A gruta é mais extensa do que a gruta

    follow me on Twitter

    sexta-feira, outubro 20, 2006



    Clash of the titans: Ênio Gonçalves e Carlo Mossy em "A Volta do Regresso"

    Reclamar de falta de dinheiro deve ser rotineiro para a maioria dos cineastas, inclusive os envolvidos em superproduções hollywoodianas; no caso de um curta-metragem feito por uma equipe ainda amadora (embora com elenco e equipamentos profissionais), sem nenhum patrocínio, a lamentação obviamente persiste. Mas quando se trata de um filme que versa justamente sobre as dificuldades de fazer cinema num país subdesenvolvido (o termo é sessentista demais para o meu gosto, mas ainda descreve bem nossa situação), o baixíssimo orçamento que transparece na tela pode vir a funcionar a favor (assim espero), rico cinema pobre. Afinal de contas, a forma também é o conteúdo, não?

    ***

    Ryu Murakami é mais conhecido como romancista (é o autor do livro que inspirou o "Audition", de Takashi Miike) do que como cineasta, mas a adaptação que dirigiu de seu próprio livro "Tôpazu", batizada internacionalmente como "Tokyo Decadence", é um filme poderoso, ao mesmo tempo assustador, sórdido e belo. Assim como no filme de Miike, predomina o clima romântico: traz a história da prostituta Ai (sublime interpretação da fabulosa Miho Nikaido, que, anos depois, se casaria com o não tão fabuloso Hal Hartley), entre Cabíria e Macabea, mostrada como vítima de seus clientes.

    Miike deu novamente o ar de sua graça por aqui como integrante do projeto "Three... Extremes", que traz três médias (cerca de 35 min. cada um) de três cineastas asiáticos que não se furtam de mostrar cenas inadequadas para quem tem estômago sensível. Mas os filmes estão longe de serem podreiras; outro fator comum das três produções é a finesse (alguns dirão estilização) ao abordar temas violentos e o capricho técnico. Fruit Chan, de Hong Kong, traz uma história (que depois ele alongou para 1h30min) que lembra um pouco "A Morte Lhe Cai Bem", mostrando até onde pode ir uma mulher em busca da juventude eterna (é o segmento que traz o plano mais brilhante e assustador); o do coreano Park Chanwook prende a atenção, mas é o mais espalhafatoso (o diretor de "Oldboy" infelizmente é chegado numa firula, tipo David Fincher, urgh), confuso e comum; e o do japonês é o mais bonito, o que mais se apóia na força das imagens para narrar uma história impactante, além de apresentar maestria na montagem e no som. Esses asiáticos...

    ***

    Em direção ao ocidente, paramos mais uma vez (e sempre) na Itália para outro "clash of the titans": "Le Notti Bianche" é a adaptação de Luchino Visconti da famosa novela de Dostoievski (que adaptei para o teatro quando tinha 14 anos). Traz a história da São Petersburgo da primeira metade do séc. XIX para a Livorno contemporânea (na época, 1957). E é justamente quando o diretor se afasta da obra literária (em vários momentos trata-se de quase uma tradução do texto), como nas cenas com a prostituta de Clara Calamai e na incrível cena do baile de rock (onde Mastroianni, a princípio muito inadequado para o papel, finalmente brilha), que o filme (uma obra menor de Visconti, por melhor que seja) ganha interesse. A recriação de Livorno em estúdio permitiu um capricho na fotografia que se destacou imensamente no cinema italiano de então. A trilha de Nino Rota deixa a desejar (nem sempre o maestro acertava, mas quando o fazia...).

    Outra obra menor de um grande diretor italiano é "Suspiria", tida como obra-prima pelos fãs, mas que me decepcionou, por não chegar aos pés de "Profondo Rosso", por ora meu preferido do Dario Argento. Mas trata-se de um projeto bastante idiossincrático, que chama a atenção principalmente pela direção de arte (a cenografia é maravilhosa) e pelo uso de iluminação não-naturalista (como De Palma faria depois em "Blow Out"). A situação inicial lembra bastante o superior "Phenomena", que ele faria alguns anos depois, com a Jennifer Connelly adolescente.

    Ainda no mesmo tema, "Così Fan Tutte" é um filme bem decepcionante do Tinto Brass. Certos planos são ótimos, mas este filme de 1992, a exemplo do mais recente "Fallo!", sofre de uma falta de capricho difícil de aturar. Provavelmente teria ficado bem melhor se fosse um curta ou um média... Estou na expectativa de ver "L'Urlo", talvez sua obra-prima. Voltamos a ele em breve.

