A gruta é mais extensa do que a gruta

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    sábado, setembro 30, 2006



    Carlo Mossy e Gustavo Engracia em "A Volta do Regresso"

    Fazer um filme é como uma batalha, uma guerra. Nunca há dinheiro que chegue, sempre falta tempo, sinto uma profunda solidão, sofro muito filmando. Ser diretor é uma profissão solitária e humilhante. Quando você faz filmes pessoais, de assuntos difíceis, próximos a você, há uma carga emocional, espiritual e física que você carrega ao filmar. E esse processo não é prazeroso. Para ser diretor de cinema, é preciso nascer com essa loucura e estar meio louco para fazer cinema. Pelo menos esse tipo de cinema.

    O parágrafo acima foi extraído da entrevista que Alejandro Iñárritu deu à uma ex-colega de Ilustrada, publicada semana passada, mas é um depoimento bastante típico. Apesar de eu não gostar de generalizações, creio que a maioria das pessoas que já tiveram a experiência de dirigir um filme de modo minimamente profissional entende perfeitamente o que o mexicano falou.

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    Que o digam Francis Ford Coppola e Terry Gilliam. Recentemente vi dois famosos documentários que mostram a via crucis de ambos em dois projetos muito diferentes: "Hearts of Darkness - A Filmmaker's Apocalypse" fala de "Apocalypse Now", que acabou se tornando sucesso de crítica e de renda; "Lost in La Mancha" fala de "The Man Who Killed Don Quijote", que nem vocês nem eu conhecemos porque as filmagens foram interrompidas. Ambos os diretores enfrentaram as mesmas desgraças, como problemas climáticos e, principalmente, problemas com o elenco, com o protagonista tendo de se afastar do set por problema sério de saúde (Martin Sheen, contratado após Harvey Keitel ser demitido, teve a manha de infartar aos 36 anos). A grande diferença é que Coppola era o produtor (caso contrário, também não teria terminado as filmagens, que duraram quase 300 dias) e não podia se demitir; Gilliam não era o dono do dinheiro e caiu do Rocinante.

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    Falando no Gilliam, revi "Os Doze Macacos" após finalmente ter visto "La Jetée", obra-prima do Chris Marker (e sua única ficção) de 1962 que, mais do que uma ficção científica nos moldes da Guerra Fria, é de uma maestria no que tange a decupagem e, principalmente, a montagem, muito rara. Não apenas a duração dos fotogramas, mas as transições entre os quadros, são brilhantes; e o trecho onde vemos a moça despertar, finalmente dando a impressão de movimento, é uma das coisas mais arrepiantes que já vi. É para ver e rever mil vezes.

    Já o Gilliam, que caiu de pára-quedas no projeto do remake como diretor contratado para filmar o roteiro, afirma não tê-lo visto. Mas apesar de ser mais de 90 minutos mais longo que a obra que o originou (o filme do Marker tem 26 minutos), "12 Monkeys" não se distancia muito dele; se em termos de enredo pouca coisa muda (a principal delas é a introdução da personagem de Brad Pitt, aqui em seu primeiro papel considerado "sério" _bem, com Bruce Willis, então uma superestrela graças à "Die Hard", não foi muito diferente; tanto que é seu melhor papel até onde posso me lembrar), sua forma torna-se obviamente muito mais convencional. Mas não deixa de ser admirável as citações a Hitchcock, em especial a "Vertigo" (quando Madeleine _epa, Madeleine?_ Stowe fica loira, é duplamente emocionante).

    "Vertigo" parecia mesmo ser uma das obsessões do Marker (assim como os gatos). Em sua outra obra mais conhecida, "Sans Soleil" (1982), ele registra suas viagens por lugares como Cabo Verde, San Francisco (acompanhando as locações do filme de Hitchcock) e Japão (cujos trechos relativos a este país certamente inspiraram o Tokyo-Ga" do Wenders). Trata-se de um documentário proustiano, palavras e imagens nascidas da memória.

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    E como estamos na França, é bom lembrar de "Les Amants Réguliers", do Philippe Garrel: em um plano hilário, fica claro que se trata de uma resposta de alto nível a "The Dreamers", horroroso atestado de senilidade do Bernardo Bertolucci, patético por não saber se tentava trazer para hoje o zeitgeist de 1968 ou se tentava impor o século XXI àquele momento histórico; (pai do ator deste e do filme do BB) é mais inteligente e dá a seu filme uma forma bem mais compatível com seu conteúdo, tornando-o um produto mais jovem e relevante (o que não o impediu de desagradar a alguns espectadores da sala lotada, que saíram antes que as três horas se completassem, indignados por não terem ido ver "O Diabo Veste Prada"). A cena em que toca "This Time Tomorrow", dos Kinks (creditados erroneamente como Kings), é talvez a mais deliciosa do ano.

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    Delícia também é o "Olhos de Vampa", do Walter Rogério (que fez a carreira no cinema como técnico de som, mas montou o fantástico "Hitler IIIº Mundo" e dirigiu também o "Beijo 2348/72", mas infelizmente anda sumido). Apesar de poder ser erroneamente tachado de "trash" por causa de seu baixo orçamento (é de 1996, mas só foi lançado em 2004!), está mais para um discípulo mais culto de José Mojica Marins (sim, mais para Mojica do que para Ivan Cardoso) em sua melhor forma ou mesmo para um "Nosferatu" brasileiro. Muito inteligente, engraçado, relevante, lúcido e belo, é facilmente um dos melhores filmes brasileiros da tal "retomada" (de quê, não sei).

    Outra maravilha inesperada é "Brancaleone alle Crociate", seqüência de "L'Armata Brancaleone", feita cinco anos depois pela mesma equipe, e que inexplicavelmente não é tão célebre quanto o original; é tão boa quanto, se não for melhor. A meia hora inicial é praticamente perfeita, não só porque hilária, mas com mise-en scène e decupagem bastante caprichadas (Monicelli trabalha como nunca os planos abertos, ao ar livre). O filme volta a crescer no final, quando a personagem de Adolfo Celi (à época já separado da Tônia Carrero), que só fala por meio de rimas, entra em cena; outros destaques, além de Vittorio Gassman, é Stefania Sandrelli (embora sua beleza seja menos explorada que a de Beba Loncar) e a deliciosa trilha sonora de Carlo Rustichelli. O Monty Python copiou até dizer chega...

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    As supracitadas músicas de Rustichelli e dos Kinks podem ser baixadas aqui. Aproveitem, antes que a RIAA me processe...

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