A gruta é mais extensa do que a gruta

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    quinta-feira, fevereiro 22, 2007

    Acabou o nosso Carnaval, não se ouvem cantar canções, e estou com um medão deste Novo Blogoogle, para o qual mudei arrastado, mas vamos lá: este mês estou tendo o grande privilégio de trabalhar na montagem de um (o cassavetiano "De Faces e Sombras") dos dois curtas, premiados pela prefeitura de minha ex-cidade São Bernardo do Campo, escritos e dirigidos pelo meu amigo "abc-mex" Vebis, El Cabrón de la Película. Não é a primeira vez que monto obras de outrem (é minha segunda atividade preferida em relação ao cinema, após roteiro), mas é a primeira vez que pego um filme para montar no qual eu não estive no set, desempenhando também alguma função ligada à direção; achei bem interessante receber um material bruto desconhecido e, baseado exclusivamente no roteiro, dar a ele a forma de um filme, montando-o do jeito que prefiro, privilegiando os atores (sempre busco aquele take em que eles fizeram algo diferente de todos os outros) e deixando detalhes como continuidade em segundo plano. Estou curtindo bastante, é um grande alívio não ser o diretor nessas horas...

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    O primeiro plano de "Rocky" (1976) é uma figura de Cristo, mas o tema não retorna de maneira explícita no resto do filme (mas volta com força na sua primeira de cinco continuações); as questões relativas à democracia capitalista, à livre iniciativa e ao "sonho americano" na "terra da oportunidade" são citadas (mas não com tanto discurso como no novo "Rocky Balboa"), mas também não são centrais; e mesmo essa história de "underdog", do homem que vem de baixo e, contra tudo e contra todos, vence, também não chega perto de definir o projeto se comparado ao romance entre o boxeador e capanga de mafioso e a moça encalhada que trabalha na loja de animais de estimação. Tudo brilha mais quando Rocky insiste e regateia para que sua garota possa patinar num rinque fechado, mesmo sem ele se atrever a fazê-lo; ou quando, na volta para casa, ele diz a ela algo como "Somos um par perfeito: eu sou idiota, e você, tímida"; ou quando ele finalmente consegue "desnudá-la" (ou seja, tira seu chapéu e óculos) e lhe dá um beijo apaixonadíssimo no chão de casa, não importanto se ela está gripada e ele passará uma semana de cama (e a pior dor de garganta de minha vida foi quando justamente insisti em beijar furiosamente uma moça gripada, na minha adolescência); mas, com exceção de uma brilhante cena entre Sylvester Stallone e Burgess Meredith na qual o primeiro entra no banheiro para não ter de falar mais com o segundo, nada se compara ao momento em que, após a mais importante luta de sua vida, o protagonista vê (mesmo com olhos arrebentados de tanta porrada) novamente sua amada, e, naquele momento, tudo o que importa é saber onde está o seu chapéu, que caiu quando ela atravessou uma multidão ensandecida para ir a seu encontro. Porque Rocky, não importa onde nem como, só têm olhos para sua Adrian.

    Trinta anos depois, como fazer um "Rocky" sem Adrian? Já havíamos perdido Mickey e Apollo, o Doutrinador (adoro essas traduções inventivas), e Adrian já havia entrado em coma (todos momentos traumáticos na série), mas como ficar sem o seu maior estímulo? A melancolia toma conta do projeto porque o tempo se torna sua questão central: Rocky tem 60 anos, ou seja, tem mais passado do que futuro; mas não só: ele é apegado ao passado, onde foi mais feliz do que é hoje, como dono de um pequeno restaurante na mesma velha e pobre vizinhança (da qual se foram os negros e entraram os latinos), e deixa isto bem claro ao fazer, acompanhado de seu cunhado Paulie, um passeio anual pelos pontos que o marcaram, como a velha academia do Mickey, a velha casa onde beijou Adrian pela primeira vez, o lugar onde o rinque de patinação, hoje demolido, ficava; tudo o que já era pobre está deteriorado, quase arruinado; tanto os edifícios como as pessoas. O futuro estaria na próxima geração, no filho de Rocky, que caiu na engrenagem capitalista que gira sem muito sentido, e no filho da pequena Marie (interpretada agora por outra atriz), aquela garota que mandava Rocky ir se ferrar após ouvir um sermão sobre não ficar na rua com os tranqueiras para não pegar fama de "vadia"; mas estes não são (ou o filme não consegue nos fazer acreditar que eles sejam) tão animadores assim, e a impressão que fica é a de que os bons tempos não voltam mais. Mas não é que o Rocky sobe de novo aquelas escadas sob a brilhante trilha sonora de Bill Conti? Foi meu primeiro e único "Rocky" no cinema, foi impossível não me arrepiar.

