A gruta é mais extensa do que a gruta

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    quarta-feira, maio 23, 2007

    Após quase três meses sem freqüentar o circuito comercial, dois filmes "de monstro" me fizeram voltar às salas de shopping. Um deles é o terceiro filme do Sam Raimi com o cabeça-de-teia _que, como esperado, é melhor do que o primeiro e pior do que o segundo.

    De cara, a grande qualidade é o aumento do senso de humor: como se não bastasse uma cena hilária entre J. Jonah Jameson e sua secretária, Tobey Maguire (já velho demais para interpretar o Peter Parker, tomara que não façam um 4º episódio _até porque mataram um personagem importantíssimo, justo quando ele estava ficando interessante) exagera no lado nerd babão do protagonista, vira emo (para desespero do Jorge Benjor, a platéia gritava impropérios sempre que o amigão da vizinhança aparecia com aquela franjinha e maquiagem) e surta num bar de jazz, bancando o Buddy Love em "O Professor Aloprado" e sacaneando a filha albina do Ron Howard. O problema é que isto é compensado com um aumento no chororô a níveis infantilóides e irritantes, especialmente no que toca o Homem-Areia (a cena de seu nascimento é destaque) do Thomas Haden Church. Rosemary Harris, destaque nos filmes anteriores, aqui é desperdiçada. Mais uma vez tenho a impressão de que o Raimi (dá para ver sua personalidade aqui, e Bruce Campbell interpretando um francês é genial como de hábito) segue quase à risca os passos da série do Super-Homem com o Reeve (o terceiro episódio é o mais engraçado, e o herói fica malvadinho ao entrar em contato com uma substância estranha).

    O outro é o coreano "O Hospedeiro", de Joon-ho Bong, vítima da maldição do excesso de expectativas (já que muitos andaram dizendo por aí que era um dos melhores do ano passado). É uma muito bem-feita (mas longa) sátira aos filmes "de monstro", e é justamente nos momentos cômicos em que ele cresce (as cenas do funeral com as primeiras vítimas do bicho e a do coquetel molotov são ótimas); a dinâmica da família também é excelente. Vai ser curioso ver no que vai dar o remake americano, já que este original soa como uma sátira do cinema hollywoodiano quando este revisita o asiático...

    ***

    Voltando à programação normal (meu interminável passeio pelos clássicos de quase todo o mundo), mas ainda no tema de monstros, chego a dois filmes de Fritz Lang feitos durante a Segunda Guerra também como propaganda antinazista. "Man Hunt" ou "O Homem Que Quis Matar Hitler" (1941) é o melhor deles, um thriller cheio de suspense (o início é fabuloso), com algum senso de humor, romance e crueldade. Joan Bennett (que já tinha mais de 30 quando fez este filme, mas aparenta menos de 20) está belíssima. George Sanders e John Carradine estão entre os vilões, e Roddy McDowall faz papel de criança (porque, bem, na época ele era criança). O outro é "Hangmen Also Die!" ou "Os Carrascos Também Morrem" (1943), um bom drama que guerra que lembra muita coisa que foi feita depois, mas também "O Testamento do Dr. Mabuse", do próprio Fritz (a personagem do inspetor da Gestapo, em especial, lembra os policiais deste e de "M"). Mas é longo, mais convencional do que a média e sofre por não ter protagonistas mais fortes (quem se destaca, obviamente, é o Walter Brennan, num papel diferente do estereótipo que colou nele). Também vi, do mesmo diretor, o faroeste "Western Union" (1941), que não me chamou muito a atenção.

    Em um breve parênteses irritante, já que citei um faroeste, em "Jornadas Heróicas" ("The Plainsman", 1936), Cebil B. deMille promove a mitificação da "conquista do Oeste" (ou seja, aquela matança de índios que deixava o Marlon Brando louco) atropelando a História e misturando Wild Bill Hickock com Buffalo Bill, Calamity Jane com Abraham Lincoln, General Custer com o chefe Mão Amarela (ho, ho, ho), numa espécie de "Deadwood" pré-histórico. Gary Cooper e Jean Arthur estrelam, mas chama a atenção o Anthony Quinn, novinho, fazendo uma de suas várias pontas como índio, em seu período pré-fama.

