A gruta é mais extensa do que a gruta

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    quinta-feira, novembro 16, 2006


    Carlo Mossy e Gustavo Engracia em "A Volta do Regresso


    Talvez eu não saiba explicar bem e talvez não exista explicação, mas sou fascinado pelos planos estáticos (em geral, detesto câmera no ombro sem motivo) e pelo corte seco (embora goste de fades e de usar fusões nas entrevistas em reportagens ou documentários); freqüentemente me irrito quando acho que o diretor cria movimentos de câmera sem significado. No entanto, não me furtei de usar travellings em "A Volta do Regresso", cuja sétima cena (não por motivos cabalísticos, sequer sou fã da Madonna), por sinal, é um plano-seqüência. O filme foi todo construído a partir dessas contradições, um filme que mostra o Brasil sem céu, sem rua, todo confinado em internas, como o cinema.

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    A Mostra Internacional de Cinema de São Paulo (que, em sua edição de número 30, decepcionou ao não trazer nada de muito especial) mexe muito pouco com a rotina da cidade, mas para quem a freqüenta... Este ano fui a 20 sessões (apenas duas pagas _nem tanto por economia, mas porque as duas salas mais perto de onde moro eram gratuitas, e eu sempre gosto de me arriscar nos filmes desconhecidos, sem previsão de lançamento comercial), mantendo minha média nos últimos anos. Entre os filmes novos, dois foram os grandes destaques.

    "Belle Toujours", que acabei vendo totalmente por acaso, graças a uma troca de programação, numa sessão gratuita e vazia, traz as fortes marcas de Manoel de Oliveira (de quem também vi recentemente o brilhante "Os Canibais"), homenageando Buñuel sem sucumbir ao peso da responsabilidade. É claro que Deneuve faz falta, mas sua ausência não prejudica tanto o filme quanto se poderia imaginar, mas deixa o caminho aberto para que Piccoli atue de forma monumental.

    "Mary", de Abel Ferrara, vista numa sessão que mais parecia cabine de imprensa, causa um impacto tremendo. Riquíssimo, ao mesmo tempo atual e atemporal, traz um elenco em grande forma (Juliette Binoche no papel de sua vida) e uma das melhores cenas do ano, com Matthew Modine passando pelo inferno numa cabine de projeção.

    Outros dois filmes merecem menções honrosas: o primeiro é "Offscreen" (que indiquei no texto do mês anterior), que, se me agradou menos que seu antecessor, "Allegro", traz uma atuação impressionante (e bastante difícil) de Nicolas Bro (que também assina a direção de fotografia); o filme tem algo de "A Bruxa de Blair" e "Being John Malkovich", e é altamente recomendável para os fãs de "cinema extremo" habitués da Sessão do Comodoro.

    O outro é "Komma", interessantíssima produção belgo-francesa escrita e dirigida pela Martine Doyen. A sinopse (homem acorda num hospital sem saber como foi parar ali, mata um funcionário, assume a sua identidade, conhece uma artista plástica performática com amnésia, a convence e à sua família de que é seu namorado e a leva para visitar os castelos construídos por Ludovico II na Baviera) diz muito pouco, já que a narrativa é bem pouco convencional (algumas partes do filme foram feitas como documentário, registrando acontecimentos e os inserindo no meio da história). A trilha sonora é fantástica, e ator principal, Arno Hintjens, dá um show. Como era de esperar, bastante gente saiu no meio da sessão _sinal de que o filme é bom mesmo...

    Já um dos destaques negativos, "Be with Me", arrancou aplausos do público e foi um dos queridinhos da Ilustrada, tsc, tsc. Se no início parece ser minimamente interessante, por deixar de lado o som direto e se concentrar nas imagens (explorando a hoje cotidiana comunicação via internet e mensagens via celular) e na trilha, não demora a sofrer de uma tremenda falta de ritmo ao entremear romancezinhos com a história real de uma senhora cega e surda. Mas a porcaria-mor atende pelo nome de "Summer Love", o primeiro faroeste polonês da história (espero que seja o último).

    Completando este breve relato, dos cinco documentários que vi, três eram sobre personalidades cinematográficas: o que versa sobre os mais famosos, John Ford e John Wayne, é o menos interessante, produção para uma série televisiva, material típico de extra de DVD. O que foca Adolfo Celi, dirigido pelo seu filho, tinha tudo para decepcionar, mas, apesar de obviamente hagiográfico, é tão rico em informações que vale muito a pena (a vida brilhante do biografado ajuda). Mas o grande destaque é "Hedy Lamarr: Secrets of a Hollywood Star", que, como indica o nome, mostra uma face menos glamourosa da belíssima estrela de "Ecstasy" e "Sansão e Dalila", montando um painel interessantíssimo e cruel da européia expatriada que se torna estrela holywoodiana, explorando em especial as imposições do sistema dos estúdios (no caso, a MGM de Louis B. Mayer) e a faceta menos conhecida da atriz, que também era inventora (a revelação de que ela criou um sistema de detecção de mísseis que foi usado na Segunda Guerra Mundial é uma das coisas mais incríveis que já ouvi).

