A gruta é mais extensa do que a gruta

    follow me on Twitter

    sábado, dezembro 16, 2006



    Para fechar 2006, um ano difícil, mas que valeu a pena, meu amigo Carlo Mossy, estreando o primeiro vídeo publicado nos quase 5 anos deste site, dá o seu espontâneo, jocoso e emocionado recado cinéfilo/erótico para a câmera de Ana Paul durante o segundo dia de filmagens de "A Volta do Regresso", em 17 de abril passado, cuja montagem está oficialmente terminada. Um novo projeto está nascendo (e não estou falando do filme), 2007 promete.

    ***

    Gosto muito do Nanni Moretti (embora eu não seja suficientemente rico para ser de esquerda, de direita ou de centro) e estava ansioso para ver "Il Caimano", ainda mais por sua associação com "Aprile", que refletia sobre a ascenção de Berlusconi ao poder e segue sendo meu preferido. Este novo é ótimo e nos brinda com a belíssima Jasmine Trinca, que Moretti revelou em "O Quarto do Filho", mas assistir a ele foi uma experiência estranha, porque, já no início da exibição, comecei a notar uma série de semelhanças com "A Volta do Regresso", escrito em 2003 _o que me incomodou não tanto por esta situação recorrente de criar algo parecido com obras anteriores e desconhecidas ou mesmo posteriores (o que por um lado é motivo de alegria, sendo eu admirador da obra do Moretti), mas pela impressão de que era muita pretensão de minha parte considerar a semelhança. Esta impressão se desfez quando surge uma cena parecidíssima com uma que filmei em abril, na qual um produtor falido (no meu filme, interpretado pelo grande Ênio Gonçalves) se encontra em um estúdio abandonado, e a câmera faz um travelling lateral que mostra as tapadeiras... Neste ponto, não pude deixar de comentar com minha companheira na sessão, que trabalhou no filme e também notou as mesmas semelhanças. Será que mais pessoas que porventura virem ambos os filmes as notarão também ou as mais que evidentes diferenças na escala de produção ofuscarão o conteúdo que, temerariamente, escolhi privilegiar?

    ***

    Em "The Searchers", funciona especialmente bem a construção do clímax principal (que, raridade, fez o casca-grossa aqui chorar, embora eu já o conhecesse) e a de vários outros pequenos clímaxes dos muitos subplots (em geral, engraçadíssimos, de arrancar gargalhadas) deste filme quase perfeito. Acho que só faltou mesmo uma trilha sonora incidental inesquecível (pelo menos, temos "Shall We Gather at the River").

    Ainda sobre a obra de John Ford: apesar de eu adorar o Ward Bond, seria uma heresia dizer que os atores principais de "Wagon Master" são os cavalos? Eis aqui outro trabalho de mestre ao equilibrar momentos cômicos, romances e enfrentamentos com vilões, mas, para mim, tudo isto fica em segundo plano diante de certas cenas de ação envolvendo as durezas da travessia, exemplos de cinema puro.

    Outro grande western visto recentemente é "The Ox-Bow Incident", do William A. Wellman de "The Public Enemy": um curto conto moral, lançado bem na época em que os EUA entravam na Segunda Guerra (Henry Fonda, o protagonista, se alistou na Marinha logo após as filmagens). Dana Andrews e Anthony Quinn estão ótimos, e Wellman enquadra e decupa que é uma beleza.

    ***

    Quando toda a possibilidade de felicidade é destroçada, resta apenas a violência e a morte? Qual o motivo de este aparente niilismo aparecer com força especial em "Bring Me the Head of Alfredo Garcia", o único filme que Sam Peckinpah (cineasta que entra no panteão daqueles que sabem usar a câmera lenta) assinou como roteirista e no qual não teve interferência do estúdio na edição? Clichê dizer que este filme é um soco no estômago; é um tiro gostoso e infinito na testa.

    Tudo é essencial em "The Killing of a Chinese Bookie": o filme de Cassavetes é longo, e a personagem-título só é citada lá pela metade, mas não há um segundo de enrolação. O embate entre o amor e o dinheiro, que atravessamos praticamente durante toda a vida, é representado de forma magistral. Ben Gazzara está tão bom aqui quanto Warren Oates no filme de Peckinpah.

    ***

    Em 1928, às vésperas da morte do cinema mudo, King Vidor, à época com 15 anos de direção nas costas, lançou "The Crowd", uma surpreendente e inovadora obra-prima. James Murray, que morreria menos de dez anos depois, afogado no rio Hudson, está brilhante, em apenas seu quinto filme; Eleanor Boardman, que não seguiria carreira no cinema falado, mas viveria quase 100 anos, está belíssima. Um ano antes, Murnau havia estreado nos EUA com "Aurora", defendido por muitos como sua obra-prima (eu ainda fico com "A Última Gargalhada"). O filme é fortíssimo na construção de imagens poéticas apoiadas na fusão e na interpretação de seus atores (George O'Brien é destaque absoluto, transitando entre várias caracterizações, inclusive uma que lembra o monstro de Karloff, antes deste existir). O enredo não poderia ser mais simples. Já "Seventh Haven", de Frank Borzage e também de 1927, não chega perto da excelência destes dois grandes romances, mas fica como espécie de matriz da dramaturgia ultrafolhetinesca que a novelas e "minisséries" brasileiras regurgitam até hoje.

