A gruta é mais extensa do que a gruta

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    sexta-feira, abril 06, 2007

    De uns dois anos para cá, os incansáveis (até porque são morbidamente tarados por uma fila: ficar na fila parece ser melhor do que viver _e o mais irônico é que eles ficam na fila para pegar os piores lugares nas salas, é a imbecil "turma do fundão") culturetes paulistanos, que não perdem uma boquinha anunciada na Ilustrada, acharam mais um nicho para invadir e destruir: o festival de documentários É Tudo Verdade. Nas edições anteriores, as sessões viviam vazias (o que não é exatamente bom, claro), mesmo num domingo à tarde em plena "cinelândia" paulistana (Augusta e Paulista e arredores); agora, mesmo as sessões mais vagabundas atraem hordas que geram malditas filas quilométricas, que se formam com horas de antecedência e dificultam muito o acesso ao festival, que ainda é 100% gratuito (o que, temo, pode mudar). E como eu não tenho cara de pau para pedir credencial de imprensa sem ser pago para cobrir o festival ("profissionalismo" é um conceito que aprendi a prezar), o jeito é perder um tempão na fila ou perder as sessões (o que ocorreu novamente nesta 12ª edição do festival).

    Pelo menos eu consegui ver uma das coqueluches do evento: "Santiago", de João Moreira Salles (que vem construindo uma obra muitíssimo mais interessante que a de seu irmão Walter). É seu melhor filme até o momento: pessoal, subjetivo (como toda obra de arte?), proustiano _uma luta para gravar na memória um pouquinho da vida de quem já se foi. Há coragem para exibir uma antiga imaturidade e sinceridade ao reconhecer o óbvio: a barreira social entre ele e seu aparente objeto nunca chegou perto de ser transposta (ambas as admiráveis qualidades me parecem, entretanto, incontornáveis). A grande estranheza diz respeito à narração: o texto é em primeira pessoa, mas quem o lê é um de seus irmãos...

    Dentro e fora do festival, me deparei com filmes que seguem outra vertente: enveredam pela informação, contextualização, ativismo político etc. O canadense "The Corporation", baseado num livro de um professor de direito, entrou em cartaz por aqui, e tem como mérito a colheita de depoimentos de notáveis (alguns bem óbvios, como Chomsky, Naomi Klein, Vandana Shiva e até o cada vez mais vidraça Michael Moore), o que torna ainda mais interessante conferir o DVD de extras, que traz depoimentos inéditos e organizados por tópicos. Outro ponto forte é a análise da aberração capitalista chamada "pessoa jurídica" (a conclusão de que seu perfil psicológico é o de um psicopata nem causa surpresa). Uma pena que o filme não seja mais concentrado: além de ter ficado muito longo, ele se perde ao iniciar certos relatos estarrecedores escolhidos a dedo _uma visão "macro", mais esclarecedora, teria sido mais eficiente. Completaram esta vertente os documentários "Kill the Messenger", sobre o caso de Sibel Edmonds (pouco falada por aqui, embora o escândalo seja grande) e o mais interessante "Iraq in Fragments", indicado ao Oscar, que tem entre suas qualidades o fato de ser abertamente inconclusivo (o que é óbvio) e o de sair da "zona verde" de Bagdá e deixar os iraquianos se expressarem.

    Fechando o festival, duas sessões de curtas: uma brasileira, à qual fui especialmente para ver o filme de um amigo, Maurício Kinoshita. Seu "Hibakusha: Herdeiros Atômicos no Brasil" é em parte diferente do que eu esperava _o conteúdo proposto está ali, mas a forma, a liguagem, fica quase que totalmente restrita às entrevistas. Mas outro filme também fez a sessão valer a pena: gravado em Brasília, "O Homem da Árvore" enfoca um ex-presidiário que resolveu morar numa árvore da Esplanada dos Ministérios, após passar metade de sua vida na cadeia por um crime que diz não ter cometido. A outra fazia parte da restrospectiva de Krzysztof Kieslowski e trouxe dois médias em DVD e um curta em película; valeu a pena por causa de "Primeiro Amor" (1974) e "Claquete" (1976) _este último é uma divertida montagem sobre o momento em que a claquete é batida; o primeiro retrata, durante quase um ano, com a câmera sempre em posição privilegiada, uma gravidez adolescente, da tentativa de aborto até o parto, passando por um casamento e perrengues e alegrias.

