A gruta é mais extensa do que a gruta

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    quinta-feira, novembro 08, 2007

    A esta altura do campeonato, os incautos que ousam pisar neste atoleiro já estão sabendo que aquele projeto pré-histórico, paupérrimo e ingênuo (o roteiro tem quase 5 anos...), que demorou uma eternidade para ficar pronto por motivos alheios a meus esforços e do qual eu nem sei se gosto muito, finalmente vai ter sua primeira exibição pública aqui. Sou pessimista e não espero muita coisa da experiência, mas é claro que vai ser bom estar lá _especialmente porque, no dia 24, vai rolar a estréia deste filme. No próximo texto, provavelmente conto um pouco do que rolou (se houver o que contar) e dou as datas da(s) exibição(ões) em São Paulo (às quais provavelmente não estarei presente, por obrigações familiares _ninguém mandou ser em dezembro), caso alguém queira perder seu precioso tempo. Informações que também serão divulgadas aqui.

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    A Mostra de 2007 foi a mais gostosa que já freqüentei. Não que tenha sido necessariamente melhor do que outras em termos de programação, mas porque desta vez eu não peguei o vírus que me fazia, a caminho do cinema, me perguntar por que os transeuntes estavam na rua, se eles não sabiam que a Mostra estava rolando. Ou seja, não me arrebentei vendo três filmes por dia (sei que tem gente que vê mais, mas três sempre foi o meu limite), em geral era uma sessão apenas (e nem devo ter ido todos os dias). Conseqüentemente, vi menos filmes (e menos bombas) do que em anos anteriores: compareci a 14 sessões (uma delas micada, porque exibiram uma fita que não tinha o final do filme, um africano dos anos 1970 _foi a única pisada na bola da organização que presenciei). E, numa decisão que se mostrou acertadíssima, pela primeira vez me restringi somente às sessões gratuitas, que curiosamente nunca lotam, raramente atrasam e dificilmente formam filas (a exceção à esta última regra foi o filme do Miike, o que foi até bom, porque desocupou as cadeiras e permitiu que eu esperasse sentado, enquanto os paulistanos neuróticos ficavam em pé olhando para as nucas uns dos outros durante 40 minutos _se pelo menos fosse como no interior, onde as pessoas na fila se enturmam e ficam batendo papo...). Foi ótimo ter ficado longe da av. Paulista e adjacências.

    O melhor filme que vi, disparado, foi o mais recente de Jacques Rivette, "Ne Touchez Pas la Hache". Não me lembro de ter visto um retrato tão perfeito de um casal apaixonado (o homem, em especial, ganhou até de Charles Swann) em outro filme. Um clássico (Balzac é um herói) sobre um tema clássico, adaptado de forma clássica. Já o pior foi um holandês chamado "Garçom", uma mistura de "Mais Estranho do Que a Ficção" com "Conceição - Autor Bom É Autor Morto". Outros filmes que deixaram a desejar foram os novos dos Taviani e o do Youssef Chahine, dois novelões _o último é melhor porque pelo menos arrancou muitas risadas nos momentos mais "emocionantes". E "La Ragazza del Lago", o filme de estréia de Andrea Molaioli, assistente de direção de Nanni Moretti por mais de dez anos, também deixou a desejar, ao não saber dosar bem o melodrama com o policial.

    Entre os bons, mas não ótimos, figuraram o "Sukiyaki Western Django" (o pior Miike que vi, mas suficientemente divertido _não estava esperando muito mais do que isto). "Das Haus der Schlafenden Schönen", adaptação de um romance nipônico (que já havia virado filme no Japão em 1968 e em 1995) pelo ator e cineasta alemão Vadim Glowna, também no papel principal: centrado na velhice, é muito mais mórbido do que erótico, embora vejamos seis moças nuas durante boa parte de sua duração _o problema é que a trilha sonora não pára um segundo, parece coisa do Jayme Monjardim... mas a Angela Winkler está ótima. E "Vocês, os Vivos", do veterano sueco Roy Andersson, que não é moderno (lembrou algo de Monty Python e Terry Gilliam), mas tem uma visão mais realista sobre a vida e traz enquadramentos muito interessantes, com a câmera na maioria das vezes em plano de conjunto, com portas e janelas criando outros enquadramentos (a longa duração dos planos é um convite a esquadrinhar a tela em busca de discretas gags visuais e alguns ícones, como a tuba e as belas botas cor-de-rosa da groupie desiludida)... e há uma cena inacreditável e antológica: quando eu vi as suásticas na mesa, quase dei um grito.