    E, para fechar de vez, fica aqui o registro de que a grande estrela da retrospectiva do cinema político italiano é Gian Maria Volonté, sempre ótimo e sempre maior que os filmes, embora a ideologia expressa neles hoje tenha muito menos força entre nós (até porque aqueles que a apóiam não raramente se mostram incompetentes e corruptos).

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    Alguns filmes que passaram na Mostra eu vi após o término do evento. Dos brasileiros, um é "O Ano em Que Meus Pais Saíram de Férias", belo (mas não tanto quanto eu pensava) filme de Cao Hamburguer, mais conhecido por dirigir programas infantis e educativos e animações com massinha, feito em parceria com um pessoal da O2, os Gullane, Anna Muylaert etc. Chamam a atenção a direção de arte (a reconstituição de época é ótima) e o uso constante e inteligente do foco (pouco freqüente por aqui), embora o tom sempre frio da fotografia me incomode. A estrutura do roteiro em certas cenas lembra muitíssimo "Cidade de Deus" (não à toa, Bráulio Mantovani é um dos quatro roteiristas). Há um epílogo anticlimático e desnecessário, pena que o filme não terminou uns dois ou três minutos antes...

    "O Céu de Suely, emocionante segundo longa de Karim Aïnouz, do bom "Madame Satã", traz a história simples de uma personagem complexa, com uma atuação admirável de Hermila Guedes, belíssima, e mais uma ótima performance de João Miguel. Constrói o espaço do sertão cearense de forma fragmentada, como um quebra-cabeças não-montado, nos mostrando e não nos mostrando Iguatu. O roteiro segue sempre pelos caminhos menos óbvios (há uma decisão particularmente adorável, que dá a Hermila uma gigantesca dimensão ética), embora recuse o final em aberto (uma pena, na minha opinião; teria ficado bem melhor se o último plano terminasse um pouco antes). Após a sessão, gratuita e surpreendentemente não-lotada, houve debate com o diretor, com a preparadora de elenco Fátima Toledo e com Hermila (tímida e linda) e João Miguel.

    Entre os gringos, "Volver": Pedrucha anda botando "un film de Almodóvar" em letras garrafais em suas últimas produções, o que soa pretensioso (como se ele quisesse transformar seu sobrenome em adjetivo), mas tal pretensão não é descabida porque se trata realmente de um autor _em seu caso, me pergunto se isto já não virou uma camisa de força... Seu novo filme, lançado por aqui sem ter o título traduzido, traz uma série de suas características, do elenco predominantemente feminino (com uma Penélope Cruz lindíssima _com uns peitaços espetaculares_, fotogênica em todos os planos, além das ótimas Lola Dueñas e Blanca Portillo e uma Carmem Maura a princípio irreconhecível) à choradeira em família, mas volta a adicionar ao melodrama um saudável senso de humor, do qual eu senti saudade em seus últimos trabalhos (prefiro o Almodóvar mais bicha, mais kitsch e mais violento). O destaque é o roteiro, simples e cíclico, que demora a mostrar sua força _o filme não começa muito bem, mas depois decola. A certa altura, vemos, muito adequadamente, Anna Magnani em um trecho de "Bellissima", um dos meus filmes preferidos do Visconti _é o trecho mais emocionante do filme; e, embora pareça uma crítica dizer que o trecho mais emocionante de um filme é quando vemos outro filme dentro dele, na verdade tiro meu chapéu para o Pedrucha, quero dizer, Almodóvar.

    Quanto a "The Departed", não posso dizer que o mais recente longa de ficção de Martin Scorsese é uma decepção, porque felizmente minhas expectativas eram baixas _nem por um momento pensei que ele pudesse chegar aos pés de "Mean Streets" (que ele tenta emular a certo ponto, tocando Stones num bar _a cena no cinema pornô me lembrou "Taxi Driver", tio Marty entrou nessa onda de autocitação?) ou mesmo "Casino" ou "The Goodfellas", para ficar apenas nos de gangsters. É impressionante como é o filme em que o diretor, louco por música, não consegue encaixar a trilha sonora. A montagem é frenética, o elenco é ótimo (Jack rouba a cena, mas Ray Winstone e Mark Wahlberg são outros destaques) e o enredo é confuso, mas o filme, violento e cruel, parece durar menos que suas 2h30min. É seu pior desta década e ficou aquém de, por exemplo, "Miami Vice" (do qual sequer sou um grande entusiasta).

