A gruta é mais extensa do que a gruta

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    quinta-feira, junho 30, 2005

    O Meu Boi Morreu / Cupido É Moleque Teimoso / Tarde Demais para Esquecer

    What a perfect combination, no wonder we're in love.

    Diante de um título como "O Meu Boi Morreu", das duas, uma: ou é muito bom ou é muito ruim. Mas basta olhar para o nome do diretor, que a dúvida se desfaz na hora: quem assina o filme, de 1932, é Leo McCarey, uma das figuras mais proeminentes (hoje, meio esquecida, injustamente) da "era de ouro" hollywoodiana, que tinha no rol de admiradores gente do porte de Jean Renoir e Charles Chaplin _como já falei no texto sobre os Irmãos Marx ("Duck Soup" foi feito depois deste), McCarey é apenas o cara que criou o Gordo e o Magro, entre muitas outras coisas...

    Aí o filme começa e, com o desenrolar dos créditos, vemos que o diretor de fotografia é o Gregg Toland (imortalizado por "Cidadão Kane", embora tenha feito bem mais do que isso); quem também marca presença é Busby Berkeley (sabe aquelas coreografias com meninas mergulhando em uma piscina, uma atrás da outra? Pois é, está tudo aqui), ainda antes de se tornar diretor. Pronto:
    já estou mais do que fisgado, pronto para assistir a um belo filme.

    E não sou desapontado: apesar de ter como protagonista Eddie Cantor, um cômico considerado bastante limitado, o filme consegue equilibrar de forma magistral seus aspectos de musical (são apenas quatro temas repetidos durante o filme, e todos funcionam), comédia e romance. Com um destaque especial e impressionante para o erotismo (contrastando com a fama de católico e conservador que marcaria McCarey); o filme é permeado por uma licenciosidade rara nos filmes da era Bush, eficaz (e mais poderosa, beirando o vulgar) justamente por ser apenas insinuada.

    "The Kid from Spain", assim como os filmes dos Marx, também é exemplar por ilustrar como as primeiras comédias com som sincronizado mudaram tudo (na verdade, retrocederam) e apostaram no texto (as tiradas verbais vêm uma atrás da outra, algo bem Mae West), embora McCarey seja um mestre do cinema e nunca deixe que a imagem fique totalmente em segundo plano (os exemplos são muitos). Também vemos aqui a mesma base das famosas comédias estreladas nos anos 40 e 50 por Martin & Lewis (guardadas as devidas proporções, é claro): um galã romântico às voltas com um trapalhão que vive se metendo em encrencas. Mas se você acha que é tudo clichê e que não vai se surpreender com nada... tem que ver para crer.

    Cinco anos depois, McCarey estava indo de vento em popa: além de ter feito um de seus clássicos, o drama "Make Way for Tomorrow" (que, lamentavelmente, ainda não pude ver), ganhou o Oscar de melhor direção por este "The Awful Truth" (que também ganhou um título brasileiro estrambótico), uma das comédias mais sofisticadas (embora o próprio McCarey discordasse deste adjetivo) que já vi e a estréia de Cary Grant no gênero, estrelando ao lado da ótima Irene Dunne. O estilo de McCarey está mais depurado, e tudo é mais sutil, embora até humor físico seja usado (Grant despencando fantasticamente de uma cadeira, por exemplo). A ingenuidade do roteiro é apenas aparente e, embora McCarey afirme que tudo foi feito às pressas, com baixo orçamento e na base do improviso, as cenas se encaixam belissimamente; tudo é muito bem pensado (ou, pelo menos, aparenta ter sido). Coisa de mestre.

    Já "An Affair to Remember", feito 20 anos depois e também estrelado por Grant, é um remake de "Love Affair", filme de McCarey datado de 1939 e estrelado por Irene Dunne. Não vi o original, que praticamente todo mundo, inclusive McCarey, diz ser superior. Mas foi o filme de 1957 que estourou nas bilheterias, talvez por estar mais em voga, em tempos de Douglas Sirk e afins, romances edulcorados como este, que começa como comédia mas desemboca no melodrama. Apesar de inferior aos outros filmes comentados neste texto, a mão de mestre do diretor se faz sentir em vários momentos: um primeiro beijo fora de quadro, o reflexo do Empire State numa janela e mais... Saudade da época em que os diretores dos grandes estúdios americanos sabiam filmar!

    P. S. Com a palavra, Leo McCarey, em entrevista a Peter Bogdanovich, após comentar um trecho de "An Affair to Remember" (e, de quebra, nos dando uma pequena, mas valiosa, aula de roteiro):

    "Todos os meus filmes são construídos desse modo. Na verdade, tenho uma teoria sobre isso, que chamo de inelutabilidade dos acidentes. A idéia é a de que, se algo acontece, outras coisas decorrem inevitavelmente disso _como a noite após o dia; os eventos são ligados entre si. Sempre desenvolvo as minhas histórias dessa forma, uma sucessão de incidentes, que decorrem uns dos outros. Nunca trabalho com mistérios."

    P. P. S. No final do ano 2000, época em que eu era repórter do Folhateen, tive a honra de conhecer pessoalmente um dos gigantes do cartunismo norte-americano, Jerry Robinson. O homem tem uma biografia fantástica, mas, apesar de ter feito muita coisa importante, ele acabou ficando mais conhecido pelo grande público como o criador, ao lado do roteirista Bill Finger, do Coringa e do Robin (Robin...son, sacaram?), quando assumiu a tira "Batman", criada por Bob Kane. Ouvi da própria boca de Robinson, sentado ao lado dele no hall do Cinesesc, que nem ele nem ninguém sequer podiam imaginar que uma tirinha de jornal infanto-juvenil e despretensiosa como "Batman" poderia vir a se tornar um negócio tão grande _é como se, decepcionado, ele se desse conta de que o mundo não é mesmo um lugar sério, e que os valores da maioria das pessoas acabam estacionando numa escala muito baixa... Dois ou três dias depois, ainda em São Paulo (e antes de a minha entrevista ser publicada, na mesma página com outro texto meu, sobre os 20 anos da morte de John Lennon), Robinson teve um enfarte. Felizmente, não foi dos fatais.

    Mas por que é que estou falando disso, mesmo? Ah, por causa de um filminho aí, o tal do "Batman Begins" (sim, ninguém mais se digna a traduzir filmes, é a globalização _não seria divertido se o mesmo indivíduo que batizou "The Kid from Spain" de "O Meu Boi Morreu" e "The Awful Truth" de "Cupido É Moleque Teimoso" transformasse este aqui em "Morcego Neurótico, Espantalho Nervoso"?). Que nem chega a ser tão ruim, coitado; até tem um roteirozinho bem construidinho e tal, pasteurizadíssimo, como pede a média dos blockbusters "me-engana-que-eu-gosto" hollywoodianos. Na verdade, mais do que ter como protagonista um ator ruim (Adam West segue imbatível!), o filme peca por não fazer uma transposição encantadora e bem-sucedida (como ocorre nos recentes "X-Men" de Synger e nos "Homem-Aranha" de Raimi) das HQs para a tela. O único personagem minimamente compatível é mesmo o James Gordon de Gary Oldman _embora o Espantalho de Cillian Murphy mereça uma menção honrosa. Mas ainda não foi desta vez que o morcegão ganhou uma versão cinematográfica à altura. Quando é que vão mandar o Robert Rodriguez filmar "O Cavaleiro das Trevas" em parceria com o Frank Miller (depois que eles terminarem os números 2 e 3 de "Sin City", claro)?

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