    Completam o capítulo dos docs dois filmes de diretores famosos pela exploração da natureza em condições adversas: Robert Flaherty e Werner Herzog. Do primeiro, "Man of Aran" mais uma vez nos traz a vida de uma população num lugar longínquo e inóspito (um pequeno arquipélago rochoso na Irlanda), encenando sua luta pela sobrevivência: esta construção impressionante é composta de imagens belíssimas (os enquadramentos são primorosos) e de uma montagem eficiente (com apoio de trilha sonora). A cena da pesca do tubarão pareceria saída de um livro de Hemingway, se este não tivesse escrito "O Velho e o Mar" mais de 15 anos depois deste filme ter sido lançado. O outro é "Grizzly Man", no qual o alemão que peitou Klaus Kinski e viveu para contar a história recebe não apenas uma personagem fascinante (Timothy Treadwell), mas cerca de cem horas de imagens e sons; era difícil não fazer um bom filme com tal matéria-prima, mas a tarefa ter ficado a cargo de Herzog é muito apropriado, porque ele, em virtude de sua vida e obra, tem a capacidade de oferecer um contraponto pessoal (e é daqui que dá para tirar muito material para discussão).

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    "Padre Padrone", dos Taviani, contém pequenos trechos documentais, ao nos mostrar o autor do livro adaptado no filme. A história é boa e traz o poderoso arquétipo da batalha entre pai e filho, e os diretores trabalham imagens e sons com certa ousadia em determinados momentos, sutilmente (mesmo assim, não me entusiasmou). Também vemos dramas rurais em "Toni", de Jean Renoir (de quem também vi "O Crime do Sr. Lange", onde mais uma vez ele demonstra ser um dos raros cineastas que sabem movimentar a câmera), e em "Our Daily Bread", de King Vidor.

    Indo para a cidade, encontramos mais um filme de Yasujiro Ozu, chamado "Rakudai wa Shita Keredo" (algo como "Eu Bombei, Mas..."), de 1930 (o mais antigo de seus filmes que vi, com o diretor já em grande forma). É um rascunho para a obra-prima "Meninos de Tóquio", misturando drama (o rapaz que não passa na faculdade de economia e seus amigos que passaram, mas não conseguem trabalho _atual, não?) e comédia (as tentativas mirabolantes e atrapalhadas dos estudantes colarem). Outra obra bem interessante é o francês "Nous Sommes Tous des Assassins", lançado em 1952 pelo ex-advogado André Cayatte. É mais um dentre os muitos filmes que condenam a pena de morte (ou seja, seria muito bom que mais brasileiros o vissem, para abandonarem de vez este delírio ridículo): as mazelas da guerra também estão aqui, nesta obra que parece um cruzamento entre Hollywood e o neorealismo.

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    Dois russos: "Dezertir", de 1933, é mais uma obra-prima do Pudovkin: um absoluto primor de montagem e de uso do som, capaz de tornar os atos mais cotidianos em poesia audiovisual (como transformar um guarda de trânsito em um bailarino). Dá até para desconsiderar o enredo chapa-branca (operário alemão é enviado para a União Soviética para aprender que o comunismo é legal e que furar greves é muito feio), típico da época (e dava para fazer algo diferente?). O outro, "Aerograd" (1935), é o filme mais linear (e decepcionante) do Dovzhenko que vi; as cenas aéreas são especialmente boas, mas desta vez a forma não nos distrai o suficiente do tom geral de propaganda bolchevista. A grande atração é o ambiente, a taiga no litoral do Pacífico, no extremo leste do país (o único outro filme que me lembro de ter visto que se passa por ali é o "Dersu Uzala", do Kurosawa).

