A gruta é mais extensa do que a gruta

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    segunda-feira, setembro 11, 2006

    Carlo Mossy e Gustavo Engracia em "A Volta do Regresso"

    Ir ao Festival Internacional de Curtas-Metragens de São Paulo é sempre uma dor e uma delícia; delícia porque adoro o formato (apesar de considerá-lo ingrato, do ponto de vista da realização), infelizmente raro de ver nos cinemas, a não ser em projetos especiais; dor, porque a qualidade da imensa maioria dos filmes costuma ser muito baixa.

    Este ano, bati meu recorde de sessões no festival: quatro (não é muito, mas foi o máximo que agüentei). Basicamente, boa parte dos filmes insiste em cair na balela de que o curta é um "espaço para a experimentação" (ora, como se os longas também não o fossem, mesmo com as obrigações comerciais _convenhamos: a rigor, a única diferença entre longas e curtas está no próprio nome, é a duração); o problema é que "experimentação", na cabeça de muitos destes "cineastas", limita-se a intervir na imagem com recursos de animação ou evitar ao máximo o texto, numa busca forçada e muito esquisita pelo que chamam de "cinema puro", sem, no entanto, chegarem perto do que fizeram mestres como (OK, vou apelar) Murnau, Lang ou Hitchcock (ou seja, vêm com esse papo para disfarçar melhor suas limitações; eu não caio nessa, desculpem). Foi o que vi não apenas na sessão dedicada à britânica Lux, que recebia recursos de emissoras de TV estatais para criar curtas experimentais (até aqui, tudo bem, embora apenas um filme da sessão que vi seja minimamente interessante), mas na sessão da Semana da Crítica do Festival de Cannes, especialmente curiosa por se limitar a contemplar, em sua maioria, produções que dispensam, integralmente ou quase, os diálogos _a exceção é justamente um curta brasileiro que ganhou um prêmio de roteiro, que se mostrou, infelizmente, bem decepcionante (pois gosto de "Ímpar-Par", filme anterior do diretor, apesar do incômodo que causa a sua falta de ligação com o Brasil _poderia perfeitamente ser falado em francês ou italiano que ninguém suspeitaria de que se trata de um filme brasileiro contemporâneo): "Alguma Coisa Assim" (é complicado quanto o título já deixa a desejar) é sutil, cosmopolita e pouco original (ouvi dizer que a cena no supermercado foi chupada de um filme de Fassbinder que não vi). Na sessão Internacional 6, o destaque absoluto (e o melhor filme que vi neste festival) é o eslovaco "A Camiseta", de Hossein Martin Fazeli, simples na imagem e complexo no conteúdo (na contramão da tendência mundial); mas também havia umas coisas bem esquisitas, incluindo aí um do Chris Cunningham que está mais para clipe do Aphex Twin do que qualquer outra coisa. A última sessão que vi foi a Panorama Brasil 8, com filmes premiados pela Petrobras. Um deles, "A Chuva nos Telhados Antigos", é especialmente ruim: roteiro fraco, péssimo diálogo (e é adaptação literária), atores muito mal dirigidos num conjunto muito afetado e kitsch, mero bibelô pobre e de mau gosto. "Amsterdam", da Trattoria, produtora especializada em animação, é melhor, mas acaba como um melodrama pouco ambicioso. Completavam a sessão um bom documentário sobre Mário Schenberg e "Manual para Atropelar Cachorro", que traz alguns momentos ótimos (o karaoke e a cena com Zezé Polessa, em especial), mas que também derrapa feio ao reproduzir conceitos dogmáticos e limitados sobre cinema, numa tentativa de ironia que acaba sendo um tiro pela culatra. Mesmo assim, um filme minimamente animador.

