A gruta é mais extensa do que a gruta

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    terça-feira, julho 01, 2008

    Voltando ao Rio, mais de dois anos depois, duas coisas me chamam a atenção (além de o frio, o trânsito e a quantidade de gente parecendo formiguinha andando pra lá e pra cá serem equivalentes aos de São Paulo). Uma delas é a quantidade gigantesca de outdoors (em especial, de evangélicos _levei até um susto quando li um "Esta cidade pertence a Jesus!"); voltei a me dar conta do impacto da Lei Cidade Limpa (pena que o Kassab não é igualmente corajoso quando se trata de enfrentar o trânsito _essa restrição aos caminhões é ridícula; aliás, o país todo está vivendo uma escalada de leis restritivas entrando em vigor, até quando ou aonde isto vai?). Mas o que mais me interessou mesmo (algo que eu nunca tinha observado antes) foram as particularidades das pichações cariocas. Diferentemente das paulistanas, que parecem querer se destacar, como um anúncio, as cariocas têm um perfil um tanto obssessivo-compulsivo: pequeninas, são repetidas ad nauseum, tentando preencher o espaço. E as letras também são muito diferentes: em São Paulo popularizou-se um estilo mais duro, pontiagudo, agressivo; no Rio, as assinaturas (que lembram mesmo assinaturas, dessas que se costumava fazer em cheques, também à beira da extinção) são mais graciosas, curvas, leves. É muito engraçado que as diferenças, tão discutidas, entre as duas cidades, também aflorem nesses detalhes. Claro, algumas coisas nunca mudam na capital fluminense _em especial, cariocas brigando na rua aos gritos e começando todas as frases, por mais curtas que sejam, com "olha só" (exemplo: "Olha só: vai se foder!").


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    Antes de me reencontrar, após mais de dois anos da filmagem de "A Volta do Regresso", com Carlo Mossy, aproveitei para ver dois dos muitos filmes em que ele atuou, dos quais conhecia apenas alguns trechos. "A Penúltima Donzela" (1969), um dos três dirigidos por Fernando Amaral (segundo o Mossy, ele morreu ainda nos anos 70, o que eu não sabia) e produzido por Roberto Farias e Paulo Porto, é uma pérola da crônica de costumes, retratando o conflito de gerações no Rio de Janeiro no final dos anos 60: estão lá a resistência à ditadura (bem sutilmente), a revolução sexual (hilária a cena na praia em que um conquistador tenta passar uma conversa numa caipira de Minas citando um texto no qual a Simone de Beauvoir criticaria o casamento, e a moça responde: "Mas ela não é casada com o Sartre?"), o moralismo da família e da igreja católica etc., num mosaico leve, jovem, bem-humorado e com sofisticação acima da média (em alguns momentos soa até pretensioso). Adriana Prieto e Mossy têm uma química tão grande (eles trabalharam também no raro "Soninha Toda Pura", que o próprio Mossy não vê há mais de 30 anos) que o filme esfria quando Paulo Porto entra. Merece uma revisão e um texto mais detalhado _algum dia, talvez. O outro filme visitado é "O Seqüestro" (1981), adaptação de livro de José Louzeiro que apresenta uma teoria inusitada sobre o famoso caso Carlinhos. Assim como o belo tema de Paulo Sérgio Valle e Marcos Valle, o elenco (Jorge Dória, Milton Moraes, Carlo Mossy, Helena Ramos, Adriano Reys e Otávio Augusto) é ótimo, mas o Victor di Mello me parece um diretor bem canhestro e pouco ousado. Ainda assim, o filme guarda uma cena ótima, bastante tensa e que quebra as expectativas, no final. Mas não é um grande exemplar do cinema policial brasileiro (a curiosidade é a dedicatória a Serpico).

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    Com exceção do "B", de todos os países da tal sigla BRIC, o que eu mais vi retratado no cinema deve ser a Índia _em clássicos como "O Rio Sagrado", "Narciso Negro" e muitos outros até o recente "Viagem a Darjeeling" (este ainda não vi, mas certamente deve ser influenciado pelos antecessores), todos dirigidos por ocidentais. Mas é curioso que eu não me lembre de ter visto algum filme da produção local (Bollywood nunca me chamou a atenção) até chegar a Satyajit Ray. As duas primeiras partes da "Trilogia de Apu" (a terceira eu verei em breve), "Pather Panchali" e "Aparajito" (se não estou errado, os títulos foram traduzidos como "A Canção do Pequeno Caminho" e "O Invencível", respectivamente) me mostraram, pela primeira vez, uma noção da pobreza que havia (e certamente ainda há) naquele país (com o qual o Brasil tem muito em comum, pelo menos neste aspecto). Eu prefiro o primeiro, datado de 1955, mas é interessante notar que o segundo, apesar de conter talvez mais tragédias, é menos deprimente, porque o protagonista passa a tomar as rédeas de sua vida. Em ambos, planos e cenas de muita beleza e simplicidade (destaco a da chuva no primeiro e a dos vaga-lumes, no segundo). Nem mesmo o "India: Matri Bhumi", do Rossellini, tinha me mostrado tão bem o país.