    Outra obra de 1927 é "Metropolis", de Fritz Lang, clássico que ainda não tinha visto, mas que já conhecia bem _até porque fui o tradutor de uma adaptação do filme para os quadrinhos, estrelada pelo Super-Homem. Apesar de adorar o diretor e de ter visto vários filmes seus dos anos 20 (os dois "Nibelungos", "A Mulher na Lua", "Os Espiões"), fiquei impressionado com a beleza da fotografia do Karl Freund, do Günther Rittau e do Walter Ruttmann, e com a brilhante atuação de Brigitte Helm, em seu primeiro filme (provavelmente teria sido maior que Dietrich, se não tivesse abandonado o cinema após a ascensão do nazismo na Alemanha). A história é simples, mas poderosa; agora, o que torna este filme inesquecível é a força de suas imagens. Bem mais complexo é o enredo de "A Morte Cansada", o filme mais antigo de Fritz Lang que vi até o momento e considerado a primeira de suas muitas obras-primas. A produção rica traz um enredo, fantástico e ultra-romântico, que se aproveita da idéia de Griffith em "Intolerância" ao mostrar várias histórias em vários períodos e países de diferentes culturas, usando os mesmos atores (entre eles Lil Dagover e Bernhard Goetzke, parceiros habituais de Lang e bastante ativos no cinema alemão), para chegar a uma conclusão um tanto dúbia, mas perene.

    Ainda na Alemanha: "A Boneca do Amor", um dos sete filmes que Ernst Lubitsch lançou em 1919, é absolutamente genial. O diretor aparece no início do filme, como um deus manipulando suas personagens, todos trapaceiros à sua maneira (incluindo membros do clero), no melhor estilo satírico praticado na Europa há séculos. Ossi Oswalda, uma das maiores atrizes do cinema mudo alemão, está maravilhosa, apresentando pleno domínio da expressão corporal e facial. As peripécias do roteiro estão no nível da melhor comédia audiovisual popular produzida no século XX, incluindo aí os injustamente menosprezados "Os Trapalhões" e "Chaves".

    E em 1925, na Rússia, Vsevolod Pudovkin dirigiu seu segundo filme (curiosamente, é o único que montou), em parceria com o desconhecidíssimo Nikolai Shpikovsky (que também assina o roteiro), "Shakhmatnaya Goryachka": é surpreendente, não apenas por ser uma comédia pastelão (temos esse preconceito de achar que todos os filmes russos do período imediatamente pós-revolucionário eram muito sérios) divertidíssima, mas por adiantar em muitos anos o "Fever Pitch" do Hornby; por sinal, a tradução do título deste filme é "A Febre do Xadrez"... A história é exatamente esta: rapaz, noivo de uma garota, esquece de absolutamente tudo (inclusive de seu casamento) para acompanhar o campeonato mundial da categoria (e, realmente, o filme é repleto das estrelas mundias do xadrez da época, com cenas reais de jogos _a impressão que dá é que o xadrez era para os russos o que o futebol é para os brasileiros), e não só ele: policias, mendigos e até os bebês, todos são loucos pelo esporte. As frases das cartelas também são divertidíssimas: "Uma das maiores ameaças à instituição do casamento é o xadrez", "talvez o amor seja mais forte do que o xadrez" e por aí vai...

    Um ano depois (encerrando o capítulo dedicado aos anos 20 _acho que estou ficando preparado para votar no ranking da Liga, hehehe), vamos ao Japão ver "Kurutta Ippeji", o mais conhecido dentre os quase 100 filmes dirigidos por Teinosuke Kinugasa (que ganharia uma Palma de Ouro em Cannes nos anos 50), perdido por quase 50 anos: parece em consonância com a vanguarda surrealista francesa (em alguns momentos também lembra os russos), embora eu não saiba se realmente se trata de influência ou do processo comum de rompimento com o naturalismo que ocorria nas artes deste o século anterior. Difícil e para poucos, sem dúvida, mas repleto de imagens belíssimas e perturbadoras. Um pré-Lynch japonês?

