Sobre Meninos e Lobos / Os Imperdoáveis / A Promessa
A morte, surda, caminha ao meu lado, e eu não sei em que esquina ela virá me beijar.Se eu me lembro bem (poucas coisas são mais traiçoeiras do que a memória _em especial, a memória de um escritor), li “Crime e Castigo” quando tinha 14 anos (do homicídio deste para o suicídio em “O Idiota” e o parricídio em “Os Irmãos Karamázov”, passando pela pena de morte em “Memórias da Casa dos Mortos”, não demorou muito tempo _foi como droga aditiva). “East of Eden”, um dos maiores romances do século XX (cujas últimas das muitas páginas foram filmadas por Elia Kazan, marcando a estréia do cadáver-fetiche James Dean no cinema), foi um tempinho depois. Até o “Murder Ballads” e o Marquês de Sade acabaram entrando na história. Mas acho que tudo começou mesmo com o “Gênesis”...
Para qualquer lado que a gente vire a cabeça, vemos assassinato. Matar parece um ato intrínseco a todos os animais, algo de nossa natureza. Todo mundo já matou, mesmo que seja um inseto. Tem gente que até mata por prazer... Mas é realmente preciso?
O novo filme de Clint Eastwood se chama “Mystic River”. O Mystic é um rio de Boston, capital de Massachusetts, uma das áreas primeiras áreas dos EUA a ser colonizada e local de origem dos Pixies. Rios, vocês que gostam de histórias policiais devem saber muito bem, são os melhores lugares para a desova de cadáveres. Em português, ganhou um título diferente, mas bastante apropriado, que fala de meninos e lobos. A gente entende o que isso quer dizer quando assiste à obra.
Temos aqui a história de três garotos, a princípio unidos pela amizade, depois, pela tragédia. Morte e morte. O que poderia ser uma simples trama de investigação policial se torna um grande romance sobre as vidas de Jimmy, Sean e Dave e a de suas famílias. Tem gente que até relaciona aspectos do enredo à atual situação geopolítica, mas eu não acato totalmente esse tipo de análise; creio que Eastwood lida, aqui, com arquétipos bem mais profundos. Meninos e meninas, lobos e lobas, assassinos e assassinados.
É um belo filme, embora não tão bom quanto eu esperava (sim, eu espero muito do Clint). Eastwood (que também assina a trilha sonora), considerado um conservador em termos políticos (o homem já foi até prefeito republicano de uma cidade californiana, Estado no qual estrelas de cinema costumam se eleger), chama logo dois notórios rebeldes, Sean Penn e Tim Robbins (só faltou o Martin Sheen), para estrelar o filme. O primeiro está num papel que é a sua cara; o segundo está um tanto estranho _provavelmente, é o personagem. A grande surpresa é Kevin Bacon, fechando o trio de protagonistas, numa ótima performance _o que uma carreira de filmes meia-boca não faz com um ator... Quem também causa grande impressão é Laura Linney, com um discurso digno de Lady Macbeth, numa cena que chega a ser chocante. Não é pouco, não. Mas também não é o melhor do ano.
“Unforgiven” (1992), por outro lado, é um dos melhores filmes da década de 90 _justamente a década em que Eastwood conquistou respeito como diretor. “Os Imperdoáveis” é sua obra-prima, dedicado singelamente a “Sergio and Don”, Sergio Leone e Don Siegel (já viram “O Estranho Que Nós Amamos”?), seus mestres, que o imortalizaram em papéis antológicos, e não apenas em faroestes.
E a homenagem está à altura. O filme é um exemplo de mestria narrativa. Não há firulas, não somos subestimados, não somos tratados como idiotas, como Hollywood e seus malditos David Finchers costumam fazer. A obra impressiona justamente por não ser sensacionalista, evita de todas as maneiras adotar um tom épico, numa cinematografia e num gênero bastante propensos ao espetáculo. Também não se priva de emocionar, embora drible o sentimentalismo barato. E não se esquiva de cenas de extrema violência, mostrada com uma crueza digna de Peckimpah. Só que nunca um western trabalhou o suspense com tanta eficiência _são inúmeras as cenas em que a gente se segura na cadeira, esperando que algum clichê prevaleça, e sempre somos pegos de surpresa. E ainda temos atuações monumentais de Gene Hackman e Richard Harris. Clint também está ótimo, cristalizado, um diamante (em mais de um sentido). Tá, temos a mediocridade-mor de Morgan Freeman para atrapalhar, mas, mesmo assim, trata-se de um filme de mestre.
