A gruta é mais extensa do que a gruta

    follow me on Twitter

    sábado, julho 09, 2005

    Glen ou Glenda / A Noiva do Monstro / Plano 9 do Espaço Sideral / Guerra dos Mundos

    A ciência, excitada, fará o sinal da cruz. E acenderemos fogueiras para apreciar a lâmpada elétrica.

    Já observaram que, quando algo é considerado "o pior de todos os tempos", é sempre sinônimo de sucesso (mesmo que póstumo, no caso de pessoas)? Não só pelo reconhecimento e pela notoriedade (mais pelas falhas do que pelos acertos), mas porque sempre é encontrado, debaixo de toda aquela incompetência, algo de qualidade, digno de ser lembrado. Isso é algo que pode ser observado em tudo quanto é campo (inclusive no de futebol); mas, no cinema, os exemplos costumam ser muito saborosos.

    O caso de Edward D. Wood, Jr. é clássico. Bem antes do maravilhoso filme de Tim Burton (o qual preciso _e vou_ rever com urgência), o dito "pior cineasta do mundo" (ou seja, dos EUA _mais especificamente ainda, de Hollywood) e alguns de seus asseclas (em especial, a estarlet meio feiosa Vampira e o ex-lutador Tor Johnson) já haviam virado objeto de culto. E não é difícil entender o porquê. Mais do que garantia de risos (embora nem todas as piadas sejam involuntárias; em "A Noiva do Monstro" há uma ótima: um investigador de polícia apresenta-se para uma secretária, dizendo "Sou Fulano de Tal, da Homicídios", a quem ela responde "Mas já faz quase um mês que eu não mato ninguém!"), apesar de um certo tédio permear boa parte dos filmes, é evidente que Wood tinha uma mínima compreensão do poder do cinema (em especial, da montagem e da trilha sonora _quem trabalhou com ele diz, acreditem se quiserem, que a grande preocupação dele era com os enquadramentos e a iluminação, e que ele não dava absolutamente a mínima para a performance dos atores, o que é evidente), além de uma genuína paixão pelo veículo.

    Quando isso tudo se alinha a um imenso senso de ética ao abordar um assunto extremamente pessoal (pelo menos, assim diz a lenda), a coisa pode ganhar contornos de "obra-prima doente". Este é certamente o caso de "Glen ou Glenda" (1953), um dos filmes mais bizarros que qualquer ser humano já viu. Baseado num caso clínico de mudança de sexo que acabou virando prato cheio para o sensacionalismo dos jornais (como o próprio filme explica), Wood, ex-herói da Segunda Guerra Mundial que escreve, dirige e atua, acaba tentando fazer um ensaio fílmico sobre o travestimo, "doença" da qual ele mesmo sofria.

    Idealizado como drama, com o intuito de emocionar e informar as pessoas sobre o tema, o filme acaba quase que saindo totalmente pela culatra, em grande parte, por ser inacreditavelmente confuso. A presença (inesquecível, por sinal) do húngaro Bela Lugosi (cuja parceria com Wood indica um cúmulo de decadência), no inexplicável papel de cientista (embora pareça mais um anfitrião de sessões televisivas de terror na madrugada), aparentemente está ali mais para matar o tempo e dar algum interesse à fita (que teria a chancela de um "astro", algo sempre necessário em Hollywood) do que para realmente conduzir a narrativa, já que há outro narrador, também cientista _ou melhor, médico, que busca dar um mínimo de autoridade às afirmações do filme (nos créditos, há uma espécie de "consultor médico", ou seja, tudo indica que Wood fez um trabalho sério de pesquisa, e que seu "Glen ou Glenda" era um projeto ambicioso e sério _pode-se dizer que o filme está para Wood assim como "8 1/2" está para Fellini ou "Stardust Memories" está para Woody Allen...).

    Em "Glen ou Glenda", tudo está ali para provar um ponto de vista (ou seja, o filme não poderia estar mais distante da categoria documentário _jornalisticamente falando, em especial). Os diálogos, os mais artificiais possíveis, servem para martelar a idéia de que o travestismo (e não o homossexualismo ou o transexualismo, como é frisado _para evitar censura, talvez? O próprio Wood é testemunha _assim como o nosso Mojica_ de que tudo quanto é "sadismo" ou "perversão" pode ser mostrado no cinema sem ser incomodado pela censura, desde que o final seja moralista, com o "mal" sendo devidamente punido) deve ser compreendido pela sociedade. Em um trecho particularmente interessante (por ser esquisitíssimo, mas também tocante e claramente à frente de seu tempo _pelo menos, no que tange as convenções sociais dos ditos pudicos anos 1950), os conceitos de perfeição de Deus (ou da natureza) são questionados para afirmar a normalidade da existência de "papéis sexuais" aparentemente confusos: "Se Deus quisesse que eu fosse menina, eu teria nascido menina. Mas a natureza também comete seus erros...".

    "Glen ou Glenda", além de tudo isso e muito mais, é também um filme... romântico. Dolores Fuller, namorada de Wood à época, interpreta seu par na história. Como num mundo de sonho, ela é compreensiva e declara ao terapeuta, ao saber dos "problemas" de Glen, que o amor é mais forte, e que a felicidade do noivo está acima de tudo. O plano em que ela dá a Glen o seu espalhafatoso casaco cor-de-rosa e felpudo (não à toa, destacado por Burton como a capa de sua homenagem ao diretor) é um dos mais emocionantes que já vi, um ápice da tolerância, do amor, da compreensão. Um momento luminoso num filme que, quando não chuta nossas gônadas, nos deixa perplexos por boa parte de sua curta (ufa) duração.