    ***

    "W.R. - Misterije Organizma", o filme mais conhecido de Dusan Makavejev, não deixa de ser interessantíssimo, apesar de bastante datado por causa de alguns seus questionamentos políticos. Como não sou especialista em Reich (nunca fiz terapia de qualquer espécie), não tenho condições adequadas de julgar como suas teorias são retratadas, mas a idéia de que a "revolução" (como se chamava na época a transição do regime capitalista para o supostamente comunista) só poderia ser realmente efetiva se a instituição do casamento burguês desaparecesse e o amor livre reinasse (na verdade, a coisa é bem mais complexa do que isto) é ótima. No entanto, minhas expectativas eram bem maiores...

    Infinitamente mais boboca é "This Is Spinal Tap", "rockumentary" sobre uma decadente banda de heavy metal que satiriza uma série de grupos da época na qual Rob Reiner quase segue os passos de Eric Idle e seu The Rutles. O interessante é que, apesar de toda a tiração de sarro, o filme se passa por um documentário sério por boa parte do tempo; o humor nunca é escrachado, não importa os absurdos que os atores (um deles, o baixista da banda, é Harry Shearer, mais conhecido por fazer as vozes de mais de dez personagens dos Simpsons, entre eles o sr. Burns, Smithers, Flanders e o diretor Skinner) dizem ou fazem, quase tudo é muito sutil (ou seja, o filme arranca mais sorrisos do que gargalhadas). Participam vários comediantes que se tornariam mais famosos depois, como Fran Drescher, Dana Carvey, Billy Cristal etc., além da Anjelica Huston). Todo mundo junto: "Fuck the napkin"!

    Já o "Superman III" do Richard Lester, que revejo pela seilaquantésima vez, segue sendo meu longa preferido dedicado ao escoteiro azulão. É ao mesmo tempo uma grande comédia, um grande filme de ação, uma grande ficção científica e uma pertinente e atualíssima observação do mundo em sua época (é quase um grande musical, toca até Beatles, hohoho). Traz a melhor atuação do Reeve que já vi, e ainda de bônus temos Margot Kidder (que aparece pouco, mas nunca está ruim) e Pamela Stephenson (que se aposentou pouco depois para obter seu doutorado em psicologia), sensacional como a falsa loura burra, que questiona Kant quando ninguém está olhando. A quantidade de cenas antológicas desde o início é imensa, mas para mim o filme cresce muito quando o Super-Homem fica escroto após ser exposto a kryptonita feita com tabaco, pilantragem da personagem de Richard Pryor (que nem me incomoda mais). Infelizmente, esta quase-obra-prima sofre preconceito inclusive dos fãs de HQ (talvez por o filme ser justamente ousado e não tratar o herói com reverência excessiva, como é de praxe no humor de alta qualidade), mas tenho a esperança de que se tornará, merecidamente, um clássico.

    ***

    Uma das melhores coisas que a MTV americana já fez foi patrocinar algumas séries de animação, como "Beavis & Butt-Head", "The Maxx" (de Sam Kieth, um dos melhores ilustradores de super-heróis) e Æon Flux, que acompanhei quando exibida pela MTV Brasil, quanto esta ainda era vanguarda... A obra-prima do corerano Peter Chung é um show de hermetismo recheado de ação, erotismo e elucubrações filosóficas, baseado no conflito entre homem e mulher, a situação e a oposição, Æon Flux e Trevor Goodchild. Os episódios originais, todos mudos, traziam sempre a morte da heroína, antes do Kenny de "South Park", mas o destaque mesmo é a temporada de dez episódios de meia hora que foi ao ar em 1995 _infelizmente, uma segunda temporada nunca foi feita, mas um longa-metragem estrelado por Charlize Theron que tem muito pouco da graça das animações.

    ***

    Ao lado de "A Bruxa de Blair" e "Dez", "The Brown Bunny" é um dos filmes que mais me entusiasmam a respeito do cinema digital (um trilhão de vezes mais que a nova trilogia do George Lucas). Vincent Gallo dá uma de Russ Meyer e assume as principais funções (na verdade, quase todas, menos as relativas ao som), e não faz feio: a fotografia é deslumbrante, a trilha, idem, o roteiro é maravilhoso. Muitos devem pensar o contrário, mas acontecem muitas coisas neste eloqüente retrato da solidão.

    Já a graça de "El Laberinto del Fauno" é conseguir misturar a realidade dos adultos (o embate da resistência contra os fascistas franquistas) e a fantasia das crianças (rito de passagem por meio do cumprimento de missões perigosas): é história e é fábula não-obscurantista. Não achei o filme tão violento ou assustador como falam, embora aqui exista uma criatura fabulosamente terrível, o monstro devorador de criancinhas que passa por uma época de vacas magras.

    ***

    Para os próximos dias, nada de vacas magras: desejo a todos um feliz bucho cheio de tender com uvas-passas e farofa e boas entradas em lugares quentinhos, úmidos e cheirosos. Falou, cambada.

    Nenhum comentário:

    Na platéia