    De volta ao Ocidente, mas ainda com Ray (Nicholas), finalmente consegui ver "Bigger than Life" (1956) _uma sessão interrompida por um problema de som impediu que eu o tivesse visto por inteiro. A semi-revisão desta produção de James Mason estrelada pelo próprio foi decepcionante, embora o filme, que parece convencional na superfície, reflita bem a sociedade norte-americana da época (além de bastante irônico). E me agradou menos ainda o drama de guerra "Bitter Victory", apesar de Richard Burton estar excelente. A sublime trilha sonora de Maurice Leroux engrandece imensamente cenas que, sustentadas apenas pelas imagens, teriam impacto muito menor. O último filme do diretor visto no péríodo foi "Party Girl", no qual a recém-falecida Cyd Charisse não deixa de dançar (otimamente, como de costume, embora os números não sejam tão criativos quanto em outros filmes _mas creio que esta nem era a intenção). Trata-se de um "conto de fadas sujo", esta esta mistura de romance com filme de gângsters. Robert Taylor, mais de 20 anos depois de ser o ótimo galã em "A Dama das Camélias", faz um bom protagonista digno, e Lee J. Cobb, o "bom" vilão de sempre.

    A guerra também foi retratada em várias outras obras do período que passaram à minha frente. Uma delas é "Men in War" (1957), de Anthony Mann, que se passa na recentíssima Guerra da Coréia e é estrelada por Robert Ryan (ótimo, como de costume) e um irreconhecível (velho e gordo) Aldo Ray. Não é nenhum Fuller (o tom é um pouco melodramático demais, chegando a lembrar "Soldado Ryan" aqui e ali), mas tem um início e um final especialmente fortes. Também tem "war" no título a adaptação de King Vidor para "Guerra e Paz", que, apesar de se deixar ver numa boa, é obviamente muito pálido em comparação ao grande romance de Tolstói (embora eu prefira "Ana Karênina"). Falando em Fuller, olha ele aí: "Run of the Arrow", um de seus filmes de que mais gostei (bem, a maioria das obras dele entra nesta categoria) é outro que mereceria um artigo mais substancioso, se eu tivesse tempo (ou seja, se fosse pago para fazê-lo). A Guerra de Secessão deixou um trauma tão grande no protagonista interpretado por Rod Steiger que ele, descendente de irlandeses, praticamente muda de pátria. O filme está repleto de símbolos (mas sem um pingo de frescura), e a ação impactante e de qualidade, típica do diretor, está lá. Tive a clara impressão de que este filme deve bastante a John Ford e a Delmer Daves, e que Peckinpah e, bem, Kevin Costner devem muito a ele. E, antes de fazer a ligação direta com os westerns, vale citar, neste parágrafo dedicado a guerras, "Um Condenado à Morte Escapou", no qual Bresson se vale da mesma prisão em que André Devigny esteve e das mesmas cordas e ganchos usadas na fuga real para, como diz uma inscrição no início, contar uma história sem ornamentos _com exceção da música de Mozart, que confere mais beleza e pretensão à obra.

    Seguindo com Fuller, "Forty Guns" traz algumas idéias já usadas antes em westerns (uma mulher _Barbara Stanwyck_ liderando um bando de foras-da-lei, o trio de irmãos), mas também cria algumas cenas originais e inesquecíveis (como a do tufão e a característica cena de violência do diretor, quando a baderna explode na cidadezinha _um dos momentos de destaque de John Ericson, como Brockie Drummond). As canções (e as fusões) são ótimas. O já citado Anthony Mann contribui com "The Tin Star", outro de seus grandes exemplares do gênero _desta vez, sem James Stewart, mas com Henry Fonda, Anthony Perkins, Lee Van Cleef, John McIntire e Neville Brand. Curioso que este filme é tão bem-construído que acabou ficando mais "certinho" do que o necessário, além de bastante previsível _mas não deixa de ser ótimo por causa disso. Outro que já foi citado, Delmer Daves, traz "3:10 to Yuma", um western mais cerebral do que a média, que consegue não forçar muito a barra ao contar uma incomum história de heroísmo. Van Heflin, um ator muito criticado, está bem como protagonista, e Glenn Ford arrasa como um antagonista "cool", inteligente e simpático _não à toa, o título brasileiro é "Galante e Sanguinário". Henry Jones, Richard Jaeckel e Felicia Farr também se destacam como o bêbado da cidade, o fiel capanga do vilão e o interesse romântico do mesmo (o remake de James Mangold, do ano passado, tem sido bastante elogiado). Fechando este parágrafo, talvez o melhor deles (o páreo é bem duro), "Seven Men from Now", de Budd Boetticher. A canção que o abre diz o que precisamos saber: sete homens têm um destino, o de morrer pelos crimes que cometeram, hohoho. Randolph Scott e Lee Marvin (este em um grande momento, com um personagem fantástico) chutam bundas. Tecnicamente, o filme é perfeito _com destaque para o figurino pouco naturalista. Uma aula de concisão em apenas 78 minutos (especialmente no primeiro e no último duelos a bala), não mostra o que não precisamos ver.