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    Nessas horas é muito complicado ter telhado de vidro: como estou prestes a circular "A Volta do Regresso" nos festivais, preciso estar pronto para também levar inevitáveis pedradas. Desde o início do projeto eu soube que estava fazendo um filme que tem muito pouco a ver com a produção contemporânea de curtas-metragens, e este panorama que vi recentemente é mais uma confirmação disto. O fato de eu ter considerado boa parte da programação do festival bem ruim por um lado poderia me deixar animado, com a certeza de que tenho na manga uma carta poderosa; por outro, há a possibilidade de o filme ser barrado justamente por ele negar o que a imensa maioria dos diretores de curtas louvam _e o fato de se tratar de um filme de baixíssimo orçamento (o que inevitavelmente transparece na tela) deixa tudo bem mais complicado. Já exibi trabalhos anteriores em público, e sempre é angustiante quando topamos com a incompreensão, assim como é uma grande alegria quando o filme cumpre sua função mais básica: a de divertir. E é este o sucesso que espero, não o dos prêmios (considero a possibilidade de ganhá-los bem remota). Pelo menos, hoje recebi a notícia de que uma pré-estréia no Odeon, lá no Rio, já está garantida.

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    Atrasei a atualização deste site para aguardar a estréia de "A Dama na Água", do Shyamalan; não esperava muito do filme (pelo menos, não que fosse melhor do que "A Vila", que mexeu comigo inclusive fisicamente, por causa dos sustos, da tensão e da extrema violência protagonizada por Adrian Brody em um plano), mas estava ansioso para vê-lo. É o seu filme mais "família" (ainda mais do que "Wide Awake"), que me fez lembrar do Spielberg de "E.T.", guardadas as devidas proporções _talvez tivesse sido melhor aceito se fosse vendido como filme infantil, o que ele realmente é (há algo de especialmente encantador no fato de as personagens não resistirem muito a acreditar no inverossímil, como acontece, por exemplo, em "Janela Indiscreta"). Seu senso de humor (mais proeminente em "Sinais", filme que melhora muito quando encarado como a boa comédia que é) volta a dar as caras (a personagem de Freddy Rodríguez é de arrancar gargalhadas), além da exigência da suspensão de descrença para embarcar no filme (que funcionava muito melhor em "A Vila", seu filme menos obscurantista, e até em "Corpo Fechado", fascinante a princípio, mas que não segura tão bem uma revisão), que dispensa um clímax. Não me incomodei nem um pouco com a personagem do crítico, e o projeto todo me pareceu bastante inteligente _mas não é um filme marcante, não se segura na memória como "A Vila".

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    Do outro lado, dois filmes que se esbaldam no naturalismo e na sobriedade: o primeiro é "Bullitt", filmado em minha querida San Francisco (sem nenhum traço do "flower power", embora estejamos em 1968) pelo Peter Yates e estrelado por Steve McQueen, em interpretação pétrea (a não ser quando diz o climático "Bullshit!" _a primeira vez que a palavra foi ouvida num filme de Hollywood, dizem_ para Robert Vaughn). Como Yates não é Truffaut, Jacqueline Bisset não aparece no auge da beleza, mas não deixa de ser um colírio. O grande destaque é a trilha do Lalo Schifrin, mas as cenas de perseguição (de carro pelas ladeiras da cidade e a pé, no aeroporto) também são clássicas ("Miami Vice", do Michael Mann, parecia que ia seguir pelo mesmo caminho, mas é prejudicado pelo romance entre as personagens de Farrell e Gong Li; faltou o que sobrou em "Colateral": personagens bem trabalhados _apesar de o enredo deste ser convencional demais). O segundo é "Anatomy of a Murder", finalmente revisto. Otto Preminger teve o cuidado de pesquisar o sistema judiciário americano, com a supervisão de profissionais de direito e mesmo a inclusão de alguns deles como atores. Sem pirotecnia, sem grandes malabarismos dramáticos, sem frescura. Talvez, por isto, hoje possa ser visto com estranheza, mas é um filme muito interessante, embora não seja meu preferido do diretor.

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    Também baseado em muita pesquisa (refletida na impressionante reconstituição de época) e filmado nas locações reais, "Ludwig" não se limita ao naturalismo, mas é enriquecido com alguns símbolos ao mesmo tempo discretos e incontornáveis, como a dentição do protagonista. Há também o adorável paradoxo de uma produção tão nababesca ter como tema a solidão, o isolamento e a alienação. Estas quase quatro horas que passam voando são mais uma das várias amostras de que Luchino Visconti é uma das maiores glórias do cinema.