    Falando em stalinismo, passemos ao terror: revi "A Noiva de Frankenstein", que prefiro em relação ao original, mesmo sendo atabalhoado (os planos não se encaixam direito) e obviamente uma seqüência feita mais pela vontade de os produtores faturarem do que por ter algo a acrescentar (embora acrescente). Aqui, o Monstro (vocês sabiam que o Karloff era sobrinho-neto da mulher que inspirou "Anna e o Rei do Sião"?) chora, fala, mata e salva vidas e sofre tragicamente com uma rejeição. Una O'Connor está hilária como a criada Minnie, e Elsa Lanchester esta belíssima nos papéis de Mary Shelley e o da própria noiva-cadáver... A cena com as garrafas cheias de pessoinhas lilliputianas é impressionante, belíssimos efeitos. Aliás, esta história de pessoinhas vivas aparece também em "The Devil-Doll" (1936), o penúltimo filme de Tod Browning (no qual ninguém menos que Erich von Ströheim assina o roteiro). O final é bonito, e ainda temos Lionel Barrymore disfarçado de velhinha durante boa parte do filme.

    E em "The Mask of Fu Manchu" quem se disfarça (de chineses) são Boris Karloff (ele de novo) e Myrna Loy, neste que é o mais famoso dentre os muitos filmes dirigidos pelo britânico (de Liverpool) Charles Brabin. O maior destaque é a direção de arte; as atuações são aquelas típicas da época, decupagem e montagem não são grande coisa. Talvez também seja coisa da época, mas o filme é tremendamente racista e legitima numa boa a matança dos "bárbaros" asiáticos pelos "civilizados" britânicos _ah, se o Bruce Lee estivesse por lá... Para fechar, vamos de "Dublê de corpo", quase meu De palma favorito (talvez perca apenas para "Vestida para Matar", mas ainda não vi todos deles); é uma obra-prima cinéfila e ousada que reprocessa deliciosamente uma série de clichês _ao mesmo tempo sem descuidar do público e "sem medo do que os outros vão pensar". O filme também registra o espírito de seu tempo de forma inesquecível. É a primeira vez que o vejo em sua versão integral (os cortes da Globo, especialmente nos créditos finais, prejudicam bastante o fecho da história).

    Só dois adendos: já que falei no clã Barrymore, não poderia deixar de destacar a atuação brilhante de John Barrymore (Carole Lombard não está mal, mas chama mais a atenção pela beleza) em "Suprema Conquista", grande comédia de Howard Hawks (bastante diferente das de Lubitsch). E Marlene Dietrich é outra que brilha em "The Scarlet Empress", mostrando a ascensão de Catarina II (baseado em seus diários) ao trono da Rússia; sua atuação causa estranheza a princípio, mas o ponto forte é justamente vê-la no papel de mocinha romântica e sonhadora, obediente à mãe e aos deveres de futura rainha. Outros destaques são a direção de arte, com bons figurinos e cenografia melhor ainda (investindo no característico visual cristão/ortodoxo) e as seqüências sem diálogos, apenas com trilha; a cena do casamento é maravilhosa.

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    Revendo "Boogie Nights", hoje ele soa como um "típico filme-de-família-meio-disfuncional", como os que Wes Anderson faria depois; também lembra um pouco a cinefilia referencial do Tarantino (com o tique de recuperar ex-ídolos subestimados) _em todos os casos, dá-lhe trilha sonora esperta, recuperando quase-sucessos do passado. Os grandes méritos mesmo ficam por conta do elenco, que ganha de presente personagens "esquisitinhos", cada um com seu "draminha esquisito". Há também algumas cenas isoladas que são muito boas, como o dia em que Amber Waves e Rollergirl ficam trancadas no quarto cheirando, o editor e o diretor na moviola, percebendo que fizeram sua "obra-prima" ou a melhor de todas, quando os dois astros pornô e o stripper vão à casa de um clone nojento do Frank Zappa (Alfred Molina, detentor do melhor personagem ao lado da Heather Graham, belíssima) que é mestre em "air keyboards". É mais longo do que deveria... Anderson, até o momento, está em curva ascendente _será que "There Will Be Blood" vai superar a obra-prima "Embriagado de Amor"? A caracterização de Daniel Day-Lewis está impressionante.

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    Sábado que vem, este site completa 5 anos de existência. Vai ter festinha, apareçam.

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