    Ainda nesta linha de concisão, uma outra pequena obra-prima: "Murder by Contract", de Irving Lerner. Curto, simples e sofisticadíssimo _caso de cenas fantásticas em si mesmas (o primeiro ato daria um excelente curta-metragem) belissimamente encadeadas. A personagem de Vince Edwards é incrível. A trilha sonora é excelente. Feito em sete dias, com baixo orçamento, é um desses milagres que acontecem de vez em quando. Mas "While the City Sleeps", de um de meus diretores favoritos (Fritz Lang), não me pegou de jeito e provavelmente precisa ser revisto: após um início empolgante, quebra as expectativas de ser um suspense concentrado e tenso (afinal, ele já tinha feito "M" e não precisava se repetir) e se espalha por vários personagens envolvidos na caça a um serial killer de mulheres _mas, em vez de policiais, são jornalistas. À primeira vista, achei que a complexidade das relações e dos conflitos mina um pouco a força do filme, que parece não ter muito foco. Outra relativa decepção vinda de um mestre é "The Wrong Man", o único filme que Hitchcock fez após a Segunda Guerra que eu ainda não tinha visto. É uma obra estranha, porque, por um lado, concentra várias obsessões temáticas do diretor (o inocente falsamente acusado, o medo da polícia, o cristianismo), mas também adota um estilo muito diverso para retratá-las: é um filme lento, pesado, praticamente kafkiano, e o fato de ser baseado em uma história real (com uma inédita introdução com a voz do diretor) prejudicou razoavelmente a construção de um "filme de Hitchcock". Saem a diversão, as peripécias, o romance, o senso de humor, um certo glamour e mesmo o suspense, e ficam somente a tensão e o clima sombrio de um mundo ruim desabando sobre todos. Certamente é seu filme mais naturalista, daí a falta de espetáculo _que quase vira falta de personalidade. Mais desconcertante é "Ascensor para o Cadafalso", o primeiro filme de ficção de Louis Malle: começa como um romance, depois se torna um thriller de ação e desemboca numa "tragédia de erros". E não tem um ar pretensioso, o que é ótimo. Divertido, pungente e belo _e tem Jeanne Moreau, mas quem rouba a cena mesmo é a estreante Yori Bertin. E, finalmente, um filmaço de Alexander Mackendrick, "Sweet Smell of Success". Um roteiro fenomenal e complexo de Ernest Lehman e Clifford Odets, com diálogos praticamente perfeitos e duas personagens inesquecíveis (além de vários coadjuvantes _com destaque absoluto para Barbara Nichols, a vendedora de cigarros), interpretadas com brilho por Tony Curtis (canalha, desses que vendem a mãe sem remorso) e Burt Lancaster (assustador: parece que ele vai quebrar o seu pescoço com um olhar), como o assessor de imprensa e o colunista de celebridades (uma pragra que infelizmente existe há muito tempo) que tentam separar um jovem casal. Chico Hamilton e seu quinteto fazem uma bela participação.

    Partindo para um tema mais leve (sem trocadilho), revi, com a mesma fascinação de quando o conheci numa das antigas madrugadas da Globo, "O Incrível Homem Que Encolheu". A revisão confirma que se trata de um filme especial. Já seria ótimo se fosse apenas pela originalidade da história, pelo carisma das personagens principais (em especial das belas April Kent e Randy Stuart) e pela gigantesca (sem trocadilho, de novo) qualidade dos efeitos visuais. Mas os minutos finais, com aquele monólogo surpreendente e maravilhoso, de fazer chorar e perder o fôlego, carimbaram esta obra de Jack Arnold para sempre como uma pequena obra-prima da ficção científica. Vale até reproduzir aqui as palavras finais (quem ainda não viu, não leia): "So close - the infinitesimal and the infinite. But suddenly, I knew they were really the two ends of the same concept. The unbelievably small and the unbelievably vast eventually meet - like the closing of a gigantic circle. I looked up, as if somehow I would grasp the heavens. The universe, worlds beyond number, God's silver tapestry spread across the night. And in that moment, I knew the answer to the riddle of the infinite. I had thought in terms of man's own limited dimension. I had presumed upon nature. That existence begins and ends in man's conception, not nature's. And I felt my body dwindling, melting, becoming nothing. My fears melted away. And in their place came acceptance. All this vast majesty of creation, it had to mean something. And then I meant something, too. Yes, smaller than the smallest, I meant something, too. To God, there is no zero. I still exist!"