    Finalmente, "Sombras", do macedônio Milcho Manchevski, apóia-se na "esquisiticezinha" durante boa parte do tempo, mas nunca chega a ser chato; o problema é quando o mistério é resolvido, a coisa fica bem bobinha. O que faz o filme valer a pena é a impressionante atuação de Vesna Stanojevska, em seu papel de estréia _ela é mais conhecida como harpista (!). Mas não é só isto que é impressionante: além de a atriz lembrar muito a Anecy Rocha em "As Amorosas" (meu preferido do W. H.), o filme traz uma cena de queda em fosso de elevador que me deixou tão perturbado que fui compelido a fazer algo que não costumo (pelo menos não me lembro de ter feito antes): mandei um e-mail para a atriz com uma foto da Anecy no filme do Khoury, contando sua história; não esperava resposta, mas a srta. Stanojevska não só me respondeu (muito simpática, abusando dos emoticons sorridentes e tal) como disse que também achou a semelhança "amazing".

    Encerro o capítulo "Mostra" com os documentários: "A Amada", de Arnaud Desplechin, é altamente subjetivo, mas, diferentemente de "Santiago", tem interesse extremamente restrito (é literalmente um filme caseiro). Teve gente que saiu no meio (e olha que era curto, 70 minutos). Já os dois asiáticos que vi a princípio nem pareciam documentários: "Young Yakuza", feito em Tóquio por uma equipe francesa, gerava a descrença porque, além de retratar um clã de yakuzas (e por que yakuzas iriam topar aparecer em um filme? A única condição que eles impuseram teria sido a de que nenhuma atividade violenta fosse retratada), a mise-en-scène é toda manipulada (campos e contracampos, conversas aparentemente pautadas pelo diretor etc.). O que vemos é um garoto de 20 anos, desempregado e encrenqueiro, iniciando-se num clã yakuza a pedido da mãe (!), para adquirir disciplina: basicamente, ele trabalha como empregado doméstico do chefe (que dá ótimas entrevistas), a ponto de, numa cena em que ele vê um filme de yakuzas com a mãe, ele pergunta: "Por que estes filmes nunca mostram a rotina no escritório?" (ou seja, ele lavando as xícaras de chá do chefe?). Também achei engraçado a presença de rappers japoneses, que fazem a trilha do filme: o discurso vai na linha "certo, mano, é nóis em Tóquio, miliano sobrevivendo no inferno, vida loca mil grau, passa um pano".

    E "Dong", minha primeira visita ao cinema de Zhang Ke Jia, também gerou certa desconfiança, porque o pintor retratado é mostrado somente retocando seus quadros; vendo "Plataforma", aparentemente sua obra-prima, dá para perceber que este distanciamento (inclusive nos enquadramentos _parece que a moda agora é não filmar closes) dispersivo é característica do cineasta, que cita Antonioni como sua maior influência. Pois a relação que tive com seus filmes me parece a mesma que tenho com os do italiano recém-falecido: gosto, compreendo e admiro, mas não me envolvo tanto quanto gostaria.

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    Em homenagem à Deborah Kerr, fui ver um Powell/Pressburger que tinha deixado para trás, "Black Narcissus": talvez seja o filme da dupla que menos tenha gostado (não sabia o que esperar: um grupo de freiras _nenhuma delas tão encantadora quando a Ingrid Bergman no filme do McCarey_ na Índia não tinha sequer passado pela minha cabeça). Mas a beleza da fotografia em technicolor de Jack Cardiff _toda em estúdio, com pinturas matte, miniaturas e outros truques_ é extasiante, ainda mais quando são enquadradas beldades como Jean Simmons (que eu tinha visto recentemente como a Ofélia do "Hamlet" de Olivier _o Laurence, não o padeiro) e Kathleen Byron. E ainda uma frase belíssima, logo no início: "Remember, the superior of all is the servant of all".

    A câmera de Cardiff não provoca o mesmo fascínio em "Under Capricorn", o segundo filme de Hitchcock como produtor (e em cores): é atípico, um melodrama de época (obviamente muito caro) passado na Austrália; Joseph Cotten, que não gostava do filme, ficou com o papel que o diretor queria dar para Burt Lancaster, que esbanja carisma (e seus talentos como acrobata de circo, sua primeira profissão) em outro filme atípico, desta vez de Jacques Tourneur: "The Flame and the Arrow" até parece um remake do filme de Robin Hood com Errol Flynn, feito menos de 15 anos antes. Mas é uma bela diversão de "Sessão da Tarde". Já a diversão em "Annie Get Your Gun", musical que Arthur Freed produziu para a MGM, com roteiro de Sidney Sheldon e canções de Irving Berlin (incluindo o famoso tema "There's No Business Like Show Business"), que acabou sob a batuta de George Sidney (que praticamente nasceu na Broadway e se tornaria o fundador dos estúdios Hanna-Barbera) após Busby Berkeley e Judy Garland caírem fora, fica restrito às boas canções e à performance de Betty Hutton (morta em março deste ano), com destaque para a cena com os índios e a briga de casal durante um número musical. Envelheceu pessimamente (e hoje soa tremendamente machista) e é muito mal montado. Falando em machismo, vi também "Cinderella", que, apesar de bonito, também decepciona ao não avançar muito em relação a "Branca de Neve" (tanto a heroína quanto a madrasta são muito calcadas nas suas antecessoras); o alongamento da história pelo conflito entre o gato Lúcifer e a turma de ratos antropomorfizados e divertidos (e que ajudam muito mais do que a Fada Madrinha, que só aparece em uma cena) liderados pela dupla Jaq e Gus (que poderia se chamar Stan e Ollie), não é muito melhor do que podemos encontrar nos desenhos de Tom e Jerry.