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    Adrian é uma heroína romântica meio que às avessas, porque não se enquadra exatamente no arquétipo do patinho feio; e, apesar de mostrar alguma força (especialmente quando abandona seu irmão pentelho e vai morar com Rocky), também não é daquelas que movem mundos e fundos por seu amor; ou seja, não é "namoradinha da América", como uma Mary Pickford ou mesmo uma Clara Bow em "It" ou mesmo em "Wings", muito menos uma sedutora espevitada como a Jean Harlow de "Hell's Angels" _para ficar em outro drama de guerra centrado nos ares que valem a pena especialmente pelas fantásticas e arriscadas cenas de batalha (se bem que, no caso do Wellman, o filme inteiro vale a pena; o de Hughes certamente teria saído melhor se a malfadada idéia de refilmá-lo com som tivesse sido descartada _ o mesmo problema se aplica a "All Quiet on the Western Front", de Lewis Milestone).

    Gloria Swanson, gigantesca nos anos 20 quando era justamente uma típica "namoradinha", mas que só entrou mesmo para a história graças a uma tacada de mestre de Billy Wilder, foi pega justamente pela perna junto com seu colega Erich von Ströheim, que juntos naufragaram em "Queen Kelly", romance que deveria ter 5 horas de duração, mas acabou sendo restaurado com 1h40min. O engraçado é que, vendo os filmes silenciosos do diretor, sempre tenho a impressão de que o som lhe faria bem, porque sempre se centrou muito nos diálogos e não tem a mesma inventividade visual de um Murnau, um Lang ou um Hitchcock (de quem em breve verei "Chantagem e Confissão", para conferir justamente como ele fez esta fundamental transição)... Já Lubitsch não parece ter se afetado muito: seu "The Love Parade" (também de 1929, como o filme de Swanson/Ströheim _ambos também lidam com um romance que se passa na nobreza européia, com uma rainha na parada) já cai com tudo no musical, se aproveitando do famoso cantor Maurice Chavelier, com gags inspiradíssimas e inspiradoras, como o coro dos cachorros e a dança circense dos serviçais. Quem soube se adaptar aos novos tempos se deu melhor _até porque nem todos eram Chaplin.

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    "Flags of Our Fathers" e "Letters from Iwo Jima" são muito diferentes (embora se complementem em parte), inclusive no modo de lidar com o tempo; no primeiro, o futuro de seus protagonistas é encenado, porque Clint acompanhou mais de perto a biografia dos seus compatriotas (e faz questão de nos mostrar, ao final, as fotos dos verdadeiros homens que inspiraram aquela história, resumida em uma imagem forte que não existe em seu filme-irmão _até porque a História costuma ser contada do ponto de vista dos vencedores); no segundo, que explora território estrangeiro, o eixo se inverte, e ficamos preponderantemente com os flashbacks _o que é compreensível, já que a maioria daqueles homens não terão futuro e, se o tiverem, não serão como heróis; porque não apenas foram derrotados, mas ousaram sobreviver.