    Assim como este texto: faltou registrar um famoso episódio feito por Orson Welles para a TV, "The Fountain of Youth" (curioso que acabei de jogar mais um episódio da hilária série "Sam & Max" na qual a mesma aparece). É uma fascinante mistura de narração e imagens estáticas (anos antes de "La Jetée") com o drama mais tradicional (mas com a cenografia despojada da televisão). O enredo, bem previsível, é menos interessante (e mais tradicional) do que a forma, mas é pena que a TV de hoje é ainda muito mais arcaica do que esta obra de 50 anos atrás. Mas como desta vez não vou falar mais de série televisivas (estou terminando a segunda temporada de "Roma" aos poucos), lembro de três comédias: a menos importante é "Silk Stockings", refilmagem musical de Ninotchka. É curioso que Mamoulian (em seu último filme _é também o último musical de Astaire em mais de dez anos), nascido na Rússia, tenha feito este filme em pleno auge da paranóia da Guerra Fria. Não chega aos pés da versão de Lubitsch (na verdade, sequer podemos chamar este filme de comédia _mesmo Peter Lorre não é muito eficiente no gênero; a participação dele em "The Patsy", de Jerry Lewis, também é fraca), mas se torna grande cinema justamente quando registra Fred Astaire e, principalmente, Cyd Charisse (e eu ter visto este filme logo após sua morte foi mera coincidência) fazendo o que faziam melhor: beleza. Palavra que era fundamental para Chaplin, mas que em seu penúltimo filme como diretor e o último em que atua como protagonista, está mais para cronista do que para poeta (a beleza se concentra mais em Dawn Addams). "A King in Nova York" é bastante autobiográfico e (mais) um manifesto político _Chaplin, significativamente, coloca seu discurso humanista e democrático na boca de seu filho Michael. O mundo girou, a Lusitana rodou, e as liberdades individuais na "terra dos bravos e lar dos homens livres" voltam a ser colocadas em segundo plano por medo de (mais) um inimigo. Há também algo da velha comédia física (uma apresentação teatral revive o pastelão e parece homenagear Stan & Ollie), mas os destaques são os ataques à indústria cultural da época: a música, o cinema, a televisão. Chaplin, à beira dos 70 anos, ainda em forma. Mas um grande cronista foi Frank Tashlin, que, em "Will Success Spoil Rock Hunter?" volta a trabalhar com Jayne Mansfield, embora aqui ela esteja em um papel bem mais caricatural do que em "The Girl Can't Help It" (que, no momento, eu prefiro). Os momentos mais engraçados são os irônicos (a destacar as propagandas nos créditos iniciais e o interlúdio para os "fãs da TV"), já que Tony Randall é muito limitado como comediante (mas Mansfield é ótima e compensa) _há também uma participação tão inacreditável e sem-vergonha de Groucho Marx (à época, uma personalidade televisiva) que a princípio eu pensei que fosse um sósia dele!

    E, antes do único filme visto nos cinemas em um tempo (algo que anda quase impossível), aquela parada obrigatória no Japão me trouxe o filme de estréia de Masumura, "Kuchizuke" (cujo título nos EUA é "Kisses"). Curiosamente, ele me lembrou um pouco de "Il Sorpasso", feito alguns anos depois por Dino Risi, que também morreu há pouco, por mostrar a vida jovem no Japão contemporâneo, o que não é muito visto em filmes clássicos do período (Ozu, por exemplo, se fixou mais nos extremos, crianças e idosos, e seus jovens parecem um tanto tradicionalistas). A diferença é que, aqui, um casal se forma, e a maneira como se encontram e o principal dos muitos conflitos que têm de resolver são originais e ricos, com um final satisfatório, bonito e óbvio. Hitomi Nozoe, belíssima, não teve carreira longa no cinema, embora tenha participado de 30 filmes. E, finalmente, "A Questão Humana", de Nicolas Klotz, foi uma decepção: uma história que parecia bem mais interessante acaba tomando um rumo banal, talvez tão banal quando o mal ou a covardia. A princípio, parece quase um musical (a trilha sonora é excelente), mas ele vai se silenciando...

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