    Voltando ao preto-e-branco, vi aquele que, até o momento, é o meu preferido de Jules Dassin: "Thieves' Highway". Pelo título, achei que fosse um policial, mas é ao mesmo tempo uma história pequena e bem-concentrada e um drama multifacetado (o protagonista tem complicações familiares, amorosas, financeiras etc.); me lembrou um pouco de "On the Waterfront", que vou rever em breve. E o elenco é sensacional: Richard Conte (o Barzini da série "O Poderoso Chefão", que trabalharia muito no cinema italiano), Lee J. Cobb, Valentina Cortese (de "A Noite Americana", com uma fala que se tornou história: "Aren't women wonderful?") e Millard Mitchell (que morreria pouco depois). E falando em Kazan, outro filme que parecia um policial convencional, mas não é: "Panic in the Streets", no qual mais importante do que pegar os bandidos é evitar que eles espalhem a peste que carregam, ameaçando Nova Orleans de uma epidemia. Richard Widmark é o herói, mas quem rouba a cena são os vilões Jack Palance (em seu filme de estréia, ainda assinando Walter) e Zero Mostel (em seu segundo filme, mas já tentando disfarçar a careca).

    Policiais mais clássicos mesmo foram "The Undercover Man", de Joseph H. Lewis, com Glenn Ford, e "The Asphalt Jungle", de John Huston: o primeiro é bem sóbrio e bem calcado na investigação policial; o segundo é um "filme de assalto" que gerou muitos filhos (inclusive o "The Killing" do Kubrick, também com Sterling Hayden). Ambos demoram um pouco para decolar, e o de Huston se destaca principalmente ao acompanhar as conseqüências do crime para três dos envolvidos no roubo de jóias: quem rouba (sem querer fazer trocadilho...) a cena é Sam Jaffe, cuja personagem tem os melhores diálogos e protagoniza a melhor cena, num bar de beira de estrada, vendo uma bela moça (Helene Stanley, que foi a modelo para a Cinderella no filme da Disney e a dublou cantando) dançando jazz ao som de uma jukebox. A presença de Marilyn Monroe, em um de seus primeiros papéis e na flor da juventude, é uma deliciosa surpresa _mas ela está péssima.

    Outros filmes do período que flertam com o crime: "Moonrise", um dos últimos de Frank Borzage, é uma espécie de "Crime e Castigo" que começa maravilhosamente bem (os primeiros cinco minutos são fortíssimos), mas depois adentra muito no sentimentalismo (talvez a censura da época tenha prejudicado). Há uma bela cena com Rex Ingram cantando um tenebroso blues. Do mesmo ano (1948), vi o curiosíssimo noir "Pitfall", do húngaro Sâsvari Farkasfawi Tóthfalusi Toth Endre Antai Mihály, felizmente mais conhecido como Andre de Toth (um dos caolhos de Hollywood): a esposa (Jane Wyatt, a mãe de "Papai Sabe Tudo") é muito mais bonita do que a femme fatale; a femme fatale não é lá muito fatal; a vítima também não é tão vítima; enfim, um noir que não é tão noir assim... E "The Reckless Moment", outro espetáculo de movimentação de câmera de Max Öphuls, que conta com a beleza adicional de Geraldine Brooks. Joan Bennett (bem diferente e mais feia do que nos filmes que fez com Fritz Lang) está neste e também em "Father of the Bride", filme não-musical de Vincente Minnelli que não se decide entre comédia e o drama de um pai (Spencer Tracy) que vê a filha mais velha (Elisabeth Taylor, adolescente) abandonando o ninho; fez muito sucesso, mas não considero de destaque na carreira de nenhum dos envolvidos. E falando em dramas familiares envolvendo pai e filha e casamentos, vi também o próprio "Pai e Filha", de Yasujiro Ozu. É mais do mesmo... mas que mesmo!