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    Para encerrar o capítulo dedicado aos festivais, uma palavrinha sobre o Mix Brasil: pela primeira vez fui a uma sessão do festival (batizada de "Amores Fatídicos"), que se diz dedicado à diversidade sexual, mas, de acordo com o que vi, não à diversidade cinematográfica. Talvez o agrupamento dos filmes em temas seja o problema; os cinco curtas que vi eram bastante parecidos e, pecado, extremamente caretas _não sei se o festival também se vende como "ousado", mas achei tudo muito politicamente correto. Quando é que estréia o "Shortbus"?

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    Será "The Musketeers of Pig Alley" um dos filmes preferidos do Scorsese? Não me lembro dele ser citado em sua viagem pelo cinema americano, mas esta pérola de D. W. Griffith, de 1912, já traz decupagem bastante avançada (pleno domínio de eixo, campo e contracampo) para contar uma história razoavelmente complexa, com final surpreendente. Lilian Gish está belíssima, e este filme é um dos primeiros trabalhos do Harry Carey (aqui interpretando o braço-direito do vilão), um dos maiores astros do faroeste e talvez a maior influência de John Wayne.

    Já a série "Fantômas", a mais famosa das muitas que Louis Feuillade (1873-1925) assinou quando era diretor artístico da Gaumont, iniciada por "À l'Ombre de la Guillotine" (se não me engano, no total eram cinco) de 54 minutos de duração, lançado em 1913, tem como ponto mais interessante o uso freqüente de cartas, cartões de visita e jornais no lugar das cartelas; mas a pobreza excessiva do enredo (que gira sobre o criminoso Fantômas, ladrão, assassino e mestre dos disfarces) e, principalmente, a falta de ritmo das cenas (não sei se cola a desculpa de que antigamente o ritmo era mesmo mais lento) fazem da experiência de assisti-lo razoavelmente decepcionante.

    Divertido mesmo é "The Thief of Bagdad" (não a versão de Michael Powell, mas a de 1924, com quase duas horas e meia de duração), produzido e estrelado por Douglas Fairbanks (exagerado e canastrão, não perde uma chance de mostrar os músculos) e dirigido por Raoul Walsh (geralmente mais lembrado por seus ótimos filmes de gangsters dos anos 30 e 40, como "The Roaring Twenties", "High Sierra" e "White Heat"). Tem de tudo: humor, aventura, romance, mensagens morais sem caretice e efeitos especiais impressionantes (tudo aquilo que víamos nos desenhos animados, como tapetes voadores e cordas mágicas, estão aqui). O filme é ambicioso, caprichado e deve ter custado uma fortuna _mas valeu a pena.

    Outro filme do período incrivelmente divertido é assinado por ninguém menos que Carl Th. Dreyer, famoso por dramas excruciantes como "A Palavra" e "A Paixão de Joana D'Arc". Mas seu segundo longa-metragem, mais conhecido pelo título em inglês "The Parson's Widow" (1920), já um trabalho de mestre; impressiona mesmo por, apesar de lidar com um tema bastante caro ao diretor, a religião, ser uma comédia (não arruinada pelo final meloso). Einar Röd, no penúltimo dos quatro filmes que fez (morreu muito jovem), interpreta o protagonista Sofren claramente inspirado por Chaplin. O enredo é rocambolesco: o malandro Sofren só pode se casar com a bela Mari após se tornar pastor, por exigência de seu sogro; mas o rapaz só pode se tornar pastor se seguir o costume local de se casar com a viúva do antigo pastor (obviamente uma velha feiosa com fama de bruxa). A fotografia de George Schnéevoigt é linda e usa máscaras e fades com propriedade.

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    A obra de Buster Keaton era, até pouco tempo, uma gigantesca lacuna (por outro lado, sempre vi os principais filmes de Chaplin desde criança); graças à internet, aos poucos vou preenchendo o espaço. Entre os curtas, talvez o mais conhecido seja "Cops" (1922), baseado nas então popularíssimas perseguições de um bando de policiais em meio à loucura da metrópole (um dos meus videogames preferidos nos anos 80 era justamente o "Keystone Coppers"), ainda arranca muitas risadas com suas brilhantes gags visuais e o humor físico do ator, no auge da forma, realizando proezas impressionantes. A direção, sempre em parceria com Eddie Kline, émuito sofisticada e não tem medo de ousar.

