra mim (com o bônus de perder o Alexandre Pires). Mas o impressionante é que o início do filme não é tão ruim _em especial aquelas cenas em que a mãe da protagonista vai para a beira da estrada com uma pá para tapar buracos no asfalto com terra e disputar com crianças moedas que os caminhoneiros atiram pela janela (eu mesmo não vi isso na viagem que fiz pela Bahia, o que tinha mesmo era vendedores de cacau e de bichos silvestres, estes ilegais). Curioso também que, embora o filme seja do final dos anos 90, ele parece muito mais antigo.

    ***
    Eu comecei a me interessar mesmo por música popular com o punk rock (antes, gostava de algumas coisas que chegavam a meus ouvidos, invariavelmente roqueiros, como Eramos Carlos _do Roberto, nem tanto_ e Raul Seixas. Também gostava do Ney Matogrosso, não pela música, mas pelo visual exuberante, parecia um super-herói). E descobri que existia punk no Brasil com o "Crucificados pelo Sistema", registro clássico do Ratos de Porão na fase puramente hardcore, com pouca influência de metal. Daí pra frente virei colecionador e ainda tem vários vinis de selos independentes em algum lugar da casa de meus pais, material de museu. Portanto, não ia perder por nada deste mundo uma das exibições de "Guidable - A Verdadeira História do Ratos de Porão", de Fernando Rick e Marcelo Appezzato. Fui gentilmente convidado para a pré-estreia, com a presença da banda, mas como era em dia de trabalho, fui à lotada sessão a R$ 1. Na fila, dominada por cheiro de sovaco de roqueiro, um pessoal atrás de mim comentou que o conjunto de pagantes lembrava um "asilo do rock" (a média da idade do público era mesmo de 30 pra cima). A sala lotou, o que me deixou contente _nem me lembrava mais de minha última sessão lotada, que provavelmente ocorreu também no Olido.

    O documentário é mais simples que uma canção dos Ramones. Entrevistas (aparentemente gravadas com cada um em apenas uma sessão _curiosamente, as dos ex-integrantes os mostram tomando umas Brahmas, será que foi proposital?) com todo mundo que passou pela banda, em ordem cronológica de entrada no grupo, e com colegas; fartíssimo material de arquivo (incluindo clips, aparições na TV, vídeos caseiros _o João Gordo parece adorar andar com uma câmera pra tudo quanto é lado nas turnês_, shows _alguns bem antigos_, fotos e até bastidores das gravações do "Carniceria Tropical") e aparentemente pouca coisa a mais gravada especialmente para o filme, como o show que precedeu uma operação de hérnia do Gordo e que registra o reencontro com os ex-RDP Spaghetti e Jabá. Quem já conhece os Ratos sabe que eles são divertidos e têm muita história pra contar; o resultado é que o filme, de 2 horas, passa voando e ainda assim deixa muita história de fora (senti falta especialmente de algumas coisas bem curiosas, como os gibis mensais feitos pelo Marcatti que mostravam os integrantes do grupo como ratões antropomorfizados e alguma menção sobre como a entrada do Gordo na MTV e seu consequente "emburguesamento" _lembremos que ele fez propaganda de carro, refrigerante e sei lá mais o quê, além de ter aparecido na capa da Ilustrada confessando que teve depressão e tomou "prozaquinho"_ afetou o grupo, o que certamente ocorreu). Independentemente disso, o filme vale a pena para os fãs e é um justo testemunho da rara qualidade do RDP, sem dúvida uma de minhas bandas brasileiras preferidas (se não for a preferida).

    Por coincidência, dias antes tinha visto o "Botinada: A História do Punk no Brasil", do ex-VJ da MTV Gastão Moreira, que é sobre o "movimento" punk (acima de tudo na Região Metropolitana de São Paulo, embora apareçam representantes de Brasília e Rio Grande do Sul). Este, por ser mais abrangente, dá uma versão interessante da história, que volta a ser resumida no início do filme do Ratos pelo Redson do Cólera: de maneira patética, a molecada roqueira da periferia paulistana recebeu uma versão distorcida (por uma mídia que sofria censura da ditadura ou que era tosca mesmo) do que seria o punk rock _ou seja, vômitos, brigas, cuspes, alfinetes na cara, um monte de bobagens. No filme de Gastão, mais uma revelação que chega a ser chocante: essa história de gangues na capital e no ABC surgiu porque um bando de cretinos viu o "Warriors", belo filme de Walter Hill, e achou que seria divertido se matarem de porrada (João Gordo resume bem quando compara com a cena do metal, que tinha "mais mulheres, mais shows e não tinha briga"). É deprimente tamanha ignorância, e infelizmente ainda estamos longe de ultrapassá-la, porque o nosso sistema educacional é ridículo e a mídia em geral continua a idiotizar o povo (soa ingênuo como uma letra de banda punk, mas é verdade). Mas não deixa de ser emocionante que jovens pobres da periferia (não tão pobres como seus sucessores, os rappers) tenham se esforçado para criar alguma coisa (no filme do Ratos, Jão fala da ingenuidade de suas boas intenções e que ganhou "só xingo e cuspida" do público que queria atingir). E sobrou a música, feia, suja, tosca e muito legal, melhor do que boa parte do que foi feito no mesmo período, muito mais pretensiosa, muito mais superficial.