    ***

    Fazendo escala no Reino Unido, antes de atravessar o Atlântico, encontramos o brilhante "The Rutles in All You Need Is Cash", o célebre "mockumentary" elaborado e estrelado em 1978 por Eric Idle, do Monty Python, e produzido por Lorne Michaels, do "Saturday Night Live". É impressionante porque faz muito mais do que simplesmente satirizar o maior fenômeno da música popular do século XX e o próprio gênero do documentário; é tão bem produzido (do roteiro, amplamente baseado em pesquisa de texto e imagens, do figurino e da cenografia às canções, também muito mais do que meras paródias _sem falar nas performances dos quatro atores interpretando Nasty, Dick, Stig e Barry, os "prefab four") que parece ter sido a base para o projeto oficial "The Beatles Anthology", realizado quase 20 anos depois. Além de Idle e de Michael Palin, do Monty Python, aparecem, do elenco do "SNL", Gilda Radner, John Belushi, Bill Murray e Dan Aykroid, e os músicos Mick Jagger (sua ex Bianca também aparece) e Ron Wood, dos Rolling Stones, Paul Simon e um tal de George Harrison... Uma continuação, chamada "Can't Buy Me Lunch", foi feita recentemente, mas não consegui achar para baixar. Alguém já viu?

    ***

    Chegando aos EUA, é hora de perguntar: "Superstar - The Karen Carpenter Story", é também um "mockumentary"? O média-metragem de 1987, dirigido pelo Todd Haynes, que faria "Velvet Goldmine" e "Far from Heaven", é uma cinebiografia irônica da cantora e baterista dos Carpenters, morta aos 32 anos por overdose de remédios em conseqüência de sua anorexia. O diretor brinca com este gênero (há um telefilme sobre a mesma história, meloso e horrível) e também com o documentário e o videoclipe, encarando o problema dos padrões impostos às mulheres, passando também pela crítica ao consumismo e até o escândalo que levou à renúncia de Nixon. Apesar do evidente baixo orçamento, o filme é muito caprichado _ah, faltou dizer que Karen e sua família são mostrados como bonecos Barbie...

    ***

    Inspirado pelo blog de Leandro Caraça, fui atrás de desenhos animados feitos durante a Segunda Guerra Mundial. O principal é "Der Fuehrer's Face", brilhante peça de propaganda da Disney, lançada em 1942 e vencedora do Oscar de melhor curta de animação no ano seguinte, na qual o "típico americano" Pato Donald sonha ser escravo na Alemanha nazista, trabalhando em uma fábrica de bombas (claramente inspirada por "O Grande Ditador") e tendo de saudar a Hitler a cada vez que vê seu retrato. É uma sátira política brilhante (embora, obviamente, não olhe para os defeitos de seu país, apenas os do inimigo), feita de maneira tão leve porque a extensão do horror nazista ainda não era plenamente conhecida (Chaplin declararia que nunca teria feito sua sátira a Hitler se soubesse do tamanho da maldade que ele foi capaz de engendrar). A canção que dá título ao desenho é brilhante, dessas que grudam no ouvido _o que é um perigo, pois sair cantado "Sieg, Heil!" pela rua não é nada politicamente correto...

    Outro desenho estrelado pelo Pato Donald, feito no ano seguinte: "The Spirit of '43". Diferentemente do anterior, que, apesar de propaganda, não deixava de ser divertido e antiguerra, este deixa o humor de lado para martelar um dever cívico: o de pagar impostos para ajudar o país a vencer a guerra. Sem senhuma sutileza, Donald é tentado por uma versão esbanjadora sua a torrar seu salário, enquanto seu Tio Patinhas (de kilt e com sotaque escocês, mas identificado com o "american way") o aconselha a ir pagar as taxas. Depois de "fazer o que é certo", Donald é abandonado, e o que vemos é onde o dinheiro será empregado: na fabricação de armamentos (canhões, munição, aviões, bombas). Horrendo e de dar medo.

    O terceiro filme que vi não é da Disney, mas de Tex Avery. Chamado "Blitz Wolf", vai mais na linha deste último: sem sutileza nenhuma, pega a história dos Três Porquinhos e transforma Hitler em lobo mau; os dois primeiros porquinhos continuam a fazer suas casas de palha e madeira, mas o terceiro entra para o exército e constrói uma fortaleza, com trincheiras e canhões. A coisa fica feia e, num plano assombroso, vemos o Japão ser bombardeado até sumir do mapa (cerca de três anos antes das bombas atômicas). O triste curta termina com uma recomendação: os patriotas deveriam comprar "bonds" para ajudar a financiar seu país na guerra...