    Voltando às monstruosidades durante a guerra, chego a Jacques Tourneur, de quem havia visto o clássico "Sangue de Pantera"; agora foi a vez de "A Morta-Viva" ("I Walked with a Zombie", 1943) e "O Homem Leopardo" ("The Leopard Man", 1943). O primeiro, apesar do nome, não é um filme de terror, embora a ambientação deste drama seja no Caribe, onde a população local pratica o vudu (e é justamente nestas cenas onde o filme ganha mais "clima"). A trilha sonora é ótima, vai do batuque a Chopin, embalando cenas literalmente fantásticas (a imagem do negro magérrimo e cego que também parece um zumbi é muito marcante). Mas é o outro, que usa a mesma pantera de "Cat People", o meu preferido. A história é simples e previsível a partir de certo ponto, mas mesmo assim o suspense não esmorece _o diferencial é o domínio que o diretor demonstra na construção e encadeamento de planos: fotografia, montagem, som e desenvolvimento de personagens são excelentes.

    ***

    Também feito no período em que a guerra comia solta, com o agravante de ser na Europa, "Os Visitantes da Noite" ("Les Visiteurs du Soir", 1942, mas lançado somente em 1946), de Marcel Carné (com Prévert co-assinando roteiro), antecede sua obra-prima, "O Boulevard do Crime" (que também conta com o ótimo Marcel Herrand, ator que infelizmente morreu relativamente jovem); há momentos belíssimos (como a cena do baile) neste quase-conto-de-fadas, mas o ritmo um tanto arrastado, o vilão desinteressante e o excesso de água-com-açúcar me fizeram me envolver menos do que gostaria.

    Um romance mais satisfatório é "A Dama das Camélias" ("Camille", 1936), adaptação sóbria e segura de George Cukor a partir do clássico de Alexandre Dumas Filho. Robert Taylor está perfeito como galã, e Lionel Barrymore faz uma pequena participação, mas é claro que quem carrega o filme é sua estrela, Greta Garbo. Garbo é um caso interessante: nunca a achei tão bonita e também não me soa muito bem sua voz grave, mas aqui ela fala como se cantasse, desmente aquele mito bobo de que ela nunca sorria (e Lubitsch se aproveitou disto genialmente em "Ninotchka") e dá à sua personagem (especialmente no início do filme) uma altíssima carga de erotismo. O fade out no último plano é lindo e de partir o coração.

    Já o "Suspeita" ("Suspicion", 1941), de Hitchcock, que eu tinha visto (e gostado mais) há muitos anos na Cultura, é outro filme atípico do diretor, prejudicado ainda mais porque o suspense não resiste numa revisão. Aqui também ocorre o caso de o Hitch não ter podido filmar o final que queria (muito mais condizente com o que vimos até ali); o que ficou para a história é até dúbio, mas não muito satisfatório. O diretor implicava com a fotografia deste filme, a considerava clara demais (o que talvez dê mesmo mais destaque para o famoso plano do copo de leite luminoso subindo as escadas).

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    Finalmente preencho uma lacuna ao ver alguns filmes de Preston Sturges, que experimentou alguns subgêneros cômicos, como a comédia de erros em "Christmas in July" (1940) e a "screwball comedy" em "The Palm Beach Story" (1942), sempre na tradição americana (ou seja, capitalista). Não chega ao nível de um Lubitsch, mas, especialmente neste último, cria uma das "punchlines" (visuais) mais engraçadas que já vi (o rosto de Claudette Colbert ajuda), amarrando exemplarmente um início fantástico e moderníssimo e um meio com grandes momentos (ótimos de tão ridículos, como a caçada bêbada dentro do trem).

    Mas o caso mais interessante (embora não seja o meu preferido dentre estes três _procurei e não achei "As Três Faces de Eva", fico devendo) é mesmo "Contrastes Humanos" (Sullivan's Travels, 1941), onde vemos uma das defesas mais veementes e didáticas da comédia que já vi (praticamente um manifesto em tempos de guerra e depressão econômica). É também estrelado por Joel McCrea (que, impassível como um Buster Keaton, ficaria mais famoso como ator de faroestes) e tem também seu lado piegas (que me lembra muito Chaplin, embora os diretores mais explicitamente citados sejam Lubitsch, Capra e Disney). Impressiona os momentos de comédia rasgada (Sturges era desses artistas corajosos, sem medo do ridículo). E tem também Veronica Lake, belíssima.