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    A outra obra-prima que vi recentemente é "Out of the Blue", terceiro longa de Dennis Hopper, bastante parecido com seu filme mais famoso, "Easy Rider" _mas muito melhor. A personagem de Linda Manz, com seu lema "subvert normality!", encarna à perfeição o espírito adolescente, e Hopper, verdadeiramente um protopunk, está simplesmente genial em todas as suas cenas. As músicas de Neil Young (embora o grande personagem musical do filme seja Elvis Presley), retiradas de seu então recentíssimo "Rust Never Sleeps", hoje clássico, se encaixam maravilhosamente às imagens de Hopper _a cena em que toca "Thrasher" é de uma beleza inexprimível em palavras. A música "Kill All Hippies", que abre o disco "XTMNTR", o melhor do Primal Scream, é homenagem a este imenso filme.

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    Outra revisão do período foi o "To Catch a Thief", o "filme francês" de meu amigo Alfred Hitchcock (lembra a série de Arsène Lupin). É uma de suas poucas obras que conseguem me entediar, apesar de estar repleta de bons momentos (gosto especialmente da montagem que mistura o imitador do ladrão "O Gato" com um gato preto que anda pelos telhados, da cena em que Cary Grant deixa cair uma ficha de 10.000 francos no decote de uma grã-fina no cassino e dos momentos em que o diretor gourmand deixa clara sua ojeriza por ovos _além do genial final trágicômico). Foi um grande sucesso à época, mas é chocante que este projeto tão ligeiro seja o sucessor imediato do gigantesco "Janela Indiscreta". Seu pior filme da fase americana, talvez?

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    O E-Mule está possibilitando um passeio pela obra de Russ Meyer, diretor que muitos detestam, mas com quem simpatizo muito. Vi dois de seus filmes de 1965, "Mudhoney" e "Motor Psycho", ambos mais convencionais do que seu trabalho posterior, mas com seu estilo já bem esboçado. O primeiro é a adaptação de um romance bastante típico sobre a Depressão nos EUA dos anos 1930 (no estilo "The Postman Always Rings Twice"). Aqui, o grande interesse é o elenco _a começar pelas quatro beldades que mostram um pouco de seus atributos físicos (causando um certo anacronismo, pois todas possuem uma beleza pós-Marilyn-Mansfield-etc., que não estava em voga nos anos 1930), mas também por Hal Hopper (que era músico e compositor), como o marido bêbado que bate na mulher, e da inesquecível Princess Livingston _que, apesar do nome de princesa, parece mais uma versão feminina do Costinha. Em "Motor Psycho", o destaque está em aspectos técnicos (mais caprichados do que em muitos filmes B de grandes estúdios de Hollywood): montagem ágil, trilha sonora (ótima, do rock ao jazz, passando por temas mais tensos) rolando praticamente o tempo todo e um enredo no qual a violência é extravasada de várias maneiras. Mas o mais impressionante é uma virada no roteiro que o torna também um comentário político relevante. Barato e minimalista, apenas 73 minutos de ação "non stop".

    Outro clássico da mesma época e local finalmente conferido é "Paixões Que Alucinam", um filme bastante esquemático do Samuel Fuller, com um enredo simples à primeira vista (por ser razoavelmente previsível), mas que se desdobra numa análise sem condescendência dos EUA no auge da Guerra Fria. O discurso do paciente psiquiátrico negro em favor da Ku Klux Klan é uma das cenas mais fortes que já vi. Brilhante, mas eu prefiro "The Naked Kiss" e "Pickup on South Street".

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    Falando em hospício (no Brasil, dizem que se cercar ele vira um, e parece que é isso mesmo), hoje fui acordado pelo rádio, que noticiava a morte do coronel Ubiratan Guimarães, famoso por ter comandado a ação que resultou no assassinato de mais de uma centena de presidiários na extinta Casa de Detenção, conhecida como Carandiru. Ele tinha sete armas em casa, e os indícios apontam que ele foi assassinado com uma delas, que desapareceu. Entra o intervalo comercial, e quem fala, na propaganda política obrigatória, é o Fleury, governador do Estado à época do massacre, pedindo votos para todos os que votaram "não" no plebiscito sobre a proibição de venda de armas de fogo e que são a favor de relaxamento do Estatudo do Desarmamento. O fato de existir tanta estupidez (pensar que porte de armas é o mesmo que segurança só pode vir de um estúpido) no mundo não deveria ser muito mais chocante? O eleitor saberá escolher?

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