Claro que não se trata de uma obra-prima apenas pelas suas qualidades técnicas. O conteúdo de “Unforgiven” é monstruoso, no bom sentido. Dois garotos, dois fazendeiros chucros, causam tumulto num prostíbulo da cidadezinha de Big Whiskey. Uma prostituta tem a cara toda cortada a faca, e o seu cafetão aciona o xerife Little Bill, exigindo reparação pelos danos à sua propriedade. As prostitutas, indignadas, querem que eles sejam enforcados. O homem da lei demonstra não querer mais derramamento de sangue, pondera que os réus não são criminosos, apenas trabalhadores que fizeram uma besteira, e se limita a aplicar uma multa razoavelmente pesada. Os rapazes pagam a multa direitinho, e ainda oferecem um adicional à vítima, que em nenhum momento chega a demonstrar rancor semelhante ao das colegas, que desejam vingança a todo custo. E elas juntam mil dólares e põem a cabeça dos dois rancheiros a prêmio, dando bastante trabalho para o xerife (cujo máximo de vilania é ser um policial truculento) e seus asseclas, que não pegarão leve ao tentarem assegurar a lei e a ordem na localidade. Como se vê, trata-se de um primoroso (e complexo) ponto de partida.
É aí que ficamos conhecendo William Munny, viúvo, pai de duas crianças, dono de um pequeno sítio de porcos doentes. Na juventude, Munny foi alcoólatra e assassino, matava gente a troco de nada, sem sequer poupar mulheres e crianças. Como ele mesmo diz, matou tudo o que anda e rasteja sobre a terra. Mas, felizmente, há gosto para tudo nessa vida, e Munny, vejam só, é salvo pelo amor de uma mulher. Graças e ela, ele pára de beber e de matar. Ela morre, e ele fica com dois filhos, atolado em merda de porco, no meio do nada, até que surge Schofield Kid, um menino metido a valentão, disposto a coletar a recompensa das putas de Big Whiskey com a ajuda do lendário malfeitor.
Munny não bebia e não matava ninguém havia onze anos. Seus filhos sequer desconfiam que o pai foi um dos assassinos mais cruéis e covardes que o Oeste já conheceu. O que vemos, a princípio, é um pai que se preocupa com o futuro de suas crias. Assim, ele, alquebrado, parte para tentar ceifar mais duas vidas. O grande dilema moral se instala.
Munny é cheio de remorso. Ele reconhece que suas vítimas não mereciam ter morrido. Afirma não se lembrar da maioria das maldades que fez por causa do uísque e crê ter mudado. Diz que agora ele é apenas mais um, que não é mais diferente dos outros _mas o próprio embate entre Munny e Kid negará tal concepção. E o ciclo dá mais uma volta, e não ficamos sabendo se tudo termina ali ou se ele continua.
“Os Imperdoáveis” (desconfio muito do plural desta tradução) foi saudado, por características que já observei aqui, como um “faroeste maduro” (como se tivesse sido o primeiro...). Mas, para um homem com a idade e a vivência de Clint, encarar a maturidade é algo naturalíssimo, e é justamente isso o que ele faz neste e em filmes seguintes, com diferentes tons, como em “Cowboys do Espaço” e “Dívida de Sangue”. Aqui, ele esbanja (como também o faz, com menor beleza, em “Sobre Meninos e Lobos”) responsabilidade e ética, simbolizadas pela frase-chave do filme, dita por Munny a Schofield Kid: “Matar um homem é uma coisa infernal. Você tira dele tudo o que ele tem e tudo o que um dia ele viria a ter”. Um verdadeiro gol de placa.
Mas o cinema também adora os tais serial killers. Já viram o que se faz de filmes citando (enaltecendo?) essas pessoas que matam apenas porque gostam de matar? Claro que, no meio desse lixo todo, achamos filmes dignos, de pérolas como “M, o Vampiro de Dusseldorf” a este bonzinho “A Promessa”.
Sean Penn volta a dirigir Jack Nicholson, como já havia feito no superior “Acerto Final” (1995). Novamente, o tema é a vingança contra um assassino de garotas. Desta vez, Jack encarna o velho clichê do policial prestes a se aposentar, mas que fica obcecado por seu último caso. O interessante é que Penn evita outros clichês do gênero, dando à sua história um dos desfechos mais tristes dos últimos tempos.
Só que Penn, como diretor, ainda tem muito o que aprender. Aprender com Clint, por exemplo, a contar uma história sem apelar tanto para os símbolos, para as alegorias, para as “imagens interessantes”. Penn é chegado numa “poesia”, no mau sentido. É um caminho perigoso, que às vezes até funciona (como no curta que integra o filme do 11 de setembro), mas que, no caso deste longa, o compromete consideravelmente. Um pouquinho mais de foco não mata ninguém.
P. S. Espero que 2004 seja um ano cheio de vida para todos. Afinal, não é a esperança que morre por último?