    Também entrou na roda "Paixonite Aguda" ("The Flying Deuces", 1939), um dos filmes mais famosos do Gordo e do Magro (mas não o que mais me marcou _eu gosto mesmo daquele em que Laurel e Hardy precisam atravessar um piano por uma ponta de corta ligando dois despenhadeiros, só que do outro lado há um gorila furibundo). Há momentos antológicos, como Laurel imitando Harpo Marx tocando harpa e a minha cena favorita, na qual Hardy canta para o outro dançar, mas talvez o grande destaque aqui seja, até onde me lembro, a única vez que alguém da dupla morre... para em seguida termos uma outra surpresa inesquecível e adorável.

    Completou este ciclo de comédias (mas com algumas partes dignas de melodrama mexicano) uma pérola graciosíssima de Raoul Walsh, "The Strawberry Blonde" (1941), estrelada por James Cagney, Olivia de Havilland e Rita Hayworth (no único filme em que ela não foi dublada ao cantar), todos ótimos. O título faz menção à letra de uma música, que o público é convidado a cantar ao final do filme. Os diálogos são hilários (o que me arrancou gargalhadas ocorre quando, durante uma visita à Estátua da Liberdade, Hayworth e Cagney vêem uma outra mulher estapeando um homem; Hayworth então diz "Bem feito!", e Cagney responde: "Se um homem não pode tomar liberdades aqui, então onde é que pode?").

    ***

    Mas já que citei o Disney, foi a hora de rever dois clássicos da animação, "Pinóquio" (194o) e "Dumbo" (1941). O do narigudo cara de pau foi (se minha santa péssima memória não em angana) o primeiro filme que vi no cinema em Votuporanga (em excursão da primeira série) e o segundo em toda a minha vida na sala escura; nunca mais o tinha revisto. A ótima história original de Collodi combina como uma luva com o estilo Disney de então, e o filme é grande, especialmente em seu início (as melhores cenas são ambientadas na casa de Gepeto, com seus relógios e bugigangas mecânicas criativas _o melhor "ator" do filme é o gato Figaro, talvez a melhor transposição de um animal para o cinema de animação). Continua atemporal, envelheceu bem pouco.

    Já o do paquiderme orelhudo (defeitos físicos sempre em evidência, as crianças não deixam passar), o único protagonista de um filme da Disney que não fala (o filme é também o mais barato que o estúdio já fez, para compensar as extravagâncias de "Pinóquio" e "Fantasia") é bonitinho, mas sofre de um problema bem estranho: é ao mesmo tempo muito longo e muito curto... A situação dramática é frágil demais para sustentar 60 minutos; creio que ganharia se fosse mais curto e denso ou mais longo e com mais subtramas (por exemplo, o Dumbo resgatar a mãe após aprender a voar) e personagens que o enriquecesse... Mas há cenas ótimas, como a dos corvos, as dos palhaços e a dos elefantes cor-de-rosa.

    Ainda no mundo animado, bateram nas minhas retinas e tímpanos alguns curtas do Tex Avery (um gênio, isn't it?). Suas saudosas ironias metalinguísticas e incorreção política atingem cumes em filmes como "Dumb-Hounded" (o primeiro cartoon estrelado pelo Droopy, que rivaliza em depressão com a hiena Hardy de Hanna & Barbera), "Red Hot Riding Hood" (uma de suas várias sátiras de "Chapeuzinho Vermelho" _só que aqui a protagonista inspiraria Jessica Rabbit, e é a Vovó quem quer comer, biblicamente, o Lobo Mau), "Who Killed Who?" (misturando animação e "live action", décadas antes do "Roger Rabbit") e "Screwball Squirrel" (estrelado por um esquilo violento, sádico e mala-sem-alça, na melhor tradição do Pernalonga e Pica-Pau, mas sem alcançar o mesmo sucesso). Será que ainda não lançaram uma caixa de DVDs com toda sua obra? Se não, estão esperando o quê?

    O patinho feio do pacote é "Coonskin" (1975), um filme muito estranho do Ralph Bakshi, um blaxpoitation (com muito mais violência do que sexo) que também mistura animação e "live action", estrelada por grandes músicos, como Barry White e o genial Scatman Crothers (responsável pela melhor parte do filme, os créditos inicias, onde canta "Ah'm a Nigger Man", composta por Bakshi, que traz o verso "I got the devil in me, but it's the man you see"). Tinha ouvido dizer que era melhor do que "Fritz the Cat", então a decepção foi grande _pena que a canção não está no E-Mule...