    Não tão bom é "Les Enfants Terribles", Terceiro filme de Jean-Pierre Melville, adaptação de um texto de Jean Cocteau (a voz do próprio narra o filme): é bem árido e fechado, provavelmente funcionava melhor como literatura. E voltei brevemente aos anos 1930 para recuperar "Bluebeard's Eighth Wife", um Lubitsch que tinha me escapado: é uma comédia bem idiossincrática do diretor (lembra um pouco "Die Austernprinzessin", que ele fez quase 20 anos antes), com roteiro de Charles Brackett e Billy Wilder, no qual o destaque absoluto é Gary Cooper, que ofusca até Claudette Colbert (David Niven passa meio em branco). Ótima, mas não no mesmo nível de "Trouble in Paradise" e "Desing for Living".

    Para fechar, dois dos "filmes de cavalaria" de John Ford: "Fort Apache" é uma obra-prima, irrepreensível: complexo, moderno, íntegro, irônico, engraçado, trágico, belo, crítico... Nada está fora do lugar, e Henry Fonda, inspirado na figura do célebre general Custer (eu tinha os "hominhos" quando criança, crivados de flechas), está simplesmente fabuloso (também estão aqui John Wayne, Ward Bond, George O'Brien _o galã de "Aurora" está irreconhecível_, Pedro Armendáriz e Shirley Temple como heroína romântica, em um de seus últimos filmes). Os diálogos são excelentes, e um dos planos finais (duas viúvas e uma criança) é um dos mais tristes que já vi. Não tão bom é "She Wore a Yellow Ribbon", bem mais simples e com um narrador chato. A cor deixa tudo mais falso (nunca gostei de noites americanas). Wayne chora!

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    Citei Tom & Jerry acima, e o clássico desenho é uma das muitas referências de "A Via Láctea", belo filme de Lina Chamie, que estudou música em Nova York e lança agora seu segundo longa (ainda não vi "Tônica Dominante"). A princípio, estava detestando, me parecia uma mal-contada história de paixão protagonizada por um banana pasteurizado em meio a uma série de citações mal-ajambradas. Depois, quando o filme se torna mais e mais mórbido (embora com senso de humor), pensei que a diretora lidava melhor com a morte do que com o amor. Ao final, quando tudo se fecha (muito bem), o pequeno enredo ganha dimensões muito maiores (mas não sei se galácticas), todas as metáforas imagéticas e sonoras (além das citações) ganham sentido e beleza, gerando emoção (também, com a "Lacrimosa" de Mozart, tem que ser de pedra para não chorar _ainda mais quando falam da Laika, que ganhou música de Damon & Naomi). O roteiro foi obviamente muito bem trabalhado.

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    Chegou a vez das séries: finalmente vi a elogiada "Roma", produção (que tem como um de seus roteiristas o John Milius) que impressiona pela magnitude dos cenários, número de figurantes e cuidado na reconstrução de época _além do erotismo (embora não seja exatamente uma novidade, que eu me lembre é a primeira vez que vejo nus frontais _inclusive da bombshell Polly Walker, ainda dando um caldão aos 40_ numa produção para a TV). Mesmo assim, o gênero pede por mais "grandeza", difícil de acomodar. O elenco todo está ótimo, e a dinâmica das personagens Lucius Vorenus e Titus Pullo funciona maravilhosamente (tendo seu ápice na melhor cena da temporada, a da arena de gladiadores _aprende, Ridley Scott!); Ciarán Hinds também deu num belo Júlio César, e Lyndsey Marshal bota fogo na tela como Cleópatra (e tem gente que acha a moça feia, tsc, tsc). Mesmo assim, minhas expectativas eram bem mais altas.

    Já "Heroes" superou todas as expectativas, porque basicamente todo mundo dizia que ela era meio chata, demorava para engrenar... Mas que absurdo! Eu, que não sou nerd nem nada (apesar de gostar de HQs _mas não de qualquer coisa), achei a série cativante desde o primeiro episódio (os ganchos são muito fortes), certamente muito melhor do que "Lost". Algumas atuações especialmente boas (só dá mulherada: Ali Larter e Hayden Panettiere, além das pequenas participações de Nora Zehetner e Jayma Mays) e diretores veteranos de certo renome (Allan Arkush e John Badham) seguram as pontas, além de bons roteiros (um ou outro diálogo é boboca, especialmente quando a palavra "hero" está no meio _será que os japoneses se ofendem com o Nakamura?) e excelentes efeitos visuais. Quem já viu a primeira temporada põe o dedo aqui.

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    É isso aí, pessoal.

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