    "The Three Ages", do ano seguinte, já é um média (63 minutos de duração); sátira de "Intolerância" (também traz cenários nababescos _não duvido de que seja o filme mais caro da carreira do ator, ganhando até de "A General"), mostra três episódios (basicamente, Keaton disputando uma garota com um adversário com mais vantagens) intercalados que ocorrem em épocas distintas: na Idade da Pedra, no Império Romano da Antigüidade e na contemporaneidade (chamada de era da rapidez e da ganância _o final traz uma crítica genial das crescentes dificuldades que o mundo "civilizado" traz). Apesar de não figurar entre suas obras-primas, há cenas divinas, como uma corrida de bigas muito mais divertida do que a de "Ben-Hur" e um campeonato de golfe na Pré-História que deixaria Fred Flintstone morrendo de inveja (difícil de acreditar que Hanna e Barbera não tenham visto este filme)... Ah, e há alguns planos de animação com dinossauros que adiantam o Kong dos anos 30.

    Mas o melhor de todos é "Sherlock Jr.", outro média (44min.) dirigido e estrelado por Buster Keaton em 1924, interpretando um projecionista de cinema que, nas horas vagas, estuda para ser detetive. Aqui, Keaton adianta "A Rosa Púrpura do Cairo" em 60 anos ao entrar e sair à vontade da tela do cinema, interagindo com os novos ambientes a cada corte. E ainda temos, além do habitual romance com a mocinha, cascas de banana, poças d'água, perseguições no trânsito, estripulias em ferrovias e algumas cenas hilárias e arriscadíssimas que Keaton encarava sem dublês _inclusive, num dos planos deste filme, o ator e diretor por pouco não quebrou o pescoço. Não sei se a versão que vi contém a nova trilha sonora, de 2003, mas a música é excelente.

    Já "The General", seu longa mais conhecido, impressiona por ser mais um filme de aventura do que cômico. Basicamente são duas longas perseguições em trens, brilhantes. Mas eu prefiro "The Cameraman". Estou terminando de baixar "Seven Chances", pena que não deu tempo de comentá-lo junto com os outros.

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    Estou dando também um breve passeio pela obra de outro diretor americano, Sam Peckinpah; seu segundo longa, "Ride the High Country" (1962), está no limiar entre o tradicional e o novo; se a trilha sonora e a direção de arte evocam os westerns mais clássicos, o conflito principal entre os dois complexos protagonistas, encabeçados por Joel McCrea e um excelente Randolph Scott, veteranos que voltam a trabalhar juntos, parece bastante fresco. Apesar de curto (menos de 90 minutos), o filme traça um painel bastante amplo da vida e das relações humanas naquele tempo e espaço; é repleto de cenas antológicas, por um lado moralistas (no melhor dos sentidos), mas cheias de senso de humor politicamente incorreto, sempre capazes de surpreender (embora o filme não se baseie em "plot twists"). Há uma cena absolutamente encantadora, na qual um juiz bêbado e imundo, ao celebrar um casamento obviamente fadado ao fracasso num sórdido puteiro de garimpo, diz as palavras mais lindas e verdadeiras sobre a união de um casal que já ouvi.

    Do outro lado da moeda está "Pat Garrett & Billy the Kid" (1973), amargo e pouco sutil, apesar de não espetacularizar a violência; fala de um assunto doloroso, da passagem do tempo e da adesão ao sistema, com o qual todos nos debatemos no mundo capitalista. James Coburn, fantástico, mata a si mesmo quando mata o Kid. Kris Kristofferson segura a onda, diferentemente de Bob Dylan _presença marcante por ser um ícone pop, mas com uma atuação vergonhosa; pelo menos enriqueceu este filme com uma trilha sublime. O elenco está cheio de figurinhas tarimbadas, como Jason Robards, Emilio Fernández, Jack Elam, Slim Pickens, Katy Jurado, Harry Dean Stanton e o próprio Peckinpah. Uma pena que seja um filme tão difícil de ver por aí _há muitos anos queria vê-lo e só consegui baixando um arquivo de qualidade bem ruinzinha... O próximo da fila é "Tragam-me a Cabeça de Alfredo Garcia".

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    Longe de mim usar a camiseta "Vá ao Teatro, Mas Não Me Chame": Gustavo Engracia, o protagonista de "A Volta do Regresso", está na peça "Todos os Homens Notáveis", que estreou no dia 10 no Teatro João Caetano, aqui em São Paulo: Rua Borges Lagoa, 650, Vila Clementino. Sexta e sábado às 21h, domingos às 19h; ingressos a apenas R$ 10. A temporada vai até o dia 17/12. "Não deixem de perder".

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