    A reconstituição de época dos filmes de Eastwood traz o capricho habitual da produção de Spielberg, já calejado com "Saving Private Ryan" e "Band of Brothers"; mas quem me impressionou nesses últimos dias foi John Ford (a quem "Flags of Our Fathers" tem sido apontado como espécie de tributo), lá em 1924, com "The Iron Horse", uma de suas muitas obras-primas e o primeiro de seus silenciosos que vejo. Para retratar a construção da ferrovia transcontinental que impulsionou a conquista do Oeste norte-americano, Ford usa as locomotivas originais que inauguraram o encontro das duas pontas da ferrovia, numa cena que carrega uma metáfora poderosíssima (o encontro dos trilhos é também o encontro das vidas). Multifacetado, característica do diretor, o filme também funciona maravilhosamente bem como comédia, filme de ação, romance, épico; e tudo é muito, mas muito afetuoso.

    "Apocalypto", por mais que imbuído do espírito religioso e familiar que fazem parte do universo de Mel Gibson (e justamente nestes momentos o filme perde muita força, especialmente porque sublinhado por uma péssima trilha sonora), acaba se tornando divertido o suficiente por investir na ação, até que bastante convencional; não traz nenhuma, mas nenhuma surpresa mesmo (o final é incrivelmente previsível), mas que tem pleno sucesso ao gerar tensão e nos deixar na beira da cadeira. Mas o injustamente esquecido "Arsenal" (1928), de Aleksandr Dovzhenko, vai por um caminho diverso, investindo numa sucessão emocionante (com uma montagem extremamente poética) de imagens belíssimas, num conjunto que não é comprometido pela mensagem ideológica. Obra-prima monumental.

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    Citei o Alfred (Hitchcock, claro) lá em cima, mas faltou falar de duas revisões: a primeira é de "Saboteur" (1942), filme bem idiossincrático do diretor, que mais uma vez explora o tema do "homem errado", com planos muito característicos, como closes em revólveres que saem da escuridão, além de desfecho dramático em um monumento conhecidíssimo e muito senso de humor. Mas o que há de especial aqui, nesta produção realizada em tempos de guerra, é a afirmação da ética (que vem justamente dos excluídos, como deficientes físicos, "freaks" de circo e subempregados _os vilões são justamente pessoas "de família", distintos membros da sociedade, todos brilhantemente caracterizados e interpretados), admiravelmente colocada acima da própria lei! Aqui temos também uma seqüência que é um primor de tensão, justamente porque os heróis estão, ao mesmo tempo, presos e em relativa liberdade (mas a prisão não se limita às paredes, mas às barreiras entre cada pessoa), em um baile de luxo.

    O outro é "The Trouble with Harry" (1955), que da primeira vez, visto na TV, com janela errada, cores esmaecidas e dublagem, não me agradou; agora, numa boa edição em DVD, me deparo com um roteiro inteligentíssimo (os diálogos são hilários, embora o humor seja sutil e fino, que mais arranca sorrisos de cumplicidade do que gargalhadas), com uma fotografia deslumbrante (talvez a mais bonita dentre todos os filmes do diretor) a cargo de Robert Burks (enquadramento, composição, cores, cada plano é uma pintura) e com uma trilha incrivelmente eficiente de Bernard Herrmann (em sua primeira colaboração com Hitch). John Forsythe lembra muito Bogart, e Shirley MacLaine, em sua estréia nos cinema aos 20 aninhos, está adorável. Muito da graça do filme reside justamente no fato de que a morte, aqui, não está tão ligada ao medo, que é um dos ponto-chave de "Peeping Tom", que forma uma linha bem interessante com "Janela Indiscreta", "Blow-Up", "Blow Out" etc.

    E para matar o assunto, terminei de ver "Six Feet Under", seriado de Alan Ball (roteirista de "Beleza Americana") que elevou muito o padrão da dramaturgia televisiva nos EUA (graças, em parte, à disposição da HBO em liberar nudez, sexo, palavrões e imagens violentas, ou seja, não poupar seu espectador dos fatos da vida). Este show é uma celebração da vida, o que fica mais claro ao chegar a seu final, evitando aquela ilusão programada para crianças (e adultos bobocas viciados em Prozac) de "...e viveram todos felizes para sempre", para dizer e mostrar o que todo mundo está careca de saber, mas nem sempre aceita: todo mundo morre. Ainda chegamos lá!

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