    Já "A Noiva do Monstro" (título que faz muito menos sentido do que o original, "Bride of the Atom"), de 1955, é quase que totalmente desinteressante justamente por ser muito mais convencional (ou seja, não tão ruim assim) do que os outros dois filmes de Wood citados neste texto. Claramente inspirado na série de James Whale sobre o livro de Mary Shelley, misturado à lenda do monstro de Loch Ness, o que se salva é mesmo a atuação "estilosa" (sacanagem, sacanagem) de Lugosi, além do inacreditável polvo de mentira que encarna o tal monstro do título. Curiosamente, é aqui que Wood consegue construir, de maneira minimamente bem-sucedida, uma narrativa baseada, acima de tudo, na montagem ("Glen ou Glenda" era bastante prejudicado neste sentido não apenas por investir em imagens de arquivo, não raro sem ligação clara entre os planos _o que também ocorre bastante em "Plan 9...", mas por outros motivos_, mas principalmente por ser um filme que não pretende contar uma história, mas defender uma hipótese). Não fosse o baixíssimo orçamento e o fato de os filmes de monstro terem deixado de ser vanguarda há décadas (o que há de interessante é justamente o contexto histórico da Guerra Fria e da corrida atômica entre EUA e URSS), quem sabe "Bride of the Monster" não poderia ter se tornado um clássico do gênero?

    "Plan 9 from Outer Space" (que também teve seu título alterado, como praticamente todos os filmes de Wood _o original, "Grave Robbers from Outer Space" entregava mais o protótipo de enredo, mas teve de ser alterado porque, como vimos na cine-bio-homenagem de Burton, os financiadores eram religiosos batistas, que inclusive obrigaram toda a equipe a ser... batizada), de 1956 (lançado somente em 1959), é o mais célebre _justamente por ser o pior. É absolutamente incrível que Wood o tenha finalizado, apelando para todo tipo de gambiarra imaginável, após a morte de Lugosi _que "quase" estrela o filme. Para começar, Wood nos "mostra" que a personagem de Lugosi foi atropelada fora de quadro _não por sofisticação no uso da elipse, mas por ter enfiado no filme imagens caseiras do ator. Depois, quando a personagem é ressuscitada por alienígenas, quem a interpreta durante quase o tempo todo (obviamente, cobrindo o rosto com a capa, apesar de ficar claro que não se trata da mesma pessoa) é simplesmente o... quiroprata da mulher de Wood, que protagoniza um dos momentos mais hilários do filme: ao atacar o herói, sua capa se desprende, mas o quiroprata é esperto e consegue segurá-la, impedindo que Wood peça para refazer a tomada (se é que ele ia refazê-la).

    Aliado a tudo quanto é tipo de erro de continuidade possível (é fácil entender as intenções de Wood ao ordenar os planos _difícil é abarcar a magnitude da tolerância do diretor para os erros mais crassos, como alternar dia e noite, externas e estúdios e outros absurdos mais), está o baixíssimo nível dos diálogos (quanto à qualidade da interpretação dos atores, nem se fala), a ponto de a coisa entrar num nível de nonsense que, se proposital, seria um marco da comédia. Já começamos com um tal de Criswell (uma espécie de Mãe Dinah deles, que previu que o mundo vai acabar em 18 de agosto de... 1999), obviamente lendo o seu texto, dizendo que "todos estamos interessados no futuro, pois será lá que passaremos o resto de nossas vidas. E lembrem-se, meus amigos, eventos futuros como este irão afetá-los no futuro!". Outra frase clássica, dita por um dos sempre apatetados policiais (no caso, o mesmo Kelton de "A Noiva do Monstro"!): "É muito difícil procurar, especialmente quando a gente não sabe o que está procurando!"; e o diálogo que praticamente define o filme: "Esta é a história mais fantástica que já ouvi!", "E é tudo verdade!", "Esta é a parte mais fantástica!". Pois é, não apenas é fantástico que um filme como "Plano 9 do Espaço Sideral" exista e seja considerado um "cult"; mais fantástico ainda é saber que Wood, cujo ídolo era ninguém menos do que Orson Welles, realmente tentou fazer o melhor que pôde... E não é que ele fez?

    Quanto a "Guerra dos Mundos", o novo blockbuster de Spielberg estrelado pelo megapopstar Tom Cruise: à primeira vista, é um filme que não tem muito de memorável. Por um lado, parecia que se tratava de uma volta às raízes do diretor de "Encurralado" e "Tubarão" (e, realmente, o filme é extremamente tenso, mal te dá uma folga), por ser, apesar do orçamento de vulto, um projeto bastante despretensioso (há quem fique vendo "aspectos políticos" aqui e ali, mas nunca é isso que está em primeiro plano). Mas a obra deixa de lado inclusive o grande sentimentalismo do diretor de lado (as relações familiares, embora tenham posição central na história, não são melodramaticamente carregadas) para se concentrar num "mezzo thriller mezzo road movie". Mesmo durante o filme (que não chega aos pés de "Minority Report", a parceria anterior de Spielby e Cruise) eu ficava me lembrando de "Marte Ataca!", do nosso amigo Burton _um filme que nem chamou muito a minha atenção, mas que cresce imensamente na memória, comparado a este aqui. Ainda bem que passa...

    P. S. Falando em travestismo, existe filme mais legal sobre o tema do que "Vestida para Matar", do De Palma? Só aquela seqüência no museu é de uma maestria... Mas tem muito mais.

    Nenhum comentário:

    Na platéia