    E apesar de não ser animação, vale a pena citar "O Ladrão de Bagdá" (1940), a anos-luz da maravilhosa versão de Raoul Walsh, estrelada por Fairbanks mais de 15 anos antes. Esta é uma produção do Alexander Korda (dirigida por meia dúzia de pessoas, entre eles o Michael Powell), representativa das aventuras "das Arábias" com Technicolor e efeitos visuais que hoje são risíveis mas adoráveis. Conrad Veidt faz o vilão canastrão, mas quem rouba a cena (mais por sua beleza do que por qualquer outro atributo) é a June Duprez, a quem coube o papel após Vivien Leigh ficar com a incumbência de interpretar Scarlett O'Hara.

    ***

    Eu não poderia ir embora sem dar um pulo no Japão (até porque estou escutando "Scary Monsters" do David Bowie): do meu velho amigo Yasujiro Ozu eu vi "Todake no Kyodai" (1941), cujo título em português não encontrei, mas que seria algo como "Os Irmãos e Irmãs Toda". É o filme sonoro mais antigo do diretor que vi, e não figura entre meus favoritos: é menos complexo do que ele faria posteriormente e, curiosamente, lembra bastante "A Cruz dos Anos" de McCarey, mas num tom bem menos doce e nostálgico. A falta de música é marcante.

    Pulando um pouco no tempo, cheguei à obra-prima "Bom Dia" (1959), seu primeiro em cores que vejo. É quase uma espécie de refilmagem de "Meninos de Tóquio" _e só isto já bastaria para classificá-lo como obra-prima. Mas, sob a aparentemente simples comédia de erros e de costumes envolvendo as famílias de uma vizinhança de classe média baixa, há toda uma complexa crítica às transformações "sociopoliticoculturais" do período. Os enquadramentos estão mais rigorosos do que nunca (não me lembro de um movimento de câmera sequer), e as externas (não aparecem trens!) me lembraram, não sei exatamente o porquê, de Jacques Tati. Brilhante!

    Também começo a preencher outra lacuna imensa, a obra de Kenji Mizoguchi: queria ter começado por "Conto dos Crisântemos Tardios", mas não o encontrei. O jeito foi encarar "Os 47 Ronin", adaptação de uma peça teatral baseada em fatos feita sob encomenda do governo japonês como propaganda de guerra. Felizmente, ela falha sob este aspecto, e, distantes do contexto da época, podemos apreciar um "épico intimista" de quase 4 horas de duração (dividido em dois filmes). Em termos de filmes "de samurai", eu ainda prefiro os de Masaki Kobayashi; mas este é muito interessante especialmente por causa da decupagem: predominância de planos abertos (os raríssimos closes foram colocados a pedido dos produtores) e câmera fluida, com intenso uso de gruas.

    ***

    Para acabar, dois filminhos nos quais a música tem papel importante: o primeiro é "Jammin' the Blues" (1944), único filme dirigido por um tal de Gjon Mili (marcando a estréia de Robert Burks, futuro diretor de fotografia das maiores obras-primas de Hitchcock, na função). É um precursor dos videoclipes: um conjunto de jazz e blues (com direito a uma cantora e a um par de bailarinos de jitterbug), liderado por Lester Young, toca três números, num cenário marcado pelo contraste do branco e do preto (também figurativamente falando), com enquadramentos elaboradíssimos e vários efeitos especiais (especialidade do Burks até então) feitos na câmera. São 10 minutos maravilhosos...

    O outro é "Straight to Hell" (1987), de um diretor (Alex Cox, de "Repo Man", "Sid and Nancy") que eu não tinha em alta conta, o que mudou após eu ver este fantástico filme. Após não conseguir financiamento para uma turnê de rock na Nicarágua (!), o diretor resolveu aproveitar que os músicos contratados (Joe Strummer, Elvis Costello, The Pogues, Zander Schloss, Courtney Love antes da plástica etc.) já estavam na roubada e improvisou um roteiro para filmar em Almería, na Espanha (onde Leone fez seus lendários spaghetti westerns); claro que o que saiu foi uma comédia, um tex-mex surrealista com altíssimas doses de humor negro, violência, música, beleza e liberdade. Robert Rodriguez poderia assistir a este filme e aprender algumas coisinhas...

    P. S. Há meses estou tentando colocar estes links aqui, mas o estafante processo de publicação sempre me faz esquecer: meses após ter sido convidado pelo Fábio Fernandes, comecei a colaborar para o Overmundo; mas o mais legal mesmo são os passeios sonoros que ando (atrasado, como sempre) dando pelo Last.fm, uma maravilha para descobrir coisas novas e desencavar preciosidades musicais.

    Um comentário:

    Marcelo V. disse...
    Este comentário foi removido pelo autor.

    Na platéia