    ***
    Também feios, sujos e toscos são alguns filmes com sexo explícito feitos no Brasil no início dos anos 80 e que prometi abordar aqui. Um deles teria sido um grande sucesso de bilheteria (estaria em alguma lista da Embrafilme? Duvido...), talvez o maior de José Mojica Marins: "24 Horas de Sexo Explícito", de 1985. E lembra as pornochanchadas dele: embora longe do melhor do diretor, é possível ver sua marca em alguns momentos. Lembro dele dizendo em entrevistas que a primeira imagem que viu no cinema em que seu pai trabalhava era um close de um órgão sexual feminino com gonorreia, daqueles filmes educativos sobre doenças venéreas: ele quase reproduz aqui o plano (sem a moléstia, claro), para horror (palavra invariavelmente ligada a Mojica) do personagem gay. Há outro plano que eu nunca tinha visto em nenhum outro filme do gênero: uma subjetiva da atriz mostra esperma caindo na lente. Também se destacam o papagaio comentarista e a fantástica "roda de bundas". O tão falado trecho do bestialismo é uma pérola da picaretagem: o cachorro não vai às vias de fato com a moça, cujo noivo, após pegá-la no flagra, decide "provar que é machão". E o que ele faz? É um primor de subversão da lógica... De resto, mulheres feias ("para desacreditar o cinema pornô", ele me disse em uma entrevista em 1995) e frases grosseiras e impagáveis _mas aí estamos no denominador comum do pornô nacional da era da película.

    Saindo radicalmente deste denominador comum, chegamos ao polêmico Sady Baby. Vi quatro de seus filmes (em parceria com Renato Alves), todos variações sobre o mesmo tema: em uma história meio sem pé nem cabeça e repleta de diálogos sem noção (exemplo: em "No Calor do Buraco", Sarampo, um velho barbudo e nojento que vive bebendo leite em uma mamadeira e tem a voz fininha, está pegando "de quatro no ato" uma sorridente mulher em um chiqueiro. Sady Baby e outro ator passam por ali carregando enxadas e param para comentar a bucólica cena: "Sarampo tá metendo", diz Sady; "É um viado, mesmo", responde o outro ator, meneando a cabeça em tom de censura; "É um filho da puta!", retruca Sady, completando o elaborado raciocínio), com o protagonista sempre querendo se vingar de alguém (exemplo: em "Emoções Sexuais de um Jegue" ele é um bandido soropositivo que se diverte infectando suas vítimas) e, no meio tempo, torturando, matando (com direito a "gore" que não faz vergonha a outros clássicos de baixo orçamento) e incendiando algum imóvel. E as cenas de sexo geralmente são ou ao ar livre, em belas locações na zona rural, ou em um lugar fechado e improvisado (com nomes do tipo "Mocó do Traficantes") com uma porção de gente (sem diferenciar héteros e gays, o que por um lado poderia ser democrático, mas acaba impedindo seus espectadores de entrarem no "clima" que a maioria das produções pornôs buscam). Por cima de tudo, uma trilha sonora pirateada que não segue lá grande lógica e pode misturar Abba e músicas caipiras do Rio Grande do Sul (com direito a barulhos de animais como galinha, vacas e cavalos nas cenas de sexo de "No Calor do Burado", o mais rural de seus filmes _o que em certos trechos faz lembrar uma versão hardcore dos filmes de Bethel Buckalew).

    Mas não é só isso: Sady também busca filmar o sexo de maneira diferente, como em "Emoções Sexuais de um Jegue", no qual ele simula o orgasmo de um cavalo (outro caso de picaretagem zoófila) e filma o que seria o sexo visto "de dentro" usando um pedação de carne que suponho ser bovina. Além da zoofilia, taras como incesto e necrofilia estão associadas a quebras da quarta parede: o ator/diretor Baby costuma fazer charme e dar umas piscadelas para o público quando comete algum ato revoltante, o que acontece com frequência. Mas é em "A Máfia Sexual" (filme que traz a participação especial de Pedro de Lara) que ele soa até profético em um desses momentos. Após mostrar recortes de jornal falando sobre ele mesmo (destacando a cena de zoofilia picareta de "Emoções Sexuais de um Jegue"), ele diz algo como: "Nesse país não dá pra fazer filme de putaria, que dá cadeia." Sábias palavras, sádico Baby.

    P.S. Vai aí o link para o blog do meu colega Rubens, proprietário da Rub Records, o selo de DVDs mais alternativo do Brasil.

    P.P.S. O homem que me ensinou a ler e a escrever morreu. Não tenho palavras.

    Na platéia