    Apesar de apenas o primeiro ser bom, estes filmes são um documento histórico importante e, por mais politicamente incorretos que sejam, deveriam ser vistos e estudados por qualquer um que se interessa pela capacidade de o cinema manipular opiniões.

    ***

    Os EUA têm obsessão pelos vencedores, pelos "number one", pelos empreendedores, os "self-made men"; esta característica carrega, como tudo na vida, seus prós e contras. No caso do documentário "Murderball" (que aqui no Brasil ganhou o subtítulo besta "Paixão e Glória"), produzido pela MTV, a força está em seus personagens (tetraplégicos que encontram no esporte _no caso, o rubgy em cadeiras de rodas_ um objetivo de vida) e no acompanhamento dos mesmos durante um período de mais de dois anos. O problema é o extremo conservadorismo (não se cansa de usar as histórias dessas pessoas _"jocks" cheios de testosterona_ para martelar o tal do "american dream") e certas intervenções na realidade para passar melhor os significados pretendidos pelos realizadores. O bad boy, descrito pelos seus amigos como "asshole", acaba sendo porta-voz de seu time, dando palestras para o exército e se encontrando com George W. Bush; o treinador durão a princípio implica com o filho nerd, que prefere tocar viola (aquela de orquestra) a fazer esportes, mas acaba se tocando que os méritos intelectuais do garoto também fazem dele "um vencedor".

    ***

    "Experiment in Terror" (1962), como indica o título, é um filme atípico de Blake Edwards, embora não totalmente desprovido de senso de humor (dá a impressão de que o sucesso de "Psicose" teria alguma influência aqui, mas o filme não é exatamente hitchcockiano, embora algumas associações possam ser feitas). Estava devendo uma para o recém-falecido Glenn Ford, aqui bem sóbrio, enquanto Lee Remick encanta até no escuro; mas quem rouba o filme, como de praxe, é o vilão, interpretado por Ross Martin. A trilha sonora do Henry Mancini é uma atração à parte; o tema principal tem camadas diferentes de significação, indo da melancolia ao lado oposto com perfeição, basta apenas uma mudancinha no arranjo...

    "Lorna" (1964), por sua vez, é mais uma adaptação literária dirigida, produzida e fotografada pelo Russ Meyer. Lorna Maitland, aqui no primeiro de seus três filmes, cumpre com louvor os requisitos "bosomania" do diretor, mas não passa muito disso _quem rouba mesmo a cena é James Griffith, como The Man of God, uma espécie de coro grego moralista. A fotografia do Meyer é sensacional; o homem sabia mesmo enquadrar, decupar e montar. Outra característica básica dele é a trilha sonora dando o clima, alternando momentos de tensão e de calmaria. Mas o mais impressionante é como o filme se sustenta com um fiapinho de enredo; é a habilidade do diretor com as imagens que sustensa o projeto, que, no entando, pode gerar reflexões como os papéis sexuais.

    E o "The Black Dhalia", hein? Que filmaço! "Jazz Branco" está na fila para ser lido, mas tem tanta coisa na frente... E minhas prioridades literárias atuais são Marcel Proust e o Marquês de Sade.

    ***

    O próximo texto, obviamente, trará um balanço da minha Mostra (que já não começa muito bem, porque uma reunião impediu que eu aproveitasse o primeiro dia e perdesse um filme singelamente batizado como "Fuck"). Creio que não baterei meu recorde de filmes vistos, mas com certeza deixarei todos os bambambãs de lado e mergulharei nas bizarrices de gente da qual nunca ouvi falar (com uma honrosa exceção para o dinamarquês Christoffer Boe, que volta com seu novo filme, "Offscreen", que promete). Enquanto isso, a caixa de comentários está aberta para indicações de sessões interessantes.

    P. S. Falando na Mostra, o filme do tirolês Nathaniel Hornblower (também conhecido como MCA ou Adam Yauch) que documenta um show de seus Beastie Boys (de quem sou fã desde 1987 e tive a alegria de vê-los ao vivo em uma inesquecível performance da turnê do "Ill Communication" em 1995) é originalmente chamado "Awesome! I Fuckin' Shot That!", mas ganhou aqui em São Paulo o título "Nossa, Eu Filmei Isso!". Será que passou no festival do Rio como "Caraca! Filmei uma Parada Sinistra!"?

    Nenhum comentário:

    Na platéia